|
LIGHTLESS (QUANDO NÃO HÁ LUZ) DE SARA BICHÃOMAFALDA TEIXEIRA2024-07-14
Questões de apropriação, reconversão e transformação de objetos perpassam a prática artística de Sara Bichão e revelam-se no corpo dos novos trabalhos de Lightless através da incorporação de materiais que, submetidos a uma recontextualização, guardam memórias e histórias num processo de trabalho emocional que suga as memórias dos objetos ou a ação passada que eles tiveram [2]. Realizadas com materiais extraídos da natureza - provenientes do Parque de Serralves – e das áreas técnicas, bem como de uma série de exposições organizadas nos últimos anos pelo Museu de Serralves, as obras presentes na exposição traduzem - numa lógica de reciclagem e reaproveitamento - a ideia de encontro e de experiência do lugar. O interesse da artista em trabalhar de acordo com o metabolismo da natureza; a atração por determinadas matérias que casualmente encontra e o fascínio pelas memórias, estão na génese de um processo criativo singular que se converte em corpo, cor e linha e motivaram o convite para a realização de uma série de residências artísticas em Serralves. Por diferentes períodos, ao longo de um ano e meio, Sara Bichão ocupou uma pequena sala convertida em atelier na quinta da Fundação de Serralves onde, imbuindo-se do ambiente único do museu e da sua envolvente natural, acompanhou os ritmos da natureza e mudanças sazonais, ao mesmo tempo que desenvolveu um trabalho de prospeção nas reservas da instituição. O reaproveitamento de materiais remanescentes e a preocupação ambiental da artista revelam uma dimensão social e política do seu trabalho que pode ser lida como uma crítica ao consumo desenfreado e ao desperdício que caracterizam muitos aspetos da vida contemporânea, estando também implícita uma crítica aos custos excessivos da produção artística contemporânea que vê a arte como mercadoria comercial. Através de meios modestos, recorrendo ao uso de materiais reciclados e matéria orgânica, Sara Bichão incita-nos a repensar os nossos valores e a aproveitar o tempo para ver o que pode estar silenciosamente à espera da nossa atenção, mediante um processo de trabalho que reivindica a arte como um ato de resistência, uma ferramenta para desafiar as normas estabelecidas e promover uma consciência coletiva sobre a importância da sustentabilidade e do respeito pelo meio ambiente [3]. A este propósito Inês Grosso sublinha a importância de Lightless por ter permitido olhar de forma criativa para os nossos recursos e tentar perceber, num momento de sustentabilidade, como se pode fazer uma exposição a partir do que está a nossa volta. Como podemos olhar para o mundo com outros olhos e dar atenção às coisas mais simples que nos passam despercebidas [4]. Como uma caverna ou um refúgio, Lightless mergulha-nos, num ambiente imersivo dominado pela penumbra e a cor azul, numa evocação da noite e dos seus mistérios. Caminhando ao longo da galeria constatamos a existência de perfurações que nos fazem viajar para fora da sala, possibilitando uma visão expandida daquilo que nos envolve e entender a proposta de Lightless como uma procura simples e básica de vida, que se traduz numa exposição que respira e que não só é um eco, mas também o reflexo do seu oposto [5]. Numa relação entre materiais, vestígios e memórias observamos os trabalhos em exibição criados a partir de material inerte e pedaços de obras de outros artistas que Sara resgatou, intervindo sobre os mesmos, atribuindo-lhes novas formas, cores e significações. De entre os objectos pré-existentes destacamos a incorporação, à entrada da galeria, de uma cortina de lamelas de PVC proveniente da área técnica do museu, ou as mangueiras - usadas por outro artista numa instalação - às quais aplicou luzes LEDS azuis de edições anteriores do evento Serralves em Luz para criar uma luz líquida representativa da noite e que suspensas no teto, trespassando as paredes da sala, produzem um desenho serpenteado no espaço.
Sara Bichão Lightless, Museu e Sacristia da Capela da Casa de Serralves Fundação de Serralves, Porto. © nvstudio
A relação forte com o corpo é evidente na obra de Sara e nos trabalhos em exibição: seja o seu próprio corpo que molda as esculturas, que cose os tecidos e que tenciona os materiais; seja através de referências a corpos ausentes, amorfos e inextinguíveis, que amontoados no chão e ao centro marcam uma situação de anulação ou de fim (Tumba, 2024); ou até na presença de um corpo suspenso e em formato de metamorfose (Casulo, 2024). A inspiração e reação da artista à envolvente do Museu durante o período de residências em Serralves - ao saibro, ao cheiro das uvas ou à cor rosa da Casa de Serralves – traduzem-se em obras como Um, 2024 espelho sobre o qual aplicou tinta rosa ou Oásis, 2024 peça de tamanho idêntico ao espelho, realizada com os azulejos verde-água que revestem a fonte do Parterre Lateral e onde através de um pequeno buraco podemos observar como voyeurs a massa natural que circunda o museu. Destaque para o conjunto de esculturas em saibro - muito presente em Serralves, nas suas avenidas e ruelas de tom laranja - intituladas Pedras e que representam dez crânios petrificados que nos observam na penumbra com os seus olhos luminosos, num confronto e diálogo de olhares com o espetador. A propósito desta obra e influenciada uma vez mais pelo entorno - dada a proximidade do atelier da Quinta de Serralves ao Bairro da Pasteleira - pela imagem de miséria e de decadência humana que a perturbavam, a artista começou a trazer, ainda que de forma subtil, algumas nuances para o projeto. É o caso destas cabeças, estes crânios desfigurados são os rostos da miséria e da perda de identidade [6]. Na sua dimensão escultórica, o trabalho de Sara Bichão revela-nos - sobretudo nas instalações e situações espaciais que cria – uma componente gráfica, assumindo-se o desenho como elemento relevante, sempre presente na obra e forma de pensar da artista. Estendendo-se à sala da sacristia da Capela da Casa de Serralves observamos, num segundo momento expositivo, o conjunto de desenhos que se traduzem como extensões do seu pensamento e se relacionam diretamente com a exposição. Ecos visuais e conceptuais das esculturas, reconhecemos em alguns as cabeças petrificadas e o casulo, noutros observamos a presença constante do triângulo enquanto representação simbólica do percurso que a artista fazia durante o período de residência: atelier-Casa de Serralves-Museu. A apropriação de cartões sobre os quais desenha; o uso de carpetes e pregos; as molduras provenientes de outras exposições; a presença do saibro e da tinta rosa da Casa de Serralves, todos estes elementos que compõem a série de desenhos traduzem-se num fazer artístico que conserva a mesma identidade e filosofia de reaproveitamento das obras escultóricas anteriores, mantendo a componente artesanal, gestual e emocional de uma prática artística singular.
Sara Bichão Lightless, Museu e Sacristia da Capela da Casa de Serralves Fundação de Serralves, Porto. © nvstudio
Da escuridão da Galeria Contemporânea à luz arrebatadora que entra pelo enorme janelão circular da Capela da Casa Serralves, o título da exposição Lightless encerra a dualidade entre a presença e ausência de luz, numa mostra que dominada por contrastes - vida/morte; peso/leveza; interior/exterior; visível/invisível; luz/escuridão – apresenta várias dimensões, planos de entendimento e de ação. As experiências do quotidiano, da vida e a inter-relação entre natureza e cultura, manifestam-se numa exposição que, mais do que tudo, sente-se revelando-nos o entusiasmo pela revolução criativa proveniente da fricção e da liberdade em ser testada de Sara Bichão.
Mafalda Teixeira
:::
Notas [1] Inaugurada a 12 de junho a exposição estará patente até 3 de novembro de 2024.
|