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UPLOAD: BEUYS' MYTHOLOGY (WHO'S AFRAID OF FAT, FELT AND DEAD HARES?) - PARTE IIPEDRO CABRAL SANTO E NUNO ESTEVES DA SILVA2020-06-25
[esta é a segunda parte do artigo "Upload: Beuys' Mythology (Who's Afraid of Fat, Felt and Dead Hares?)", as restantes partes podem ser acedidas aqui: Parte 1, Parte 3]
Se os primeiros anos do pós-guerra foram de absoluta devastação para a Alemanha, para os aliados, e em particular para a esquerda americana, foram inicialmente um momento de grande euforia, mas que rapidamente se desvaneceu. A vitória dos aliados parecia então poder unir, contra o fascismo, a estratégia da Frente Popular e o espírito do New Deal, liberais e radicais, os Estados Unidos e a União Soviética: a construção de um «novo mundo» pareceu por instantes possível [1]. No entanto, no final da guerra, os Estados Unidos e a União Soviética podiam igualmente emergir como potências suficientemente fortes para dividir entre si o mundo, dando assim origem à realidade da guerra fria: nesse contexto, de acordo com a política de contenção de Truman, a América promovia o derrube de governos comunistas, enquanto simultaneamente apoiava ditaduras e colonialismos [2]. Isto era inaceitável para a esquerda radical, assim como para muitos liberais [3]. Por outro lado, internamente, os comunistas americanos passaram a ser olhados com desconfiança, e a constituir motivo de desunião entre a esquerda: o resultado foi um breve período marcado por intensa discussão ideológica, mas também por crescente pessimismo e divisão [4]. Simultaneamente, uma onda de greves sem precedentes varria a América[5]. A reação não tardou: em 1946, os republicanos vencem as eleições para o congresso, e os sindicatos são reprimidos [6]. Apesar de os democratas recuperarem o congresso em 1949, o ambiente político americano tinha virado duradouramente à direita. A esquerda sofreu um grande golpe. No entanto, apesar de uma posição extremamente desfavorável, muitos dos debates e causas provenientes das décadas anteriores puderam ser prosseguidos e aprofundados. Durante a década de cinquenta, o movimento dos direitos civis conhece um grande desenvolvimento, traduzido não só no seu crescimento, como também em importantes vitórias, que culminarão na década de sessenta [7]. O movimento revelou-se muito influente, mostrando as potencialidades de uma organização descentralizada [8]. Por outro lado, tal como mostra Michael Denning em The Cultural Front, o legado cultural da Frente Popular revela-se persistente, formando a base não só do que se chama contracultura como de um certo sentido comunitário e de resistência entre os meios artísticos [9]. A evolução da situação política internacional também exerceu a sua influência, em particular a intensificação da luta contra o colonialismo, as experiências de autogestão na Jugoslávia, e os acontecimentos no bloco soviético, como a denúncia de Stalin por Khrushchev e a revolução húngara, em 1956. Um outro fator foi a influência da Escola de Frankfurt, que durante a guerra se tinha exilado na América. Por fim, no início da década de sessenta, a esquerda reorganiza-se: em 1962, o Port Huron Statement assinala a emergência da New Left [10]. Os artistas americanos, em particular aqueles que associamos ao expressionismo abstrato, não eram apolíticos, integrando-se totalmente no contexto cultural que definiu a Frente Popular: num percurso semelhante à generalidade dos intelectuais americanos, tinham-se distanciado da estética realista do estalinismo ao longo das décadas de trinta e quarenta, mas não viam a sua prática artística como desligada de preocupações políticas; pelo contrário, os debates das décadas de trinta e quarenta procuram uma nova articulação do político [11]. Esses debates não estavam longe daqueles que, num contexto semelhante, eram prosseguidos por Adorno ou Benjamin [12]. Mas, nos anos que se seguiram ao fim da guerra, como vimos, a situação política tinha-se alterado profundamente. Não só já não havia espaço para o otimismo progressista, como qualquer associação com a esquerda motivava, no mínimo, reações de censura [13]. Durante a guerra fria, a arte foi uma das ferramentas utilizadas pela América para afirmar a sua hegemonia [14] – uma arte regida por valores entendidos como distintivamente americanos, como a liberdade e o individualismo, o que se traduziu na institucionalização de um modernismo que corta explicitamente com a dimensão política presente nas expressões mais radicais do modernismo histórico, assim como com a orientação realista da arte soviética [15]. Nesse contexto, no qual as forças conservadoras viam tanto a arte moderna como o comunismo como ameaças, um grupo de sofisticados patronos [16], jovens agentes da CIA [17], e especialistas [18] compreendeu que era possível instrumentalizar politicamente a arte americana: tratava-se de – estratégia então usada com a esquerda em geral – converter o distanciamento em relação a Moscovo, a desunião e a desilusão política dos artistas, no mito de uma arte apolítica, promovida internacionalmente como paradigma da liberdade americana [19]. Mas, se do ponto de vista geoestratégico a ofensiva cultural é um sucesso, o corte com a dimensão política subversiva do modernismo apenas poderia ser provisório ou ilusório [20]. Na verdade, durante a década de cinquenta, a lógica política proveniente dos debates artísticos das décadas anteriores acabou por se aprofundar, fora dos centros institucionais. Um dos veículos desse aprofundamento foi a reativação de elementos do dadaísmo e do surrealismo, transmitida, através de Marcel Duchamp e John Cage, para jovens artistas como Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Jim Dine, Claes Oldenburg e Allan Kaprow: a consequência foi a emergência, no final da década de cinquenta, de novas correntes artísticas, como a pop e o minimalismo, e de novas práticas, como o happening, que questionavam o estatuto do objeto artístico e as modalidades de envolvimento subjetivo, tanto do artista como do espetador [21]. Isto resultava, por um lado, da recusa, por parte dos jovens artistas, do discurso oficial da propaganda americana e, por outro, da influência exercida pelas novas movimentações sociais e culturais – os movimentos dos direitos civis e a contracultura – que, mais do que traduzirem-se em termos de fidelidade ideológica, produziam uma profunda reconfiguração da própria subjetividade [22]. Deste ponto de vista, podemos entender a dinâmica da arte americana do pós-guerra como o desenvolvimento – à margem do discurso oficial, que promovia uma imagem fortemente centrada numa subjetividade quase transcendental, animada por uma lógica teleológica – de uma imagem progressivamente descentrada. Imagem, nesse descentramento, simultaneamente sintonizada com o novo entendimento do envolvimento político que se disseminava já à escala mundial, e operando, no plano artístico, a reativação da dimensão política que o discurso oficial tentava neutralizar. Nas suas expressões mais radicais, esta atitude levava a que, contrariando novamente o discurso oficial, a arte prescindisse dos seus próprios limites, apelando à participação ativa do espetador, e fundindo-se com os novos modelos de ativismo, que obedeciam à mesma lógica de descentramento. É o caso, em particular, dos happenings de Allan Kaprow, Jim Dine e Claes Oldenburg [24], mas também de obras de Robert Rauschenberg como a série White Paintings (1951), ou Erased de Kooning Drawing (1953) [25]. Este descentramento, ou dispersão, da subjetividade, visa a libertação de um potencial de criatividade, correspondendo assim, de facto, ao prosseguimento, ou à reativação, de preocupações inerentes à própria arte moderna, que estavam presentes, como já vimos, a partir do início do século dezanove, com a emergência de um novo regime da imagem. Na Europa, a situação era profundamente diferente, pois o nível de destruição sofrido tinha sido muito grande. No entanto, no caso dos aliados, viveram-se momentos de euforia e esperança muito semelhantes aos que foram vividos na América. O caso da França é particularmente importante, pois trata-se de um país cujas grandes tradições políticas e culturais, apesar dos traumas do colaboracionismo, podiam de alguma maneira emergir em grande parte intactas: em particular a resistência, que tinha lutado duramente durante a ocupação, podia surgir como um vencedor particularmente heroico, e portador de grande autoridade moral [26]. Tirando partido da situação, e de uma tradição artística mais forte que a americana, a arte francesa, que mantinha as sua ligação às vanguardas históricas, produziu, desde meados da década de quarenta, movimentos como o Letrismo, e depois o Situacionismo, ficando assim numa posição muito avançada na produção de novos regimes da imagem [27]. A situação alemã era profundamente diferente. Não só o país estava muito destruído, tendo sido derrotado e ocupado, como as suas elites culturais e intelectuais tinham sido eliminadas, e o acesso ao rico legado cultural das vanguardas da republica de Weimar vedado pelo trauma [28].
Pedro Cabral Santo Nuno Esteves da Silva
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Notas [1] Ver Isser Woloch, The Postwar Moment: Progressive Forces in Britain, France, and the United States after World War II (New Haven: Yale University Press, 2019).
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