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JORGE PINHEIRO - OBRA FIGURATIVA (1990-2010)ISABEL TAVARES2024-09-21
De tempos a tempos [1], Jorge Pinheiro regressa à pintura figurativa. A origem das imagens ou mais importante, o que elas originam no processo criativo do artista é para nós, uma das questões mais interessantes na obra do autor produzida entre 1990-2010. As personagens que habitam o discurso silencioso [2] de Jorge Pinheiro gritam na procura de interlocutores para se poderem revelar. É nas gavetas do atelier que se guardam e se revolvem em memórias, memoráveis e emergentes, críticas irónicas e mordazes mas sempre atuais em pintura (figura 1). A obra figurativa de Jorge Pinheiro não faz uma rutura com o passado mas com a forma de pensar esse passado. Revolvendo-o, olhando para si próprio, o artista revive o que incorporou do mundo e dos seus contemporâneos, a matéria de que se servirá para reencontrar o mundo e reconstituir um tempo comum, fora do tempo – A Eternidade Agora [3] – uma amálgama existencial que deslizando ao longo dos anos desde um passado longínquo até aos dias de hoje se vê descoberta, desviada, transformada, metamorfoseada e circunstanciada em composição pictórica. Recorrendo a modelos do Modelo, a nova figuração pictórica é a representação de imagens culturalmente produzidas em imagens obscuramente sonhadas no jogo da Composição e Representação (figuras 2 e 3). Os mitos e os valores simbólicos fazem-se representar na Pintura. São representações de representações, em nome das formas de poder da Composição e Representação: elementos fundamentais na História da Pintura. As Figuras-Símbolo da Representação apropriadas da Pintura, Fotografia, Cinema ou Fotojornalismo são ícones sublimados, corrompidos ou arruinados na obra de Pinheiro. A obra coloca em causa a sua legitimidade e em simultâneo reitera-a, reflete o conceito de originalidade, na identidade da obra; identifica os autores primeiros e faz pensar na autoria dos segundos, evidenciando a posição do artista em relação à sociedade e ao seu ofício com passado histórico. A imagem cultural prevalece no jogo da representação e do discurso estético porque o objeto de imitação não é um objeto, mas um ideal. A cópia rebelde impera como mola geradora de sentidos, de novos modelos que tende a expô-los desde a sua fundação. O pintor é como o Poeta, um fingidor. Reinventa a vetusta tradição como outrora o fizeram os grandes mestres e é reinventado o legado que Jorge Pinheiro constrói e continua o Mito, num território permeável, onde a Pintura chama à Pintura, à Arte e aos valores humanísticos do Ocidente (figura 4). Questionar a pintura figurativa de Jorge Pinheiro produzida entre 1990 e 2010 equivale a reequacionar a História e os valores estéticos e humanísticos da cultura ocidental. Falamos de um artista, cuja obra oscilou entre a figuração e a abstração com retornos sucessivos entre uma e outra. A pintura figurativa reiterada por focos e ecos referenciais designada de nova figuração remete para o suplemento em falta e para os conceitos de Obra, Género, Originalidade e Autoria e percorre a Estética, Filosofia, História e Cultura. A complexidade da obra figurativa de Jorge Pinheiro depende de quem a vê e como a vê. Pinharanda situa a obra Homenagem ao Povo Alentejano (1980) [Pintura] (figura 5) como sendo a primeira das pinturas do autor a assumir a citação como fórmula pictórica. Jorge Pinheiro, o Professor que aprofundou conhecimentos na semiótica da pintura, em 1979, regressa a Portugal e propõe aos seus alunos, para o ano letivo 1980-1981, um estudo da obra de arte, segundo o modelo estudado. Na carreira artística continua a trabalhar na abstração, mas sente esgotado o filão. A década de noventa marcaria a grande afirmação do autor no regresso à pintura de cavalete com temática diferenciada. “A sua pintura depois de ser incomodamente abstrata (até à primeira metade dos anos 70) tornou-se incomodamente figurativa.” [4] Por causa da temática, o mestre começa a ocupar um lugar isolado, no contexto da arte figurativa. Por um processo de Anamnese [5] e usando as ferramentas do seu ofício, Jorge Pinheiro constrói a obra de arte, a que melhor expressa a sua língua, a de todos, apropria-se dela como instrumento de luta com o qual pode contar para agir e denunciar paradigmas e constrangimentos, mas também, para a salvar. Salva-se a luz de outrora, em narrativas de – Era uma vez uma princesa [6] – o pretérito imperfeito que devora o presente progressivamente, e constitui momentos de paragem que incidem sobre a obra, sobre a memória, sobre a cultura e sobre a combinação da nossa visão da história que é única em cada um de nós, criando figuras de espelho continuamente outras, autobiografias impessoais de alguém como nós. O desejo do desenho [7] constitui-se como paixão. Em muitas exposições realizadas nos anos noventa Jorge Pinheiro impôs apenas uma pintura com os muitos desenhos e esboços preparatórios que lhe deram origem como Porquê? (março de 1991 a 2 de fevereiro de 1992) [Pintura] (figura 6) e onde é visível a composição sujeita a rigorosa malha geométrica ou perspetiva. Os muitos desenhos e estudos não podem ser vistos como inocente valor estético, eles marcam e afirmam um tipo de poder, expressão de uma civilização com valores ideológicos que remetem para a Escola, Academia e Universidade. Dar visibilidade ao desenho, em que é exímio, e não só ao objeto pictórico final, é promover a valorização do processo da obra e encontrar o lugar do desenho [8], igualando-o em estatuto ao da já consagrada pintura. Com Pathos [9] Jorge Pinheiro desenha em profusão, tenta apoderar-se do Ser do traço, do Sentido figural, assenhorear-se e servir-se de modelos do Modelo até os tornar outros em pintura. Os procedimentos alegóricos neobarrocos com que introspectivamente [10] trata toda a nossa História da Arte e da Cultura são uma fórmula eficaz de produzir ecos e ressonâncias, com todo o património ocidental a remeter para uma grande Fábula e o pintor a ser um criador/construtor/continuador de mitos (figura 7). Fábula, lenda, mito e religião perpassam na obra ambivalente e ambígua com outras formas de poder, ideais para se poder produzir os tão desejados comentários irónicos e mordazes. Estamos perante um autor manipulador de discursos simbólicos e representacionais com a Composição e a Representação a constituírem-se como modelos do Modelo, já que a tarefa do artista atual não consiste tanto em destruir o referente mas em subvertê-lo, encontrando novas soluções míticas narrativas. O que se nos depara é um novo horizonte de expectativa da realidade da imagem, onde se deteta ainda, um misto de desejo do real e desejo de irreal ou mistificação, uma luta pela organização da narrativa icónica dentro do espaço da composição, ilusoriamente remetendo para algo que não é ela, para de novo remeter apenas para si própria. Nas grandes telas do séc. XX e, mais ainda, nas da primeira década do séc. XXI, o aspeto retrospetivo da imagem mais do que saudosista, é antológico, representa uma perspetiva seletiva e recapituladora. Cada figura vale não por aquilo que é mas por aquilo que representa (figura 8). A história das imagens pode ser concebida como uma história do desejo e da vontade de poder e a memória essa será compreendida como material, como a pensou Nietzsche, um material plástico capaz de todas as metamorfoses. A apropriação nas telas do séc. XXI pode vir de uma frame do cinema ou do seu prolongamento na televisão, de uma fotografia, um desenho, cartaz ou reprodução muitas vezes já constituída como reprodução de reprodução. A obra subversiva justifica-se por recusar o primado de um original sobre a cópia, de um Modelo sobre a Imagem. Glorifica-se o reino dos simulacros e dos reflexos. Os mecanismos que o autor utiliza e o modo como é feita a revelação da imagem icónica provoca uma nova ocultação e o resultado que se obtém é uma intensificação do real e uma intensificação do olhar, um olhar sobre o olhar, imagem de imagens, operações de deslocamento da história, do referente do real, parte integrante de um discurso em que a reintegração do passado funciona como fator de re-avaliação do nosso horizonte de expectativa e, sendo um alargamento, é também, uma dissolução. É um jogo milenar, aquele que subjaz o discurso pictórico que leva o traço a construir o ícone que se torna duplo do real e suporte metafórico do pensamento mítico. Como tantos autores já o disseram, nós igualmente, e até o próprio assumiu, a obra será pessoal, individual, psicanalista, histórica, documental, circunstanciada, incómoda, mas, a estrutura projetual e conceptual subjacente, alicerçada nessa longa Composição [11] e Representação, confere-lhe um papel determinante, orientando a trajetória do objeto plástico para o espectador contemplador. Essa a razão porque Jorge Pinheiro sempre que sente necessidade de dizer alguma coisa volta à pintura figurativa. Apropriando-se das formas mais significativas do nosso património artístico e cultural, vamos encontrar na obra figurativa do autor, um pintor mais exposto estabelecendo ligações afetivas entre o objeto plástico e a pessoa que o pinta. E, na já longa carreira artística, a autorreferencialidade revela-se também, matéria pictórica que se abre como mais uma porta-memória onde se encontram outros porta-signos. Numa época em que o real e o virtual se confundem, o artista estrutura a obra d’après nature em d’après culture e torna-a Realmente Real, [12] estabelecendo a montante os tão desejados referenciais e a jusante diferenciais. O artista procura no espectador um leitor modelado mais do que um simples contemplador para reinterpretação de mensagens. Ao centrar a obra no discurso, está também a centralizar a mensagem visual no sujeito que a vê e lê e sobretudo, a procura. O pintor produz, o espectador iniciado de cultura, reproduz. A Composição enquanto disciplina é para o artista o objeto de desejo que garante o amor. Os símbolos mais significativos são os mais desejáveis. Inspirado pela verosimilhança do idêntico captura-se a adesão do amado, cujas respostas marcam a progressão da Ideia. O discurso sem histórias dentro… [13] que o autor nos quer fazer crer, confronta-nos precisamente com o seu contrário. O reconhecimento é o que fundamenta o signo e a linguagem pictórica surge em Jorge Pinheiro como forma de poder, como vontade de poder. A obra O Banquete (2008/2009) [Pintura] (figura 9) produzida para assinalar o centenário da República é composta por ícones e signos/símbolos de valores míticos nacionais. O autor constrói personagens fictícias na representação para o espectador confrontá-las com personagens reais, pela caracterização. A composição em jeito de Última Ceia [Ícone] e o título funcionam como valores de estímulo para o espectador modelado. O símbolo icónico apropriado não é senão máscara, apenas a imagem está próxima, mas o seu fundo é ideológico. Ao centro, como um iman, encontramos uma vez mais a figura do Ditador, Salazar. Nas muitas declarações que proferiu, vamos encontrar sempre um pintor com alma de professor, o Mestre admirado por várias gerações de estudantes e que lecionou na década de oitenta do séc. XX as Cadeiras de Pintura e Composição na FBAUL (então ESBAL). Da Cadeira de Composição à composição pictórica não há separação disciplinar. As duas bolsas de estudo da Gulbenkian e as coisas (vistas) lá fora [14] proporcionaram-lhe a abertura de novos horizontes. Aproximando a obra do Mestre desta fase à de outros artistas nacionais e internacionais de renome apercebemo-nos que na diferença que os separa há sempre algo que os une. Todos partem da apropriação, todos produzem obras d’après. O resultado nunca é um somatório mas sim um produto exponencial. Utiliza o desenho como forma de linguagem independente, desejando-o na sua incomensurável capacidade expressiva para fixar imagens, como coadjuvante da Composição, como outrora o fizeram os grandes mestres, servil e servindo de alicerce à representação figurativa. O estilo pictórico, tal como o fizera Poussin, é encontrado na pintura de cavalete que geralmente é destinada a um público intelectualmente mais restrito. O sentido inatual da Figuração e da Composição veiculam a metalinguística encontrada na representação pictórica, tão ao gosto do autor e representativa da arte e do estatuto do artista quando se intitula – O da Metalinguagem. [15] Com humor, alguma perversidade e ironia, o Mestre incita à reaprendizagem enquanto se deixa seduzir pelos modelos. A sua obra expressa intencionalidade e é quando somos enquadrados nela que o nosso modo de interrogar a pintura é por sua vez interrogado. O grito silencioso da revolta ou do constrangimento apazigua inconformidades do artista com responsabilidade social quando eclode em obra, em pintura que chama à Pintura, à visibilidade, ao Tempo, à verbalização. Interventivo na tela como na vida, procura fazer Sentido. Confrontar, julgar, comentar e denunciar em arte é existir, é extravasar em formas de liberdade. O olhar do artista é um olhar de Sentido, faz-nos viajar pelo conhecido, em liberdade, num património pautado pela “inatualidade” das imagens. A obra, indizível na sua realidade, acontece na tela, mas evolui para além dela. Com a consciência de estar no mundo, o artista ao ouvir a vida lá fora a dar murros na porta, não permanece indiferente e produz. A sua pintura é a sua Porta-Voz, silente grita! Em suma: a pintura de Jorge Pinheiro assume-se como lugar de descoberta. Descobrir no fundo de si mesma, o discurso pictórico e as forças exteriores que a atravessam; ou seja, as marcas da textualidade da imagem. Há que entender cada traço da textualidade não verbal como facto discursivo, como lugar da textualização do político e ideológico. A réplica empática das citações, os modelos do Modelo, a reprodutibilidade das expressões artísticas e todo o discurso que chega até nós através de simulacros, perfila-se sempre perante um fundo de cultura reconhecido. O que o inspira? A vida lá fora a dar murros na porta. O homem, o artista e o cidadão coexistem e usam a pintura como forma de expressão e reflexão sobre o mundo. A pintura de cavalete é sem dúvida, assumida pelo autor como forma determinante, para produzir uma exploração da arquitectura de mitos e os fragmentos históricos apropriados e metamorfoseados são o material de que se serve, para criar uma fábula que é levada a sério, durante duas décadas. O pintor é como o Poeta, um fingidor. Reinventa a vetusta tradição como outrora fizeram os grandes mestres e é reinventando o legado que Jorge Pinheiro constrói e continua o Mito e possibilita ainda a toda uma geração que se reveja e questione sobre o modo de estar no mundo.
Isabel Tavares
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Notas [1] De Tempos a Tempos (2014) [Catálogo] e título da exposição de Jorge Pinheiro realizada na Cooperativa Árvore, em 2014.
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Legendas das imagens Fig. 1 – Imagem manipulada de PINHEIRO, Jorge – O Jogo da Macaca III. (2004) Pintura : óleo s/tela, 140 x 220 cm (díptico). Ass./Dat. Coleção particular; A – CHAPLIN, Charlie – O garoto de Charlot. (frame) (1921) [Filme]; B – [s.a.] –[s.n.] O Garoto de Charlot (1921) Cinecartaz; C – CAPA, Robert – Morte de Soldado Miliciano. (1936) Prova fotográfica; D – GOYA – O 3 de Maio. (1814) Pintura : óleo s/tela, 268 x 347 cm. Madrid : Museu do Prado; E – CORBIS SYGMA – [s.n.] (1988) Prova fotográfica. Fig. 2 – PINHEIRO, Jorge – Stabat Mater. (2006) Pintura : óleo s/ tela, 162 x 130 cm. Coleção Galeria Palmira Suso. Fig. 3 – RODCHENKO, Aleksandr – O Couraçado Potemkin. (1925) Fotografia : prova fotográfica em gelatina de sais de prata. Fig. 4 – Imagem manipulada de PINHEIRO, Jorge – O Sacrifício de Isaac. (2002) Pintura : óleo s/tela, 130 x 162 cm. Ass./Dat. Coleção particular; A – STODDART, Tom – [s.n.] (1987) Fotografia. Londres : IPG; B – RODCHENKO, Aleksandr – Lily Brick. (1924) Cartaz. Nova Iorque : Museu de Arte Moderna. Fig. 5 – PINHEIRO, Jorge – Homenagem ao Povo Alentejano. (1980) Pintura : óleo s/tela 149,5 x 179,5 cm. Ass./Dat. Coleção particular Fig. 6 – PINHEIRO, Jorge – Porquê?. (março de 1991 a 2 de fevereiro de 1992) Pintura : óleo s/tela 130 x 162 cm. Ass./Dat. Coleção Leontina George. Fig. 7 – Imagem manipulada de Solus Ipse. (1993/1995) [Pintura] A – Estela Funerária dita de Filino. (séc. II a.C.) Escultura (baixo-relevo) Atenas; B – BÖCKLIN, Arnold – A Ilha dos Mortos. (1880) Pintura [1ª versão]: óleo s/tela, 111 x 155 cm, Kunstmuseum, Basel; C - BÖCKLIN, Arnold – A Ilha dos Mortos. (1880) Pintura [2ª versão] óleo s/madeira, 74 x 122 cm, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque; D – BÖCKLIN, Arnold – A Ilha dos Mortos. (1883) Pintura : [3ª versão] óleo s/madeira, 80 x 150 cm, Alte Nationalgalerie, Berlim; E – BÖCKLIN, Arnold – A Ilha dos Mortos. (1886) Pintura : [5ª versão] óleo s/madeira, 80 x 150 cm, Museum der bildenden Künste, Leipzig; F – DALI, Salvador – The Real Picture of the Isle of the Dead by Arnold Böcklin at the Hour of Angelus. (1932) Pintura : óleo s/tela 77,5 x 64,5 cm, Von der Heydt Museum, Wuppertal, Alemanha. Fig. 8 – Imagem manipulada de La Fable de La Fontaine. (2000) [Pintura]; A – DUCHAMP – Fontaine. (1964) Ready-made (réplica do original de 1917); B – QUARTON, Enguerrand de – Pietà. (c. 1455) Pintura : óleo s/ tela. 162 x 218 cm, Museu do Louvre; C – STERNBERG, Josef von – O Anjo Azul. (1930) [Filme (Frame)]; D – DIETRICH, Marlene – O Anjo Azul. (1930) [Cartaz]. Fig. 9 – PINHEIRO, Jorge – O Banquete. (2008/2009) Pintura : óleo s/ tela 1,95 x 2,68 m |