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LOUISE BOURGEOIS DESLAÇAR UM TORMENTOMANUELA HARGREAVES2021-01-01
Penso que o trabalho de Louise Bourgeois é indissociável das questões de género que dominaram as artes visuais dos anos 60, 70 e depois, masculino/feminino, amor/ódio (nas suas relações com a mãe e o pai), o corpo e as suas dores, no entanto vai mais longe. Já nos anos 40, numa década ainda embrionária para as questões feministas, realiza uma série de obras a que chamou “Femmes Maison”, figuras femininas cujos corpos consistiam parcialmente numa casa, referência ao estatuto social das mulheres e ao seu estatuto de domésticas, explorando o mesmo tema na escultura. Mas englobar a obra de Bourgeois no estereótipo feminista parece-me demasiado restrito; a sua vasta criação artística não cabe nessa tipologia. A identidade de género é camuflada em ambiguidade, de género neutro ou ambissexual, em “Maternal Man” (2008), obra em que o corpo apresentado é em simultâneo Homem/Mulher, carregando um ventre cheio e um pénis, ou ainda “Fillette”(1968), escultura fálica em latex, posteriormente recriada em final dos anos 90, de formas sexualizadas não claramente femininas ou masculinas, evocação de um mundo sexual indiferenciado e polimorficamente perverso. A utilização de materiais, estranhos à tendência mainstream da escultura – latex, borracha, gesso, cimento, argila, cera, que práticamente não tinham ainda sido utilizados, são meios para criar objetos poderosamente tácteis e sugestivos, no entanto ligados a uma linguagem formal abstrata. Ao abandonar Paris, onde descobriu com Léger o seu destino de escultora, por via do seu casamento com o historiador americano Robert Goldwater deixa para trás uma história de vida, que irá constituir matéria de criação para grande parte do seu trabalho posterior. “Personages” (1947-54), grupos de esculturas antropomórficas, variantes do totemismo, nas suas formas esguias e verticais, são as que têm maior recuo temporal nesta exposição, e datam dos primeiros anos da vivência em Nova Iorque. A morte precoce da mãe, um pai mulherengo e cruel, levam-na a fazer psicanálise durante várias décadas. A sua obra é disso reflexo. “Deslaçar um Tormento” é uma obessão transversal na sua criação, “eu tenho sido uma prisioneira das minhas memórias e o meu objetivo é livrar-me delas” (não será o objetivo de todos nós?). O peso da memória é exorcizado nas diversas práticas artísticas que realizou, num teatro em miniatura, encenado em séries de instalações com assemblages do seu mundo quotidiano (“Cell I e II”/”The Destruction of the Father”/”Le Defi”, etc), e na escultura informe, (“The Quartered One”, “Avenza revisited”). Esta lógica obsessivamente posta em prática com objets trouvés e artefactos, construindo um teatro autobiográfico de memórias, é um dos processos centrais do seu trabalho criativo. Nos anos 60, levou o tema doméstico mais longe em “Lairs” (Tocas), lugares de abrigo, e de refúgio do mundo exterior, simbolicamente aqui representado por “The Quartered One”(1964-65), escultura informe, suspensa, com aberturas, que na sua origem foi pensada para o exterior em ondulação tranquila com o vento suave, transmitindo uma sensação de segurança.
Vista da exposição Louise Bourgeois: Deslaçar um Tormento. @ Ricardo Raminhos, cortesia Serralves.
Quando Lucy Lippard incluiu obras desta série na mostra “Eccentric Abstraction”, na Fishbach Gallery em Nova Iorque, em 1966, os trabalhos de Bourgeois tomaram finalmente um lugar no discurso feminista. Esta designação criada por Lippard, de um novo termo artístico, no qual se baseou a exposição, marcou uma crítica feminista e orgânica ao Minimalismo, e o começo do Pós Minimalismo. Lippard definiu-a como uma exploração da experiência sensual, evocando alguns dos temas do surrealismo mas sem as conotações literárias do surrealismo, a exploração de propriedades formais e materiais, da arte não objetiva. Alusões ao corpo sexuado, formas abstratas e orgânicas na escultura, materiais como o feltro, latex, vinil, borracha, ou fibra de vidro, evocam atributos físicos como suavidade, macieza, dilatação, inclinação, abatimento.
Vista da exposição Louise Bourgeois: Deslaçar um Tormento. @ Alexandre Baptista
Lippard, no seu núcleo de metodologia, criticava também as estruturas de poder e o domínio do patriarcado, e usou ferramentas para falar da importância de todos os aqueles que se rotulavam de Outros (negros, latino americanos, LGBT, etc.). Bourgeois teve um papel determinante nesta exposição; segundo Lippard o seu trabalho tinha-se orientado na direção da “Eccentric Abstraction” desde os anos 40, pelas suas qualidades corporais/viscerais, assim como por meio de um vínculo ao Surrealismo Europeu, e a trabalhos como “Fur Teacup” de Meret Oppenheim, objeto de forte conotação sensual e erótica. “Orgânico”, “Erótico”, Sensual”, foram as palavras que a crítica de arte usou para descrever o trabalho de Bourgeois, e a sua quase visceral identificação com a forma, capaz de ativar as sensações físicas mais poderosas. Desta época resulta a série “Janus”, representada em Serralves, com a peça “Hanging Janus with Jacket”(1968), alusão mitológica ao deus romano Janus de duas faces, olhando em direções opostas, vulnerabilidade e fragilidade do corpo em suspensão, a dureza de uma poderosa capa metálica, representam opostos que se fundem num só género. Em “Destruction of the Father” (1974), instalação de carater dramático e canibalesco, fantasia de devorar um pai infiel, o latex utilizado nas formas redondas iluminadas por uma luz vermelha, serve uma dupla função transversal na obra de Bourgeois, transmitir agressividade e vulnerabilidade. Esta dualidade contraditória, mas ao mesmo tempo tão humana, é um registo/marca da liberdade poderosa com que experimentou novos materiais e formas. Os temas da memória e dos conflitos de infância são recorrentes, e “Cells”, instalações que realiza em meados dos anos 80, salas enigmáticas encerradas por redes ou paredes com janelas de vidro, contêm um duplo significado, são formas de organismo vivo e de confinamento, frequentemente lugares de contemplação da dor física, emocional, psicológica. Salas/quartos que lembram os “Wunderkrammer” do século XVII (gabinetes ou vitrinas, alegorias de curiosidades), contêm objetos usados como instrumentos de memória, e convidam o espetador, a apenas a alguns centímetros do nosso olhar, a prestar uma atenção curiosa, mas ao mesmo tempo preservar os seus conteúdos. O espetador debate-se entre a imersão e o distanciamento. Os conteúdos emocionais do corpo são captados nas suas tensões, como acontece em “Cell III” (1991) na figura arqueada com os dedos crispados, e pouco depois em “Arch of Hysteria” (1993), obra de cunho subversivo, na representação de um torso sem cabeça suspenso precariamente por um fio, em posição arqueada (posição do corpo “histérico”), os braços ao encontro dos pés formando um círculo, a histeria normalmente associada à história clínica da mulher é aqui apresentada assexuada. Desta tensão entre os elementos autobiográficos e uma sintaxe metafórica complexa, resultam as gigantes “Spiders”, produções mais recentes, que fornecem ao observador um écran de projeção da sua própria memória. “Maman”, a escultura da aranha gigante, dedicada à sua mãe, é uma metáfora que se alimenta do interior, numa sucessão de reparações/cuidados com a teia.
Vista da exposição Louise Bourgeois: Deslaçar um Tormento. @ Alexandre Baptista
Em 1982, já com 71 anos, e depois de ter consolidado a sua posição na cena artística nova iorquina, o MoMA realizou a primeira grande exposição retrospetiva. O estatuto internacional foi confirmado na Europa com a Documenta de Kassel (92) e na Bienal de Veneza (93). Os seus desenhos com pinturas aguareladas “I Give Everything Away” (2010), realizados já em final de vida, domínio de vermelhos orgânicos, e azuis de um interior espiritual, são a afirmação de uma poética artística de despojamento, “Eu dou tudo/ Distancio me de mim mesma/ Daquilo que mais amo/ Abandono a minha casa/ abandono o ninho/ estou a fazer as malas). Do mesmo período “The Birth”, contém em cor única, um vermelho que se alastra do corpo ao feto, toda a beleza do nascimento. Entretanto o mundo continua a existir no seu inexaurível mistério.
CHADWICK, Whitney - Women, Art and Society. London: Thames & Hudson world of art (third edition), 2002.
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LOUISE BOURGEOIS: DESLAÇAR UM TORMENTO
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