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RETRATOS (MAIS OU MENOS) BRUTOSMARC LENOT2023-10-16
O retrato, quase ausente da arte pré-histórica, aparece na Mesopotâmia e no Egipto, e perpetua-se ao longo dos séculos. O primeiro “museu” dedicado aos retratos e apenas a eles é a Fábrica de Homens Ilustres de Paolo Giovio, perto de Como, em 1538 (e não em 1360). E o retrato é há muito “um instrumento de demonstração, de promoção e de defesa da ordem política, social, moral, uma expressão dos valores da sociedade, um modelo indicativo de códigos, dos modelos a seguir com precisão”, como escrevi há 17 anos a propósito desta exposição, onde a emoção veio, justamente, de autorretratos nos limites da razão, estes de Messerschmidt, que teriam perfeitamente o seu lugar aqui. Porque os limites da razão, que podemos definir como caracterizando a arte bruta, não são apenas transgressões psíquicas, mas podem também ser marginalidades sociais. Aqui, estamos bastante longe da representação do poder: acolhidos por uma megera da Mère François, avançamos em seguida ao sabor das paredes expositivas, de retrato em retrato. Entre os que mais me tocaram, o desenho do artista Prophet Royal Robertson (1930-1997), negro do Louisiana abandonado pela sua esposa Adell que partiu com os seus filhos: Robertson desenha então freneticamente sobre todos os suportes, cobre as paredes de sua casa de retratos fantasiados da sua esposa infiel, misturando Bíblia, ficção-científica e pornografia e mergulhando num delírio obsessivo, mas extraordinariamente criativo. Grande número das obras aqui apresentadas são autorretratos: claro que, a facilidade de se tomar como modelo joga um papel, mas principalmente o autorretrato joga um papel psicológico, terapêutico de interrogação sobre si-mesmo, possivelmente de auto-afirmação. Contrariamente a grande número de artistas clássicos, para quem o autorretrato serve de reclame (Vigée Lebrun), de manifesto social (Jordaens) ou de reivindicação, feminista em particular (Gentileschi), os artistas brutos escavam, dolorosamente na sua psique, à procura da sua frágil identidade e, nisso, podemos aproximá-los do trio de imensos autorretratistas: Rembrandt, van Gogh e Munch. Um dos mais comoventes aqui é o duplo retrato ao espelho de Josef Hofer (Pepi). Gravemente incapacitado e quase mudo, escapou ao programa de eutanásia dos nazis que ocupavam a Áustria; internado após 1992, conseguiu comprar um grande espelho em 2001 e por conseguinte desenha-se, geralmente dividido em dois, face ao espelho, muitas vezes nu, por vezes sangrando, mutilado, muitas vezes erecto. A moldura rígida do espelho parece uma prisão ou um casulo protetor, e o seu corpo tenta escapar, partir as paredes ou a concha, pela sua graça e sensualidade bruta. Ele que não fala, exprime muito melhor a sua própria verdade pelos seus autorretratos. Para reforçar esta ideia do autorretrato curativo dos traumas, eis Dusan Kusmic (1925-1990), antigo apoiante jugoslavo, partisan de guerra, que, após diversas peripécias dramáticas, se encontrou em Dublin, só, pobre, marginal, falando muito mal inglês. Inicialmente escultor de migalhas de pão, meteu-se a desenhar autorretratos simbólicos e alucinados. Neste que vemos aqui, ele está vestido num estranho uniforme, uma esfera pontiaguda parece ameaçar o seu sexo. Linhas de força percorrem o fundo do desenho, como se um poderoso campo magnético o irradiasse. O catálogo é especialmente interessante pelas notas detalhadas sobre uma obra de cada artista; entre os ensaios, notei o de Sara de Chiara sobre as diferenças entre os conceitos de “portrait” (em francês, inglês, alemão, …) e de “retrato” (em italiano, espanhol, português...), citando Calabrese e Stoichita, e apoiando-se sobre os retratos fotográficos de Bascoulard, de Machcinski e de Lee Godie. Imagens do site da coleção, muito completo.
Marc Lenot |