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ERNESTO DE SOUSA (1921-1988) A MÃO DIREITA NÃO SABE O QUE A ESQUERDA ANDA A FAZER..PAULA PINTO2017-09-05
Uma palavra sobre a fotografia... simultaneamente ponto de chegada e ponto de partida. A fotografia cruzou todo o percurso multidisciplinar de Ernesto de Sousa (1921-1988), funcionando simultaneamente enquanto documento e pensamento, sem definição de fronteiras entre o registo das experiências de outros e os objetos artísticos que compuseram a sua bio-bibliografia. Os materiais fotográficos inéditos desta exposição demonstram o seu continuado interesse pela arte popular e a escultura portuguesa de expressão popular durante os anos sessenta. Sem prejuízo da especificidade desses mesmos objetos, evidenciamos o uso da fotografia enquanto ferramenta e expressão do seu pensamento, através de três assemblagens de meios e objetos: a realização de um filme, a curadoria de uma exposição e a edição de um livro. Esta análise confronta o olhar do autor com o objecto (referente) fotográfico e com os meios de produção e edição da imagem fotográfica, num exercício que revela a intimidade do trabalho de Ernesto de Sousa, tanto na aproximação às temáticas de estudo como nas condições materiais do seu trabalho, testemunhando a complexidade e experimentalismo do seu universo visual. Encontram-se em exposição as fotografias rasuradas da rodagem do filme Dom Roberto (1962), as fotografias da exposição Barristas e Imaginários: quatro artistas portugueses do Norte organizada na galeria da livraria Divulgação (Lisboa, 1964), fotografias publicadas no álbum Para o Estudo da Escultura Portuguesa (Lisboa: ECMA, 1965) e material ainda inédito do levantamento sobre a “Escultura Portuguesa de expressão popular, histórica e atual”, que Ernesto de Sousa compilou durante os anos em que foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (1966-68). A prática fotográfica de Ernesto de Sousa e a representação gráfica dos pequenos contactos em páginas soltas compiladas em álbuns remonta à transição dos anos quarenta para os cinquenta do século passado, constituindo possíveis guiões visuais para os documentários e filmes publicitários que realizava para a Shell e para a Ford, muitos dos quais ainda se encontram por identificar. São documentos amadores, que transmitem uma narrativa social e política e já demonstram um sentido estético. A simbiose que o cinema documental opera entre diferentes artes e disciplinas: entre a fotografia e a literatura, entre a investigação social e histórica, levaram Ernesto de Sousa a desistir do Curso de Ciências Físico-Químicas e a ir estudar História do Cinema e Cinematografia na Sorbonne (Paris) entre 1949 e 1952. No plano teórico, a reportagem e edição fotográficas relacionar-se-iam diretamente com o seu envolvimento profissional, já enquanto chefe de redação, em revistas especializadas em “Fotografia, Cinema, Som, Rádio, Artes Gráficas e Propedêutica da Publicidade”, como a Plano Focal, da qual se publicam apenas quatro números entre Fevereiro-Maio de 1953. No ano seguinte, dirigindo a segunda série da revista Imagem [1], Ernesto de Sousa documenta fotograficamente uma série de reportagens jornalísticas sobre filmes e realizadores e entrevistas a atores que realizara em Paris. Foi em Fevereiro de 1959 que Ernesto de Sousa publicou uma das fotografias (não identificada) que primeiro nos remetem para a temática da arte popular: uma imagem da guarita do bonecreiro António Dias (1920-1983). A fotografia é publicada juntamente com um conto inédito de Leão Penedo, dando continuidade à publicação de uma série de textos que a revista Imagem iniciara com as crónicas de Eurico da Costa (Diário de Férias) e de Alves Redol (Carnaval na Nazaré), a pretexto de “atrair a atenção para uma realidade nacional [que estaria] na base de um cinema verdadeiramente português e novo, e [que queria] mostrar, também, como essa realidade [era] rica, atraente e, sobretudo, imperiosa.” [2] Em Maio de 1959, Leão Penedo registava o título Dom Roberto, que se destinava ao argumento cinematográfico com a realização de Ernesto de Sousa. A associação entre ambos ficaria registada graficamente através da associação entre texto e imagem, na pág. 467 da revista Imagem. [3] No final dos anos cinquenta Ernesto de Sousa dedicava um dos seus estudos sociais e etnográficos aos espetáculos de fantoches e particularmente a António Dias, cuja guarida publicitava o “Teatro Dom Roberto”. Esta e outras fotografias estão agora expostas na XIX Bienal de Cerveira, juntamente com um conjunto inédito de fotolitos [4], para onde Ernesto de Sousa transferiu mais de uma centena de negativos que retratam a rodagem de Dom Roberto, com o propósito de destruir, de forma experimental, o seu suporte e enquadramento pré-definido. A intervenção química na imagem fotográfica é abrupta. Numa atitude claramente crítica da capacidade interventiva dos media, Ernesto destrói o múltiplo fotográfico e provoca um recuo perante um mundo falsamente real. Contemporaneamente, e até ao início da rodagem de Dom Roberto (Agosto 1961), Ernesto publicou regularmente as suas fotografias numa série de 15 artigos que dedicou aos “Aspectos da Escultura em Portugal” na revista Seara Nova (entre Março 1959-Agosto 1961). Desta forma, começou por enumerar alguns exemplos da escultura portuguesa de expressão popular; domínio das artes que considerava histórica e esteticamente menos estudado. Assume assim à escala nacional o seu interesse pelo espaço social da arquitetura e pelo carácter discursivo da escultura que lhe está associada. Ernesto de Sousa incorporou estas fichas num estudo mais amplo apresentado na publicação Para o Estudo da Escultura Portuguesa (1965), um álbum onde o estudo imagético e a análise estética se complementam. Afirmando uma iconografia que não é objeto da crítica e da especialização historiográfica, Ernesto de Sousa consegue ser “visualmente polémico”. A arte popular permite- lhe explorar uma metodologia comparativa, associando livremente “memórias” e figuras de diferentes regiões e períodos históricos. Neste estudo sobre a “significação profunda da escultura portuguesa”, Ernesto de Sousa dedica todo um capítulo ao “Problema visual: discussão sobre as virtudes e as características da interpretação e reprodução fotográfica nos estudos de escultura. Estética do fragmento. Iluminação e valores tácteis. Sugestões para a utilização da fotografia como método indispensável dos estudos iconográficos e estéticos. Comparativismo e visão polémica.” A fotografia permite-lhe identificar e simultaneamente descobrir, sem nunca perder a noção do potencial visual e cultura material que lhe é próprio. Dessa forma, evidencia a abstração da mediação estética –nomeadamente através da iluminação ou do enquadramento– tornando-a objecto explícito do seu trabalho intelectual. Imagem e discurso são conscientes da sua mediatização e consequentemente contemporâneos e autocríticos: “Uma figura num capitel de igreja românica, não era apenas objecto de demorada contemplação e espanto para o camponês de Entre-Douro-e-Minho, era-lhe um valor íntimo, uma íntima maneira de ele ser no espaço e no tempo. Para nós tudo isso tem que ser reedificado segundo valores mais abstractos, na mediação estética ou filosófica da nossa modernidade; valores no entanto, não menos ardentes, quando reedificados no futuro.” (p.12) Apesar da sua crítica intelectual apurada, os meios com que reproduz as obras tridimensionais são tecnicamente restritivos, mas coerentes. Embora a fotografia sofra um trabalho de reenquadramento na edição dos conteúdos que publica, ela nunca é apresentada enquanto a arte neutra da suposta “fotografia de estúdio”. Ernesto assume que a sua fotografia não é estática nem documental (transparente), mas subjetiva. O seu enquadramento relaciona-se diretamente com o suporte da publicação e com a sua mensagem e por essa mesma razão não deve ser pré-definido para a posteridade. Contrariamente ao sucedido em publicações emblemáticas como Les voix du silence (1951) [5] ou Le Musée imaginaire de la sculpture mondiale (1952-54) de André Malraux, Ernesto de Sousa assume as mudanças de percepção provocadas pela fotografia de reprodução e as suas consequências epistemológicas. Enquanto André Malraux afirmava que em escultura o “fragmento é rei” e os enquadramentos fotográficos, as ampliações e as deslocações visuais serviam o seu discurso homogeneizador da história modernista, o arquivo de Ernesto de Sousa demonstra a consciente e crítica produção dos respectivos documentos visuais. Mesmo tratando-se de uma fotografia de reprodução, que muitas vezes é reenquadrada para servir uma função imediata na página impressa das publicações, o seu arquivo fotográfico transporta-nos por histórias paralelas de produção da imagem e por conseguinte, para novas plataformas de representação. [6] Perante uma incompleta inventariação e deficiência documental, face aos raros estudos de ordem estética e à ausência de estudos comparativos, Ernesto de Sousa propôs-se prosseguir o levantamento sobre a “Escultura Portuguesa de expressão popular, histórica e atual”, concorrendo a uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (1966-68). O arquivo fotográfico, fílmico, sonoro e bibliográfico que construiu em viagem pelo território português a partir deOutubro de 1966 permaneceu inédito e é na sua quase totalidade desconhecido. Portugal era ainda um país predominantemente rural, que passava por um processo irreversível de aculturação para uma sociedade de consumo, mediatizada e tecnologicamente avançada, mas que era censurada por questionar essa transformação. [7] À medida que esse território desaparecia, o estudo da cultura popular corria, de forma pontual, a cargo de etnólogos, geógrafos e arquitetos. Interessando-se particularmente pelo domínio da estética e apercebendo-se que o conceito de obra de arte estava limitado pelo campo oitocentista da arte erudita, Ernesto de Sousa formula o desconhecimento sobre “O que é a arte popular? Qual a origem desta importante manifestação do pensamento e do sentir, mais ou menos espontâneos, das populações rurais?” [8] Este estudo visual e cultural acontece inserido numa profusão de movimentos aparentemente isolados, mas simultâneos. Será a acumulação de abordagens de uma série de investigadores – etnólogos, geógrafos, arquitetos, músicos e historiadores – que permitirá conhecer melhor as histórias sociais, cívicas e culturais das várias classes profissionais. Consciente da necessidade da articulação interdisciplinar para combater o isolamento cultural e intelectual fomentado pela política do “orgulhosamente sós”, Ernesto de Sousa circula livremente entre os territórios literários, musicais, cinéfilos, teatrais, jornalísticos, ensaísticos e artísticos, procurando torna-los diferenciadores, plurais e discursivos. [9] Cruzou imaginários, histórias e memória, eternizando visualmente os objetos efémeros e conferindo pensamento a vozes que, sem terem lugar na História nacional, foram figuras emblemáticas do seu povo. A contra-pêlo da política do Estado Novo que encenava e promovia turisticamente uma imagem acrítica da ruralidade portuguesa – nomeadamente através do concurso da “Aldeia mais portuguesa” (1938) e da Exposição do Mundo Português (1940) – figuras como Orlando Ribeiro, Lima Basto, Jorge Dias, Francisco Keil do Amaral, Ernesto Veiga de Oliveira ou Fernando Lopes Graça (entre outros) ensaiavam uma abordagem crítica sobre o território, o povoamento, a paisagem e a cultura nas suas várias vertentes diferenciadoras. [10] Dois levantamentos, embora não diretamente relacionados, são particularmente contextualizadores do investimento intelectual depositado na identificação, documentação, divulgação e estudo da cultura popular levado a cabo por Ernesto de Sousa entre 1959 e 1969: os Arquivos Sonoros Portugueses (1959-1970) – trabalho de campo conduzido por Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça, que consistiu no registo e recolha da música regional portuguesa – e o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa (1955-60) – proposto pelos Arquitetos José Huertas Lobo e Francisco Keil do Amaral em 1947 mas apenas apoiado a partir de 1955 e publicado pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos em 1961. Paralelamente, mas à escala internacional, é de salientar a tentativa de Asger Jorn (1914-1973) para constituir o Scandinavian Institute of Comparative Vandalism (1961-65). [11] Inserido num Ciclo de Etnologia e Cultura Popular, [12] Ernesto de Sousa daria forma à sua investigação sobre arte popular através da organização da exposição Barristas e Imaginários: quatro artistas populares do Norte, na galeria da Livraria Divulgação (Lisboa, 1964). Elegendo a obra de Rosa Ramalho, Mistério (Domingos Gonçalves Lima), Quintino Vilas Boas Neto e Franklin Vilas Boas, Ernesto de Sousa assume um estudo personalizado e intimista, que se revela nas fotografias das visitas que realiza às oficinas e no relacionamento que mantém com estes artistas e canteiros. No catálogo escreve: “Mas não será melhor conhecer, primeiro e diretamente o povo, realmente criador (quaisquer que sejam as influências e as determinações) e, também, sofredor? De certo modo, é cada vez mais isso –observação e experimentação– que orienta a moderna etnologia. Conhecendo-o pelo cinema, e por vocação pessoal talvez, o meu interesse pela arte popular é antes de mais humano. Nesse contexto, interessa-me saber quem são e como são os barristas e os canteiros que ainda hoje –apesar de tudo– lá vão persistindo (talvez sem saberem porquê, talvez até forçados por razões bem alheias a qualquer necessidade estética pura) a serem originais e genuínos artesãos, ou mesmo artistas.” Ernesto de Sousa admite que ainda não é tempo para diferenciação, mas caracteriza o trabalho de canteiro da Oficina de Quintino Vilas Boas, onde se “trabalha como na Idade Média, em perfeita e digna humildade artesanal: os filhos aprendem o ofício com os pais, e a noção da originalidade apaga-se inteiramente diante do realismo do trabalho.” Em contrapartida, identifica Franklin como um escultor de madeira: “Franklin é um ‘outsider’: a sua maneira de trabalhar e conceber o trabalho corresponde a uma outra preocupação criadora, a par de marcadas características lúdicas.” E já depois da morte deste em 1968, acrescenta: “Franklin correspondeu e ampliou com precisão toda uma teoria do imaginário ingénuo e primevo, que nos propúnhamos investigar. Artista e não artesão, até certo ponto excluído do seu meio –precisamente por inapetência artesanal e desregramento das normas sociais -, constituiu um caso típico de investigação estética, num meio não culto no modo literário. Com uma cultura, pelo contrário, forçosamente oral e mnemónica, as suas concepções correspondiam a uma informação ingénua –que constitui a base das nossas verificações teóricas. (...) O encontro com as coisas, com o mundo, era sempre um encontro primeiro, uma origem. Em Franklin realizavam-se assim as condições de um olhar ingénuo; (...) Como o propósito de todo artista ingénuo, e, aqui incluído, todo o artista popular, podemos a seu respeito falar de um cogito pré-reflexivo. O seu caso (entre muitos outros diversamente significativos) tornou-se assim paradigmático – dum meio rural determinado.” [13] Ernesto de Sousa assume a sua perspectiva de estudo sobre a “Escultura Portuguesa de expressão popular, histórica e atual”, como sendo da ordem da “deontologia de conhecimento estético”, que não é a do etnógrafo, nem do arqueólogo ou mesmo do historiador. [14] Em vez de partir dos pressupostos destas disciplinas, procurou nos artistas populares o imaginário e as técnicas que caracterizam a “escultura portuguesa de cariz popular” de “meios rurais determinados”. Ao mesmo tempo que conheceu artistas como Franklin Vilas Boas, Mistério e Rosa Ramalho, que caracterizou como “simultaneamente singulares e paradigmáticos”, também descreveu ser capaz que identificar autores e escolas na escultura portuguesa mais anónima. Distinguiu a escultura de expressão popular do artesanato e interessou-se pelas análises das suas influências “cultas”. Paralelamente, estudou o academismo e uma das suas manifestações particularmente viva no Norte do país: a atividade dos escultores-santeiros. Entre Janeiro e Março de 1968 deslocou-se por duas vezes a S. Mamede do Coronado (Santo Tirso) onde visitou, pela mão de Alberto Carneiro (1937-2017), as oficinas dos escultores-santeiros José Ferreira Thedim (1892-1971) – conhecido por ter feito a imagem de Nossa Senhora de Fátima – e de Adelino Moreira Vinhas. Apesar de terem uma origem sócio-cultural popular, a sua escultura é “culta” e canónica. Ernesto de Sousa associa-os com a cultura académica do séc.XIX e isso deve-se provavelmente ao facto de fazerem cópias. [15] Nas suas fotografias são evidenciadas as reduções ou ampliações próprias dos copistas, mas Ernesto de Sousa sublinha a questão do “acabamento” na arte académica e a sua associação com o “belo ideal”, em contraposição com a gestualidade das superfícies da arte moderna. É pelo empobrecimento do acabamento dito “académico” que Ernesto de Sousa menospreza a arte “culta” do escultor-santeiro relativamente à espontaneidade do artista popular, evidenciando por sua vez, a preocupação criadora deste último, a par de marcadas características lúdicas que o diferenciam igualmente do artesão, onde a noção da originalidade se apaga inteiramente diante do realismo do trabalho. A frase de Almada Negreiros “Sou um ingénuo voluntário”, ficou registada precisamente no texto que Ernesto de Sousa publicou sobre Franklin Vilas Boas Neto, identificando-o como o ingénuo involuntário. Ernesto de Sousa exalta o valor deontológico dessa memória cultural ingénua, identificando a história desta redescoberta com a história da arte moderna, livre dos academismos. Esta redescoberta da ingenuidade é salientada no final de um capítulo do relatório de bolseiro que entrega à Fundação Calouste Gulbenkian em 1968, onde relata o trabalho de Alberto Carneiro: “... o jovem escultor português, que tendo sido santeiro desde os dez anos de idade, se tornou um artista verdadeiramente criador e Moderno. Essa vitória de Alberto Carneiro, é evidentemente, uma complexa vitória contra a ‘cultura’ (académica), que inclui, além de um eminente e apaixonado autodidatismo, a passagem pelos cursos noturnos das escolas técnicas, e a formação como escultor pela Escola Superior de Belas Artes do Porto [1961-67]; mas também uma vitória contra a tecnologia cujo longo processo vamos descrever. Entenda- se que esta vitória só pode entender-se dialeticamente. É como a afirmação do humano contra a natureza: uma conquista da natureza sobre si própria.” Nesse mesmo ano de 1968 em que Ernesto de Sousa visitava, pela mão de Alberto Carneiro, os santeiros-escultores onde fizera a sua primeira formação, o escultor partia para Londres num momento representativo da recomposição das populações (nomeadamente da emigração portuguesa), numa vaga de artistas que saiam do país subsidiados pela Fundação Calouste Gulbenkian. Ernesto de Sousa descreve esta passagem: “Desde 1966 que descubro Alberto Carneiro. Com ele visitei e estudei os ‘imaginários’ de S. Mamede do Coronado. E fui tendo a surpresa e alegria (o espanto) de ir conhecendo as suas esculturas, até 1968. Chama e ternura, estruturas vegetais e terra, aquelas peças ainda hoje me fazem lembrar as próprias produções de S. Mamede do Coronado quando na fase do desbaste (antes do acabamento académico), e numa outra dimensão, as raízes e os ramos de árvore de Franklin Vilas Boas Neto (‘Só uma atitude naïf me interessa...’). Bruscamente (para mim que estivera dois ou três anos sem contactar com Alberto Carneiro, coincidindo precisamente com o tempo de mudança), em 1971, foi a ‘floresta’ da Bucholz. Dezenas e dezenas de troncos(centenas na minha memória) cortados a diferentes alturas enchiam o espaço da pequena galeria lisboeta, paradoxalmente aumentando-lhe os limites pela destruição sensível das paredes metamorfoseadas em horizonte indefinido. A exposição era acompanhada de um caderno de ‘projetos’ (o ‘Caderno Preto’) –única coisa transacionável: custava cem escudos e julgo que só se vendeu um exemplar... Numa das páginas do caderno via-se um grande plano do autor com as mãos em evidência e uma legenda onde se podia ler: ‘My hands have no meaning anymore’.” [16] Segundo consta do relatório de Ernesto de Sousa, Alberto Carneiro entrara para a oficina de santeiro de José Ferreira Thedim aos 10 anos de idade, depois de concluir a instrução primária. Até aos 12 trabalhou como aprendiz, a fazer colas e a lixar, sem ganhar dinheiro. Aos 12 anos começou a “pontear por grosso” e desbastar as costas dos santos (começou por uma Sra. De Lanka, padroeira do Ceilão)...mas tardaram ainda quatro anos até lhe entregarem as mãos e os pés. Aos 16 começou a “farpar” (desbastar com mais precisão) na oficina de Avelino Moreira Vinhas e só aos 20 começaria a trabalhar cabeças, mas por essa altura abriria uma oficina própria e voltaria aos estudos na Escola Soares dos Reis. Alberto Carneiro deixou deliberadamente a oficina de santeiro antes de saber fazer as cabeças. No “Caderno Preto”, onde Alberto Carneiro marca o seu percurso artístico, com partida para Londres em 1968 e o seu regresso ao Porto em 1971, deparamos com duas portas de entrada, duas fotografias do autor onde se lê: “My hands have no meaning anymore” “Within your eyes I am Art-Form-Feelings” Não é que lhe faltasse a destreza original do santeiro, mas a simbiose que procurava com a sua obra passaria simultaneamente por um processo de afastamento do seu lugar de origem –e que ocorre com um processo de aprendizagem formal até à finalização dos estudos na Saint Martin’s School em Londres– e pelo encontro com as experiências estéticas por si transportadas. No “Caderno Preto” escreve: “A mensagem varia com a alteração do sinal, mas este é determinado em função do espectador. O que eu lhe ofereço é um programa para ação. A significação e coisificação dos conteúdos está nele; é ele quem lhes determina os valores e as quantidades.” Será o entendimento da Arte enquanto teatro ou programa de ação, a indissociação entre forma-conteúdo e a extensão entre arte e vida (onde a ação é mais importante que o resultado final) que permitirá a Ernesto de Sousa passar do realismo crítico à vanguarda, entendida enquanto revolução profundamente transformadora. Desde logo o cinema regista imagens que, ao procurarem ser, se revelam. Esta dobra transforma o meio em medium. Transforma o documento em instrumento de pensamento. Mais disponível e menos final, a fotografia é simultaneamente um resultado e uma chave de leitura, documento visual e ferramenta de um trabalho de observação e pensamento que implicou a procura e o dar a conhecer, o levantamento e sistematização, a montagem e desenvolvimento teórico. Só assim se entende que uma diversidade de trabalho complementar possa ter surgido, tanto no que respeita aos paralelismos estabelecidos entre objetos e entre meios de trabalho, como relativamente ao experimentalismo acumulado pela diversidade do seu trabalho e que viria a resultar nos mixed-media. Este percurso da investigação sobre arte popular e escultura de expressão popular, na complexidade da sua condição fotográfica, permitir-nos-á compreender melhor a expressão “operador estético” com que Ernesto de Sousa se identificou.
Paula Pinto Doutorada em Estudos Visuais e Culturais pela Universidade de Rochester (N.Y., U.S.A.) e curadora independente. É fundadora e editora do projecto www.albumfotografico.net.
A exposição “A mão direita não sabe o que a esquerda anda a fazer...” está patente no castelo de Vila Nova de Cerveira, entre 15 de julho e 16 de setembro de 2017, integrada na XIX Bienal de Cerveira.
Notas [1] Ernesto de Sousa fundou um cineclube com o mesmo nome (Imagem), mas oito anos antes tinha já tentado legalizar o Círculo de Cinema (1946-1948), uma das primeiras sociedade fílmicas em Portugal. O cineclube Imagem tem os seus estatutos aprovados pelo SNI a 16/08/1956, tendo sensivelmente três anos de atividade (1954-1956). Os críticos da revista eram na sua maioria sócios ou até dirigentes do cineclube. |