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DAS OBRAS AOS CRITÉRIOS



EMANUEL CAMEIRA

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Em parte formulada a partir da ideia de crise que, designadamente no decurso da década de 90, marcou em França, mas também na restante Europa, o debate crítico em torno da produção artística contemporânea, com o que isso deixa supor de rejeição e diálogo difícil entre essa arte e alguns dos seus (não-)públicos e intermediários, merece particular destaque a recente reflexão desenvolvida por Marc Jimenez em La querelle de l’art contemporain, orientada para problematizar questões de critério, entenda-se de avaliação e apreciação estética. Do ponto de vista aqui adoptado parece desde logo importante reconhecer os atributos de um tipo de arte que, abalando os fundamentos do modernismo, precariza ainda mais a fixação de qualquer doxa ou axiomática estílistica, a saber, le renouvellement, l’appropriation, l’hybridation, le métissage des matériaux, des formes, des styles et des procédés – librement utilisés sans souci de hiérarchisation (…). On pourrait faire mention également de la recherche de la nouveauté, de l’imprévu, de i’inédit, de l’incongru. L’intention de provoquer, de choquer, de transgresser, héritée des mouvements avant-gardistes, perdure, et parfois s’exacerbe (p. 152). Paradoxal na querela opondo defensores e detractores da arte contemporânea é, segundo Jimenez, o carácter surpreendente, temporalmente desfasado da mesma, caso em termos de inovação artística se recorde determinados antecedentes históricos, sejam o “quadrado branco sobre fundo branco” de Malevich (1918), o carismático urinol “Fonte” de Duchamp (1917) ou as caixas “Brillo” de Andy Warhol (1964), obras já assentes na dissolução de um conceito clássico de arte, numa concepção alargada dos modos de criação. Não tão naturalmente, pois, surge a controvérsia face a um paradigma ao limite apenas vinculado a um ecletismo feito regra, onde la gamme des possibilités créatices et expressives s’est simplement élargie (p. 312), algo que, a bem dizer, nos conduz a outro plano de discussão, colocando a tónica nas dificuldades sentidas hoje pelo discurso estético em interpretar a chamada arte contemporânea, essa a via de Jimenez, que assim contorna diatribes genéricas incapazes de nela ver qualquer validade, porque joguete do mercado e das instituições, afastada do público, sendo n’importe quoi (p. 164).

De facto, além do pôr em representação, as obras, investidas de performatividade, passaram a solicitar a participação activa do espectador, atribuindo-lhe relevo na elaboração de sentido. E desde o fim dos anos 80 que o leque de temas susceptível de interessar públicos e especialistas se diversificou grandemente, aspectos todavia esquecidos quando a reflexão teórica cede lugar à polémica. Ora, acusar as práticas artísticas contemporâneas de nulidade, postura que por exemplo Baudrillard adoptou, funciona então enquanto juízo de valor pressupondo critérios de qualidade estética (ou respectiva ausência). Se numerosos autores preferem falar do fim da estética, Jimenez, pese embora aceite quão frágeis e variáveis são os juízos manifestados sobre as obras (longe de normas pré-existentes, tous peuvent être inversés et tous peuvent cependant prétendre à la même légitimité, p. 300), defende a renovação da teoria da arte, das várias abordagens que à questão dos critérios tentaram ir dando resposta. Na senda de Nelson Goodman ou Arthur Danto, distingue-se a este respeito uma perspectiva analítica suficientemente distinta da tradição filosófica europeia, na medida em que a avaliação das obras de arte recua perante um enfoque sobretudo cognitivo, descritivo. Jean-Marie Schaeffer só admite aliás considerar uma obra como medíocre ou falhada se certas particularidades entretanto a situaram no campo da arte. Assinale-se, porém, o gesto de Duchamp no ready-made, exterior ao objecto, e portanto a mostrá-lo nem sempre dependente dessa tal propriedade intrínseca no acesso ao estatuto artístico, problema por excelência da criação contemporânea.

De resto, o impasse trazido pela posição de Schaeffer – on imagine mal comment de simples descriptions et analyses des oeuvres actuelles, déroutantes, transgressives, provocantes, choquantes – ou du moins jugées telles –, pourraient, à elles seules, dissiper le malaise qu’elles provoquent auprès d’un public préoccupé, à juste titre, par la question de l’évaluation (p. 249) –, leva Jimenez a convocar a proposta de Rainer Rochlitz, também ela com as suas próprias lacunas. Rejeitada quer a leitura meramente descritiva quer a restrição do juízo de valor à simples expressão subjectiva do gosto de cada indivíduo, Rochlitz sobressai a lógica estética que, independentemente do seu potencial fracturante, todas as obras carregam. Nessa óptica, crer possível uma argumentação racional, objectiva, a partir de dado juízo de gosto justifica a busca de parâmetros aptos a determinar o valor desta ou daquela obra de arte. Contudo, na opinião de Jimenez, num panorama de pluralidades descoincidente de postulados lineares pouco servirá identificar critérios (originalidade, coerência formal, etc.) de operatividade demonstrada a posteriori, isto é, depois do reconhecimento estabelecido por directores de museus, galeristas, curadores, críticos, público. Da linha teórica de Rochlitz valorize-se, porém, o lançamento das bases de uma estética argumentativa, favorável a um regime de intersubjectividade através do qual l’évaluation d’une oeuvre ne dépend pas d’un seul jugement; elle dépend de la convergence ou de la divergence des verdicts argumentés, (…) de l’accumulation des arguments au cours du débat critique (p. 253). Em Portugal, o apertado sistema de gatekeeping, a escassez de plataformas de debate ou a propensão descritiva da crítica constituem sinais inibidores de renovadas e permanentes interpretações, alimentando-se muitas vezes o efeito de trinco que Jimenez cedo lembrou: la reconnaissance internationale et l’insertion dans les circuits du marché de l’art semblent témoigner suffisamment de la qualité artistique des oeuvres sans qu’il y a besoin (…) de laborieuses discussions esthétiques sur la légitimité de cette reconnaissance (p. 74).


Emanuel Cameira


NOTA
Texto escrito a partir da obra de Marc Jimenez, La querelle de l’art contemporain, Paris, Gallimard, 2005