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PERSPETIVA ATUAL


O encontro de Ernesto de Sousa com Joseph Beuys, 1972. Espólio Ernesto de Sousa, Lisboa.


Semana da Arte (da) na Rua, Coimbra, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1976. Cortesia Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.


Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, cartaz da exposição (pormenor), 1977. Coleção particular.


Clara Méneres, Mulher-Terra-Vida, 1977. Madeira, terra, relva e acrílico (90 x 180 x 300cm). Coleção da artista. Escultura apresentada em Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portu

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A Documenta é uma importante mostra de arte contemporânea que acontece na cidade de Kassel, na Alemanha, centrando-se principalmente no espaço do Museu Fridericianum, tendo começado por realizar-se a 15 de julho de 1955, por iniciativa de Arnold Bode. Ao longo dos anos, a Documenta instituiu-se como um acontecimento de referência ao nível das tendências artísticas internacionais de cada momento, nas suas diferentes formas expressivas – pintura, escultura, design, multimédia, performance, etc. Do ponto de vista teórico, a Documenta tem vindo igualmente a promover o debate e a reflexão sobre os diversos movimentos e conceitos artísticos, tais como, o modernismo, a vanguarda ou o pós-modernismo. Neste sentido, da Documenta 1 (1955) à Documenta 3 (1964) debateu-se a abstração; as Documenta 4 (1968) e 5 (1972) giraram em torno da neovanguarda, materializada nas novas conceções de arte e na ação curatorial de Harald Szeemann; as Documenta 6 (1977) a 9 (1992) procuraram interrogar o pós-modernismo e a crise do criticismo; as Documenta 10 (1997) e 11 (2002) questionaram o discurso da globalização e a crítica. Em 2005 comemoraram-se os cinquenta anos desta importante mostra, realizando-se uma retrospetiva [1].

Mas importa-nos sobretudo a quinta Documenta (1972), a respeito da qual se comemoram os quarenta anos de realização. Esta mostra constituiu-se como uma das exposições coletivas internacionais mais importantes – ou mesmo a mais importante e implicativa – do momento artístico que então se vivia, proclamando o “campo expandido” na arte e as suas inúmeras possibilidades, estando inclusivamente na origem do interesse e dos comentários de alguns teóricos e críticos portugueses. Nesta exposição estiveram presentes Ben Vautier, Claes Oldenburg, Christian Boltanski, Edward Kienholz, John de Andrea, Joseph Beuys, Paul Cotton, Richard Serra, Vito Acconci, entre outros.

O crítico português Rui Mário Gonçalves começaria por afirmar que esta exposição coletiva era diferente de tudo o que habitualmente se esperava, nomeadamente o contacto direto com artistas como Joseph Beuys, ao mesmo tempo que se desenvolve um “inquérito à realidade e às imagens que nos rodeiam” capaz de emocionar [2]. Por seu lado, Egídio Álvaro entendeu que a quinta Documenta constituiu um fenómeno de rara amplitude ao nível das propostas e do seu impacte, tornando-se num centro de paixões e de polémicas, demonstrativo de que todo o suporte seria válido para o fenómeno artístico, e de que a noção de artista poderia ser posta em causa ou até mesmo ridicularizada [3].

Mas do ponto de vista da receção crítica do evento, foi o artista, crítico, e curador Ernesto de Sousa (1921-1988), o primeiro ou certamente um dos primeiros portugueses a ir a Kassel na qualidade de crítico, quem acabaria por descrever com alguma minúcia a sua visita aos 100 dias da Documenta, marcada pela “Festa” no centro da vanguarda artística contemporânea, num “itinerário sem imposições”. A Documenta 5, na República Federal da Alemanha, seria ainda mais implicativa do que as Bienais de São Paulo e de Veneza, representando uma grande amplitude de tendências, uma nova utilização do humor, a eliminação da distância entre o criador e o recetor, a valorização do efémero, de tudo o que envolvia e do caráter pedagógico da arte de vanguarda [4]. Em suma, o objetivo desta comunicação é o de operar uma breve reflexão sobre o impacto da Documenta 5 – enquanto mostra aglutinadora das tendências artísticas internacionais do momento – na arte feita em solo português, justamente através de uma ponte conceptual realizada em larga medida pela ação de Ernesto de Sousa.

No âmbito desta visita a Kassel, onde justamente se refletia sobre a neovanguarda internacional, e na busca do “Diálogo”, Ernesto de Sousa faria uma interessante entrevista a Joseph Beuys, o “escultor de arte-total”, na época também professor da Academia de Düsseldorf – local de notória importância artística e centro das suas ações –, publicada no jornal República, intitulada “O estado zero. Encontro com J. Beuys” (28 dez. 1972):

Um “artista moderno”, um extraordinário operador estético do nosso tempo surge como um dos casos mais significativos de uma vanguarda hot (…). Alemão ocidental, Joseph Beuys faz além do mais a síntese entre a vanguarda americana e a vanguarda europeia que já se vinha verificando com o grupo Fluxus (com o qual de resto mantém fecundas relações). (…)

E.S: Nascemos ambos em 1921, eu conheço-te razoavelmente. Tu não me conheces. Achas bem?
J.B: Acho péssimo.
(…)
E.S: Comsideras-te uma pessoa séria?
J.B: Sim, sou uma pessoa muito séria… mas também sou um
clown.
(Um clown. Sabia Beuys o profundo respeito que eu tenho pelo clown? Tinha que saber. Almada Negreiros também era assim um pouco clown e isso não foi uma das razões menores do meu fascínio, posso dizer do meu amor. Vou mais longe: um intelectual que se preza e que se toma a cem por cento (…) é para mim o último dos patetas).

O contacto de Ernesto de Sousa com as tendências artísticas do momento, e particularmente com Joseph Beuys – “vanguarda hot”, conceptualismo politicamente comprometido –, seria determinante para a consequente divulgação da obra do autor de Wie man dem toten hasen die bilder erklärt (Como explicar imagens a uma lebre morta, 1965) ou de Wolf Vostell em Portugal, nomeadamente através de textos e dos mais de trezentos diapositivos que trouxe de Kassel e de Darmstadt – cidade depositária de um dos maiores espólios de Beuys –, e que mostrou pela primeira vez no ateliê de Eduardo Nery [5]. Numa carta remetida a Ângelo de Sousa (Lisboa, 19 de outubro de 1972), Ernesto escrevia: “A ‘Documenta 5’ foi para mim o acontecimento mais esclarecedor de uma consciência moderna a que me foi dado participar nos últimos anos: julgo que muito do que vai acontecer nos próximos anos será marcado por estes 100 dias”. Com efeito, assim seria.

De regresso a Portugal, Ernesto de Sousa divulgaria ativamente o trabalho de Beuys, assim como do profícuo movimento ‘Fluxus’ e do movimento geral da neovanguarda internacional. Mas sobretudo daria lugar ao desencadeamento de num processo de reflexão sobre a arte portuguesa do momento. Ernesto incorreria numa determinante atividade como curador de exposições, que inicia logo em 1972 com Do Vazio à Pró-Vocação (EXPO AICA/SNBA), seguindo-se de Projectos/Ideias, 1974 (EXPO AICA/SNBA), e da mais paradigmática exposição dos aos setenta em Portugal: Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea (1977). Como o próprio escreveria aquando desta mostra: “Foi de facto depois daquelas exposições que recomecei a sair do gheto português, única maneira de conhecer (e amar) o país Portugal. Pude então estudar com rigor a evolução das vanguardas, ou melhor, a vanguarda; porque há só uma” [6].

Mas antes de nos debruçarmos sobre a Alternativa Zero, importa referenciar outras relevantes iniciativas que Ernesto de Sousa desenvolveu com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. É curioso verificar que o primeiro encontro entre Ernesto e esta coletividade, fundada em 1958, ligada à Universidade de Coimbra, acontece precisamente em Óbidos, logo após o regresso do crítico de Kassel. Na galeria Ogiva, Ernesto mostrava as imagens do evento, e particularmente dos trabalhos de Beuys. Esta conferência terá sido fortemente replicada pelos elementos do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra [7]. Quanto a Ernesto de Sousa, o episódio serviu de mote ao primeiro texto que escreveu sobre o coletivo conimbricense (1973):

Uma intervenção-como-o-nome-de-Joseph-Beuys [Agressão com o Nome de J. Beuys] que ia quase virando para o torto. Porque assim é que é quando se descobrem interlocutores válidos e não um público passivo e masoquista que até aplaude e faz-de-conta que é insultado. O Círculo de Belas-Artes (é este o nome?) de Coimbra estava presente e animou com essa efectiva presença um DIÁLOGO, mais importante do que muitas pedagogias ex-cátedra. Um diálogo talvez promissor de futuro [8].

Na verdade, instituiu-se um espaço de trabalho conjunto profícuo [9], entre Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro, António Barros, Armando Azevedo, João Dixo, Rui Órfão, Túlia Saldanha, entre outros operadores estéticos. As atividades do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra estenderam-se a exposições, intervenções/operações estéticas, performances, cursos livres, convívios, conversas, de que se podem destacar A Floresta (Porto, Galeria Alvarez, 1973; Lisboa, Galeria Nacional de Arte Moderna, 1977), Homenagem a Josefa de Óbidos (Óbidos, Galeria Ogiva, 1973), Minha (Tua, Dele, Nossa, Vossa) Coimbra Deles (Coimbra, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1973), 1 000 011.º Aniversário da Arte e Arte na Rua (Coimbra, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1974) [10], Semana da Arte (da) na Rua (Coimbra, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, 1976), Cores (pelo “Grupo de Intervenção do CAPC”, Coimbra, Caldas da Rainha, Lisboa, 1977-1978) [11].

Na opinião de Ernesto de Sousa (1976), o agrupamento seria a “(…) única ‘sociedade artística’ deste país que mantém um espírito de ‘work-shop’” [12]. Esta ideia aparece também espelhada num escrito do mesmo autor, a propósito da atividade Guerra das Tintas, intitulado “A vanguarda está em Coimbra, a vanguarda está em ti” (1974):

CAP ou C.AP. eis as letras a fixar, se o leitor for um dia a Coimbra, e quiser falar ‘a pretexto da arte’ com gente das ‘artes’. Artes de acção, belas-artes, malas-artes de liberdade: de encontro consigo próprio. E com os outros. (…) O que interessa não é toda essa pasmaceira de técnicas e alienação, beleza labirinticamente pré-constituída e pré-estabelecida; esse caminho para todas as Academias (e para a economia do mercado, bem entendido). O que interessa é a tal descoberta, a qual só pode ser conseguida num exercício total do corpo e do espírito, das mãos e da cabeça. Esse exercício é a prática quotidiana do CAP. Sim o CAP, ali em Coimbra, à Rua Castro Matoso, mesmo em frente da Clépsidra. O leitor vá lá, beba um café na Clépsidra e pergunte. (…) Pergunte pelo Dixo, ou pela Túlia Saldanha. Ou pelo Alberto Carneiro, que nesse dia talvez tenha vindo do Porto. Ou pelo Armando Azevedo, se já acabou a ‘tropa’ [13].


A propósito de outra iniciativa do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, Arte na Rua (Coimbra, 1974), Ernesto de Sousa escreveria:

O exagero. Por exemplo, viver em Coimbra, ser de Coimbra, a ‘cidade nossa deles’ e ousar uma atividade (visual) que excede todas as medidas (da Cidade, da rua) devolvendo as pessoas à dimensão perdida (ao Paraíso Perdido)… à Festa – eis o exemplo de um total exagero, de uma clara modernidade. (…) ‘A ARTE pode ser a VIDA’ [14].

O Círculo de Artes Plásticas de Coimbra ao longo dos anos setenta, e pelos anos oitenta, iria definir uma interessante confluência de linguagens experimentais – em espírito de criação e de aprendizagem ou, se preferirmos, a ideia vostelliana de “artista/educador”.

Centremo-nos finalmente na exposição Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, cuja realização partiu de uma proposta da Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte, ou seja, da instituição crítica, e deveria ter acontecido ainda em 1976, acabando por realizar-se no início do ano seguinte. Na verdade, a Alternativa Zero foi acompanhada por três pequenas mostras, igualmente da responsabilidade de Ernesto de Sousa, a acontecer em simultâneo à que podemos designar como exposição principal. Tratou-se de A Vanguarda e os Meios de Comunicação: o Cartaz – evocativa de diversas mostras “de vanguarda” que tiveram lugar no exterior, nomeadamente do movimento “Fluxus” –, Os Pioneiros do Modernismo em Portugal – exposição fotográfica e documental que se debruçou sobre o primeiro modernismo português, concretamente, sobre as figuras de Almada Negreiros, Eduardo Viana e Santa-Rita Pintor –, e A Foresta – penetrável de tiras de papel, da autoria do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, que funcionava em conjunto com peças de Albuquerque Mendes, Armando Azevedo e Túlia Saldanha. E as referências primeiras da exposição estavam dadas: a (neo)vanguarda internacional, o primeiro modernismo português e algumas das ações coletivas de vanguarda em Portugal neste período. O percurso artístico e conceptual do curador da mostra, na sua ligação com a vanguarda, seria, pois, determinante para o propósito do evento.

No que respeita ao conceito subjacente à Alternatiza Zero, podemos ler numa folha datilografada que incorpora o dossiê/catálogo da exposição, assinada por Ernesto de Sousa, o seguinte:

‘Alternativa Zero’ pretende ser algo mais do que uma exposição; ou, encarando as coisas por outro prisma, pretende ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis nesta sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la. (…) O que se pretende é sobretudo demonstrar a importância menor do objecto de arte, face aos sujeitos envolvidos pela atividade estética, face ao PROCESSO ESTÉTICO[15].

Na Alternativa Zero, Ernesto de Sousa pretendeu apresentar uma visão perspetiva e prospetiva. No semanário Tempo escreveu-se (1977):

O que se pretende é sobretudo demonstrar a importância menos do objeto de arte, face aos sujeitos envolvidos pela atividade estética, face ao processo estético. (…) O mais importante nesta Alternativa Zero — Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea — não será ir-se considerar autor por autor, peça por peça, mas sim concluir quão fundamental a iniciativa foi para a panorâmica geral da arte praticada entre nós [16].

Na ótica de Ernesto de Sousa, a exposição tinha por objetivo combater o isolamento dos artistas e dos críticos portugueses — tanto dos que residiam no estrangeiro, como dos que viviam em Portugal —, fomentando uma perspetiva crítica e uma responsabilidade assumida, que se afastasse dos interesses comerciais e da atitude dogmática de júri salonard [17]. O critério de seleção foi a constituição de um grupo representativo “apenas de si próprio”. Os artistas vieram de experiências anteriores, propositadamente já referenciadas neste texto, como Do Vazio à Pró-Vocação (1972), Projectos-Ideias (1974), Agressão com o Nome de J. Beuys (1972), Aniversário da Arte (1974) e Semana da Arte (da) na Rua (1976), assim como de algumas atividades individuais [18]. As figuras de António Areal, Joaquim Rodrigo e Almada Negreiros foram igualmente referências “de vanguarda”, inspiradoras, para esta exposição. Como explicitou Ernesto de Sousa no catálogo do evento: “(...) o ZERO tinha que ser um dos nossos limites. E daí COMEÇAR — como diria Almada Negreiros. (...) Nós queremos começar e apenas vamos recortar no passado o que sirva para a definição deste zero, desta aposta” [19]. O curador afirmaria ainda (1981): “O Zero de todas as alternativas começa por uma luta pela memória e pela tomada de consciência. Mas nenhuma perspetiva é possível sem uma aposta prospetiva” [20].

Ernesto de Sousa conseguiu reunir perto de cinquenta participantes — ou “operadores estéticos” —, contando consigo próprio, entre os quais, podemos destacar Alberto Carneiro, Ana Hatherly, André Gomes, António Palolo, António Sena, Clara Menéres, Da Rocha, Ernesto de Melo e Castro, Fernando Calhau, Helena Almeida, Joana Rosa, João Vieira, Jorge Peixinho, José Conduto, Julião Sarmento, Júlio Bragança, Mário Varela, Robin Fior ou Vítor Pomar. Este conjunto mostra claramente que não se procurava um consenso, mas a pluralidade, a reflexão e a crítica. Na perspicaz e poética expressão de José Luís Porfírio (1997), e apesar das individualidades, tratou-se da vanguarda que vinha, já não isolada, mas “em grupo”, por mão do “único inventor da Alternativa Zero” [21].

O elevado número de participantes e as particularidades de cada obra aumentavam as possibilidades artísticas e estéticas da exposição. E foi por entre uma máquina cinética (de Júlio Bragança), um ostensivo torso feminino (Mulher-Terra-Vida, de Clara Menéres), a pesquisa da representação e do corpo (obras de Helena Almeida), uma projeção de filme de 16mm (o expanded cinema de Pedro Andrade), montagens com aguarelas e fotografias (de Fernando Calhau), comentários paródicos a outros trabalhos (Joana Rosa comenta visualmente trabalhos da sua mãe, Helena Almeida), uma fotocópia de uma reprodução de uma tela de Frans Hals lado a lado com uma receita de compota de laranja (de Vítor Pomar, que vivia na Holanda), uma projeção de Le déjeuner sur l’herbe sobre uma toalha de piquenique (de Ana Vieira), ou uma floresta para sonhar (de Alberto Carneiro), foi por entre estas e outras obras que o público se movimentou. Afluíram à exposição mais de dez mil visitantes, contrariando uma ideia elitista de obra de arte, a que Ernesto de Sousa se opunha [22].

Além destas e de outras intervenções estéticas, também tiveram lugar eventos musicais, oficinas de crianças, performances, intervenções do público, conferências — possivelmente a que mais se evidenciou terá sido a proferida por André Gomes: O culto da vanguarda... or the importance of being Ernest [23]—, a presença do “Living Theatre” em Belém e as suas ações no Museu Nacional de Arte Antiga ou no Largo de São Miguel em Alfama, jantares-convívio etc. [24]. Esta variedade poderá ser justificada pela defesa, por parte de Ernesto de Sousa, da “obra de arte aberta” — na esteira de Umberto Eco —, antiacadémica, antielitista, não acabada, participada. A Alternativa Zero traduziria, de um modo inovador, esta conceção política mas não partidária. Seria esta a via conceptual para a qual todas as vanguardas convergiriam. Por este motivo, segundo o autor, em Belém não havia objetos, “negações de liberdade” [25]. Importa, porém, chamar a atenção para a questão de Ernesto de Sousa aparentemente não operar uma distinção conceptual entre vanguarda enquanto categoria da crítica, adjetivo, e a neovanguarda como conjunto de manifestações artísticas/movimento, isto é, como substantivo.

As reações à exposição foram ora laudatórias ora destruidoras. Foi um momento polémico e inquietante na situação artística portuguesa. De um modo geral, todos os comentários confluíram no sentido de admitir a sua invulgaridade, uma vez que foi atípica em Portugal. Uns consideraram que se tratou de um marco e de um desafio no contexto artístico português; outros criticaram-na pela real falta de alternativa que propôs, já que o público não interveio e o evento restringiu-se a uma classe intelectual e elitista. No fundo, a grande questão que se colocou prendeu-se com a legitimidade artística de uma exposição que ao reclamar a vanguarda — e não obstante tenha constituído uma novidade em Portugal —, acabou por mostrar o que lá fora se vinha fazendo há algum tempo. No semanário Expresso, Jorge Alves da Silva chamou-lhe “subdesactualizada Kassel” [26]. Esta questão conduziria inevitavelmente a outras: a situação cultural e artística do nosso país — que identidade? —, bem como a uma certa perda de sentido da vanguarda. A vanguarda, segundo alguns críticos, tinha-se transformado numa “fantochada”, fizera-se visitar pelas escolas mais importantes, tivera apoio do Governo, enfim, fora elitista, não trouxera nada de novo.

Devemos reconhecer — tal como José-Augusto França, João Pinharanda e José Luís Porfírio — que a Alternativa Zero representou a súmula de um período, o período das vanguardas, mais concretamente do movimento geral reportado à neovanguarda internacional. Neste sentido, a exposição acabou por encerrar um ciclo. Contudo, falta acrescentar um pormenor determinante: encerrou este ciclo afirmando-o, isto é, afirmando uma produção efetiva dos anos setenta portugueses, acompanhando-a de uma reflexão conceptual válida. Por outro lado, também parece evidente que esse fim da neovanguarda já se sentia lá fora e, no nosso país, esta situação também seria percetível. Dito de outro modo, sabia-se que o que se podia observar na exposição não era exatamente novo, inédito, mas uma reinvenção da (neo)vanguarda, possivelmente de acordo com os meios e com os tempos portugueses. Aliás, se atentarmos em correntes artísticas internacionais facilmente compreendemos alguma extemporaneidade de propostas da Alternativa Zero. De resto, a Documenta 6 (1977), contemporânea à Alternativa Zero, procurava já interrogar o conceito de pós-modernismo e a crise do criticismo.

Mas extemporaneidade não é sinónimo de não afirmação. Devemos acreditar que a Alternativa Zero, do ponto de vista da atitude curatorial e considerando determinando leque de peças exibidas, particularmente as já mencionadas, acabou, de um modo talvez involuntário e imperfeito, por anunciar o pós-modernismo em Portugal. E, justamente porque anunciou a possibilidade de um movimento novo foi irónica, crítica e conceptualmente verdadeiramente avant-garde, inclusivamente pela utilização de determinados elementos autóctones, como as referências ao período revolucionário. Mas, em simultâneo, deu os anos setenta a Portugal.

Isabel Nogueira
CEIS20/Universidade de Coimbra



NOTAS

[1] Cf. 50 Jahre/Years of Documenta (1955-2005): Archive in Motion/Discreet Energies. Kassel: Museum Fridericianum/Steidl, 2005. 2 vols. [Catalogo da exposição].

[2] Cf. Gonçalves, Rui Mário, “Uma prospectiva: ‘Documenta 5’ Kassel. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 9 (out. 1972), p. 45-47.

[3] Cf. Álvaro, Egídio, “Documenta 5 Kassel”. In: Revista de Artes Plásticas. Porto. N.º 1 (out. 1973), p. 16-21.

[4] Cf. Sousa, Ernesto de, “Os 100 dias da 5.ª ‘Documenta’”. In: Lorenti’s. Lisboa. N,º 11 (fev. 1973), p. 41-47.

[5] Cf. Sousa, Ernesto de, “Vostell em Malpartida”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 30 (dez. 1976), p. 81; idem, “Carta de Malpartida”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 42 (set. 1979), p. 60; idem, “Carta de Lisboa”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 41 (jun. 1979), p. 57-59; Nogueira, Isabel, “Ernesto de Sousa e a promoção das vanguardas em Portugal”. In: Nu. Coimbra: Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra. N.º 24 (out. 2005), p. 23-26.

[6] Sousa, Ernesto de, “Alternativa Zero: uma criação consciente de situações”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 34 (out. 1977), p. 46-51.

[7] Cf. Diniz, Victor, “O Círculo de Artes Plásticas de Coimbra”. IN: Rua Larga/Caderno Temático Coimbra: Reitoria da Universidade de Coimbra. N.º 10 (out. 2005), p. 3.

[8] Souda, Ernesto de, “Dois anos”. In: Lorenti’s. Lisboa. N.º 12 (abr. 1973), p. 4.

[9] Cf. Nogueira, Isabel, “O Círculo de Artes Plásticas de Coimbra nos anos setenta: ‘A vanguarda está em Coimbra, a vanguarda está em ti’. In: Arquivo Coimbrão: Boletim da Biblioteca Municipal. Coimbra: Câmara Municipal. N.º 38 (2005), p. 169-182.

[10] O “aniversário da arte” foi uma ideia original de Robert Filliou que, em 1973, propôs o dia de 17 de janeiro como hipoteticamente representativo do nascimento da arte. Ernesto de Sousa acolheu vivamente a ideia e desenvolveu-a com o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra.

[11] Cf. Sousa, Teixeira de, “Olhar… entre aspas”. In: Fenda. Coimbra (set. 1980), p. 28-29; Azevedo, Armando, “A Irmandade do CAPC de 70”. In: Rua Larga/Caderno Temático. Coimbra: Reitoria da Universidade de Coimbra. N.º 10 (out. 2005), p. 11.

[12] Sousa, Ernesto de, “Arte na Rua”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 29 (out. 1976), p. 70.

[13] Sousa, Ernesto de, “A vanguarda está em Coimbra, a vanguarda está em ti”. In: Lorenti’s. Lisboa. N.º 20 (jan. 1974), p. 4, 6.

[14] Idem, “Arte na Rua”. In: Colóquio/Artes. Op. cit.

[15] Ernesto de Sousa. In Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, 1977. [Catálogo da exposição].

[16] A., J., “Alternativa Zero (II)”. In: Tempo. Lisboa. N.º 96 (24 mar. 1977), p. 29.

[17] Cf. Ernesto de Sousa. In Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Op. cit.

[18] Cf. idem. In ibidem.

[19] Ernesto de Sousa. In Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Op. cit.

[20] Apud João Fernandes. In Perspectiva: Alternativa Zero. Op. cit., p. 25.

[21] Cf. José Luís Porfírio. In Perspectiva: Alternativa Zero. Op. cit. , p. 47.

[22] Cf. relatório sobre a exposição endereçado à SEC, redigido por Ernesto de Sousa, publicado em Perspectiva: Alternativa Zero. Op. cit., p. 81.

[23] Nesta conferência o próprio conceito de vanguarda é parodiado ao elogiar-se o “nacionalista-kitsch”.

[24] A respeito da presença do Living Theatre ver Sousa, Ernesto de, “The Living Theatre — sempre inadequado”. In: Colóquio/Artes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. N.º 33 (jun.1977), p. 32-39. O agrupamento seguiria ainda para o Porto e para Coimbra.

[25] Cf. idem, “Alternativa Zero: uma criação consciente de situações”. In: Colóquio/Artes. Op. cit., p. 51.

[26] Cf. Silva, Jorge Alves da, “Como Alternativa o Zero”. In: Expresso/Revista. Lisboa (25 mar. 1977), p. 18.