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O ARQUIVO: A EXPOSIÇÃO QUE QUER SER TÁTIL. LIVROS PARA QUE TE QUERO?INÊS FERREIRA-NORMAN2022-06-30
Livros Objetos impressos Caso especial: Point d’ironie
Prelúdio O arquivo é uma componente de bibliotecas (e outras instituições) que sempre me fascinou, mas infelizmente, não desde muito cedo. Onde e quando eu cresci, as bibliotecas definhavam quer em espólio, quer em públicos, e as que me rodeavam estavam cheias de livros de ficção e enciclopédias generalistas de muitos volumes que não me interessavam pelo seu discurso generalista e superficial. Não me foi explicado que bibliotecas são também museus e a primeira vez que ‘pus as mãos’ numa coleção de um arquivo foi em Dorking, Surrey (Reino Unido), onde vivi quase dois anos, e pude ver e tocar em todo o arquivo de pautas musicais de Vaughan Williams e outros mais compositores que ali se encontravam (hoje em dia este espólio encontra-se ainda em Surrey, mas foi transferido para Epsom). O cheiro era inconfundível: papel antigo e higienizado colocado em alcatifas institucionais. Mas a experiência tátil, foi uma viagem sensorial no tempo, pois tocar nas mesmas folhas que o compositor tocou foi como tocar nos seus próprios dedos.
O arquivo vivo Em Arquivo Perpétuo: as publicações e os projetos editoriais de Hans Ulrich Obrist [1]: Hans Ulrich Obrist tem na sala de exposições da Biblioteca de Serralves até agosto uma exposição do seu arquivo. Este é um todo um projeto em si mesmo cujo processo é possível conhecer através do seu blog. Obrist é um curador marcante, importante e inegavelmente inteligente. Trabalha com os temas vanguardistas da arte em qualquer que seja a década, sendo a vanguarda muitas vezes a sua voz, mas o seu vincado interesse em publicações é para mim o que o torna um curador exemplar, aquele que enverga o ‘Obrist factor’. Numa era em que tudo se torna digital, numa era em que até as experiências táteis ou sensoriais se querem digitalizadas através de capacetes de realidade virtual e sensores 3D, o meu saudosismo pelo poder da palavra tátil leva-me a investigar e refletir sobre a tenacidade desde curador e de Sónia Oliveira, coordenadora da Biblioteca de Serralves. Este é um tema que me preocupa, a vida e relevância do arquivo, do acesso às publicações, do acesso tátil aos livros de artista e material impresso, e a disseminação real (versus virtual) do seu conteúdo. Em outubro de 2019, escrevi aqui mesmo na Arte Capital, ‘Problemas na Era da Smartificação: o arquivo e a vida artística e cultural regional’ e coloquei várias questões que esta exposição museológica do arquivo de Obrist respondeu, expandiu ou agravou. Vou revisitar estas questões. 2019: Pergunto-me qual é o valor que a correspondência entre e sobre artistas terá num futuro não tão distante? 2019: Como valorizar a vida pessoal do artista? 2019: Caberá, hoje em dia, ao artista imprimir esses e-mails importantes para marcar esses momentos? 2019: Será a imortalidade virtual o advento do novo formato de arquivo? O Point D’Ironie foi dos poucos objetos nesta exposição que me senti convidada a tocar. Trouxe também (não sei se com autorização) uma cópia de ‘Hurricane’ de HUO e Rirkrit Tiravanija, editado por Danny Snelson & Kenneth Goldsmith, e publicado por /ubu editions. No entanto após verificar no seu site a ubuweb afirma: ‘o nosso servidor e banda larga é doada por um grupo de intelectuais que pensam da mesma forma e acreditam no acesso livre ao conhecimento’ [4]. São praticantes abertos de pirataria artística e acreditam na disseminação da obra de arte, por isso, penso que ninguém virá correr atrás de mim à procura de um poema lascivo impresso ou fotocopiado em folhas de escritório A4. A questão que daqui emerge é mesmo se a valorização e disseminação são objetivos que se impedem. O projeto Point D’ironie tem uma relevância única pelo feito histórico da aproximação industrial à obra de arte e a pura dimensão relativamente à quantidade de pontos de distribuição. As correspondências pessoais por detrás de uma redoma são valorizadas através da sua museificação. E então este poema Hurricane? E então o livro ‘Hans Ulrich Obrist archive: A visitor’s guide’ cujo valor é guiar o visitante pela exposição, mas estava interdito o seu acesso, por culpa da redoma museológica? A verdade é que o material impresso tem uma dimensão distinta do livro, sendo Point D’Ironie e Hurricane híbridos, não consigo responder a esta questão.
Ouvir os Livros (em caixas): ‘Tenho mofo para dar e vender, queres pó de que país? É que HUO é bem viajado, se quiseres podes guardar numa urna e depois espalhas no oceano quando o livro morrer’ Os livros querem ser tocados, cheirados, lidos, vistos: são objetos tão completos, tão generosos. A nossa relação (tátil) com os livros começou – discutivelmente – na China quando o papel foi inventado cerca de A.D. 105. Já lá vão quase dois milénios. A história da tactilidade mudou radicalmente em 1965 quando E.A. Johnson inventou a primeira tela/ecrã sensível ao toque. É incrível como em meras 4 décadas versus 2 milénios, o interesse pelo livro enquanto objeto cultural se polarizou tanto: cada vez lemos mais em aparelhos, ignorando o objeto em si, ou temos de nos deslocar a museus para termos encontros de 2º grau com estes. Digo de 2º grau, pois numa exposição museológica, não lhes podemos tocar. E aí, falha a democratização que foi intencionada para os livros que por norma são expostos nestes contextos. Na exposição do arquivo de HUO há duas exceções, Hurricane e Point d’Ironie, as quais até podemos levar para casa, mas frustrou-me bastante não poder desfolhar (entre outros) ‘Hans Ulrich Obrist archive: a visitor’s guide’. Dentro de uma redoma, este livro gritava sem ninguém o ouvir. Há ainda, uma tábua de salvação, como as Bibliotecas de Serralves e da Gulbenkian (em Portugal) que permitem consultar sob pesquisa e luva branca exemplares fantásticos da história dos livros, e aí encontros de 1º grau acontecem... no entanto é necessário alguma bagagem para este encontro ser bem sucedido, enquanto que o propósito de uma exposição deveria ser facilitar a construção dessa bagagem. Em 2022, desfolhar (mesmo que com luvas) livros únicos, ou com história, ou com valor cultural, é uma experiência tão forte que em minha opinião é necessário ser incentivada. Compreendo a dificuldade de o fazer, não podemos ignorar a necessidade da conservação, mas talvez este seja um bom pretexto para o design de exposições realmente inovar com uma curadoria ‘humanizada’, e não necessariamente reverter a mais uma experiência digital que acaba sempre por ser proxy. A exposição de arquivo é um dos tipos de exposição que mais desesperadamente precisa de inovação na tactilidade. A exposição de arquivo não é como uma exposição de pintura, de escultura. É uma exposição íntima, que requer intimidade. E vitrines não são permissivas, mas sim obstáculos à intimidade. Este foi um dos muitos princípios que me fez apaixonar por livros de artista: são obras de arte íntimas. As ideias serão muitas se as perguntas forem feitas às pessoas certas e o valor dado à experiência tátil. E com génios como HUO apoiados pela dedicação e conhecimento de pessoas como Sónia Oliveira, imagino o quão rica e extraordinária seria tal experiência. Esta é uma reflexão sobre tatilidade, somente um aspeto da curadoria de uma exposição que é fantástica e que vale a pena ver e ler. Sentimos a flexibilidade, o cuidado vasto que este curador tem para com as relações com as pessoas com que se cruza, e vê-se claramente o trabalho que foi dedicado a tornar a leitura deste arquivo numa experiência dinâmica. E esse é todo um caminho feito e já percorrido em direção ao acesso íntimo da obra de arte, e consequentemente, no contexto do arquivo, ao material impresso e aos livros que nele cabem. Generalizando esta experiência que adicionei à minha bagagem relativamente ao livro de artista, penso que hoje em dia é necessário que mais pessoas experienciem tais relíquias, quer pelo contexto digitalizante que estamos a sofrer enquanto sociedade, quer porque o processo tátil é sensorial e fenomenológico, o que implica que ganhamos conhecimento desta forma. Para não falar de que este é um direito que estamos a negar predominantemente ao próprio livro: este que quer ser manuseado, descoberto, lido, em nossos corações completamente guardado.
Inês Ferreira-Norman
::: Notas e Referências bibliográficas [1] Pamfleto da exposição em Serraves ‘Ever Archive: The Publications and Publication Projects of Hans-Ulrich Obrist’ [3] tradução livre de http://www.pointdironie.com/origine_en.php [4] https://ubu.com/resources/about.html The HUO Archive
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