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CO-WORKERS: CONTAMINAÇÕES ENTRE TECNOLOGIA, INTERNET E O ANTROPOCENO.FILIPE AFONSO2016-03-17Na exposição “Co-Workers – Le Réseau Comme Artiste”, terminada recentemente no Musée d’Art Modernne de La Ville de Paris (MAMVP) e com curadoria de Angeline Scherf, Toke Lykkeberg e Jessica Castex, a tónica era acentuada no modo como a comunicação e o trabalho em rede contemporâneos influenciam o espaço, a arquitectura, os ambientes naturais, culturais e sociais e as relações entre os seus sujeitos. E/ou vice-versa. A maior parte dos artistas da exposição foram formados na década de 2000 e muito influenciados pela internet e ambientes digitais. A exposição foi dividida em duas partes distintas: “Le Réseau Comme Artiste” no MAMVP e “Beyond Disaster” no Bétonsalon - Centre d'art et de recherche. “Co-Workers – Le Réseau Comme Artiste” re-pensa o próprio espaço do museu, mas não o actualiza. O design e cenografia da exposição pelo colectivo DIS não vai muito além da sugestão e da encenação: sofás e coffee shops são elementos figurativos e sem um sentido prático. As obras aqui ultrapassam a escala humana e investigam a forma como a inteligência e a consciência podem ser expandidas para incluir máquinas, animais e outros organismos vivos. O computador ou o ecrã surge aqui como um elemento central, sublime: ele é, de todos os objectos contemporâneos, aquele que atrai mais atenção, aquele com mais energia, mais luz e mais “vida”. É, por consequência, o nosso maior objecto (ou ser?) de desejo e aquele com quem partilhamos uma grande parte dos nossos afectos. Através da internet, ele oferece possibilidades infinitas com recursos intermináveis de imagens, textos, vídeos, sons e links. Nós, a maioria de nós, passamos em frente dos ecrãs uma grande parte do nosso tempo, é normal por isso que sejamos influenciados pelos seus likes, pins, tweets, pixels, gifs e que iremos repetir esses comportamentos nos ambientes do "mundo real" (Bailenson e Yee, 2005 [1]). É talvez necessário questionar o conhecimento da sociologia tradicional de que o ser humano é o centro de tudo o que está a acontecer na medida em que outras forças e desejos agem sobre ele, questionando a sua autonomia (Goffman, 1999 [2]). "A Internet das Coisas" gira em torno da ideia de que os seres humanos não são mais as entidades de pensamento único - que as coisas em seu redor estão interligadas e comunicam entre si e constituem um ambiente denominado de "Inteligência Ambiental". Vivemos num mundo onde o digital é largamente integrado nas nossas vidas diárias. As tecnologias digitais estão tão presentes que passaram a ser quase invisíveis ou percebidas como naturais dando lugar, pela observação de alguns, a um certo desencanto: vigilância, controlo de informação, insegurança… A exposição documenta e antecipa uma ansiedade que não é talvez ainda totalmente presente: na corrente paisagem antropocénica, o ser humano vê-se acompanhado por outros seres, objectos e forças que exercem a sua presença no mundo e cujo controlo está, cada vez mais, fora do seu alcance. Animais, plantas, pedras e outros elementos naturais; objectos, arte, computadores, tablets, telemóveis e outros instrumentos de comunicação: todos eles ganham uma nova dimensão no presente momento e são destacados na exposição através da exploração do animismo e da adoração e consumo de objectos e marcas, da inteligência artificial e da autonomia das máquinas, do pensamento ameríndio e da vida dos fenómenos naturais. É esta passagem antropomórfica – o aspecto “humano” da máquina – que fascina mais os artistas que trabalham com esta tecnologia, já anunciado na obra influenciadora de Donna Harraway: A cyborg is a cybernetic organism, a hybrid of machine and organism, a creature of social reality as well as a creature of fiction. [3] Na eminência da digitalização de tudo, uma nostalgia pelos objectos e pela natureza reaparece, seja em ambientes digitais ou em ambientes físicos (se ainda faz sentido esta distinção). Sistemas sociais, políticos e económicos são repensados e reconfigurados para incluir as máquinas e os novos desenvolvimentos tecnológicos. Neste sentido, vários centros co-existem. A comunicação torna-se realmente global, as formas de co-presença são mais eficientes e o “born in” e o “based in” já raramente coincidem. Várias perspectivas de ver o mundo se sobrepõem. A da máquina, o computador, é aquela que exerce mais potência e, neste caso, sendo central aqui, ela vai contaminar os outros elementos. Immaterial labor has led to a flexible but precarious existence in which, for the young at least, “permanent nomadism” is not so far from the truth. Objects, meanwhile, are dematerializing into live streams, downloads, e-books, smartphone apps, and the so-called “sharing economy.” We have witnessed the primacy of software over hardware. [4] Este posicionamento que coloca o computador e a máquina inteligente como objecto central e maior de desejo faz parte de uma situação muito contemporânea, em que o ser humano, muito por via da globalização, se vê rodeado de outras entidades cuja força disputa a sua centralidade anterior. Não é uma exposição isolada, vejamos alguns exemplos: “Electronic Superwhighway” na Whitechappel Gallery (Londres, 2016); “Simon Denny: Products for organising” na Serpentine Sackler Gallery (Londres, 2015-16) assim como “Simon Denny: The Innovator's Dilemma” no MoMA PS1 (Nova Iorque, 2015); Cao Fei no MoMA PS1 (Nova Iorque, 2016) e “GCC: Achievements in Retrospective” no mesmo museu (Nova Iorque, 2014); “Rachel Rose: Everything and more” no Whitney Museum (Nova Iorque, 2015-16) e “Laura Poitras: Astro Noise” também no mesmo museu (2016); “New Museum Triennial: Surround Audience” (Nova Iorque, 2015); Pierre Huyghe no Centre Pompidou (Paris, 2013-14) e Philippe Parreno: Anywhere, Anywhere Out of the World” no Palais de Tokyo (Paris, 2013-14); “The Anthropocene Project. A Report” no Haus der Kulturen der Welt (Berlim, 2014); “Private Settings After the Internet” no Muzeum Sztuki Nowoczesnej w Warszawie (Varsóvia, 2014-15); “Taipei Biennal 2014 - The Great Acceleration: Art in the Anthropocene” (Taipei, 2014-15); Documenta 13; assim como várias bienais recentes tais como a de Shanzai, Shangai, Istambul e a futura edição da bienale de Berlim com curadoria do colectivo DIS. Por fim, em Portugal tivemos: “Art in the clouds: From Paranoia to the Digital Sublime” no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (Porto, 2015); e “Hybridize or Disappear” no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (Lisboa, 2015) Em comum, estas diferentes exposições parecem ter o facto de posicionarem os recentes desenvolvimentos da tecnologia e as profundas mudanças que produzem na sociedade como alicerce ou fio condutor da exposição, e todas elas se expandem numa reflexão sobre o corrente momento antropocénico, incluindo a abertura a pensamentos, filosofias e culturas não ocidentais. Como ponto de partida, estas exposições têm a reflexão sobre uma era de profunda mudança como talvez nenhuma outra a espécie humana presenciou, parecendo colocar em causa o próprio mundo. Na corrente produção artística destacada nestas exposições, prevêem-se ansiedades em relação à conexão, ao pós-capitalismo, ao consumismo, ao trabalho. Precisamente porque a internet e as novas possibilidades de comunicação em rede permitiram um conhecimento maior sobre culturas longínquas, ao mesmo tempo que aumenta a curiosidade por essas, mostrando novas formas de desejo, de encontro, de ansiedade, de nostalgia, de memória e de perda. Para o curador da Trienal de 2012 do Palais de Tokyo, Okwui Enwezor, enquanto que assistimos à dissolução de fronteiras e que o longínquo se torna próximo, igualmente os conflitos se tornam mais próximos. O contacto pode ser contagioso. [5] Pelo mesmo motivo e pela preocupação derivada do facto de a internet, e os instrumentos através dos quais podemos acedê-la, absorver cada vez mais a nossa atenção, uma preocupação com a perda e o acesso directo às pessoas, aos objectos, aos lugares e à informação emerge. Assim, verificamos que a ligação entre culturas digitais e de internet e o movimento antropocénico e as suas observações artísticas direccionam a sua atenção para formas alternativas de construção e preservação das nossas histórias pessoais e colectivas com a ajuda das novas tecnologias com uma preocupação em comum: a procura daquilo que perdemos ou estamos em vias de perder, digital e fisicamente. Percebemos que somos privilegiados por ter mais oportunidades de contacto com o "outro", mas essas oportunidades podem ser (misteriosamente às vezes) perdidas também. Nos novos tipos de materiais na era digital, enfrentamos o aparecimento de documentos relacionados com a imediatez, a transferência rápida de informações, a perda, e percebemos que a documentação vem frequentemente primeiro que os próprios acontecimentos ou que a própria presença física, e notamos também uma certa multiplicação da verdade ou multiplicação de versões de um mesmo facto, enfatizando como os mundos digitais promovem novos encontros e tornam eventos históricos acessíveis, mas alteram, ao mesmo tempo, também a memória colectiva, produzindo novas divergências que nos alienam dos acontecimentos que constituem a história. Numa recente entrevista a um grupo de artistas na revista Mousse, Lauren Cornell conduziu uma conversa sobre como a percepção das coisas mudou devido às recentes transformações tecnológicas. Cornell questiona se o investimento recente no animismo e nos próprios ambientes digitais que parecem possuir qualidades espirituais está ligado a uma confusão e incapacidade de perceber ou descodificar os sinais de informação que nos rodeiam e que estão cada vez mais presentes [6]. Em resposta, Katja Novitskova vê as recentes transformações numa lógica de continuidade com os anteriores avanços técnicos e tecnológicos da humanidade. As novas gerações aceitam como natural o toque no ecrã, assim como as gerações anteriores aceitaram facilmente a ligação telefónica, sem, no entanto, poderem justificar o seu funcionamento tecnicamente: Our modern civilization is an emergent result of the survival challenges our ancestors had been facing for millions of years. This cosmology allows me to look at human-made artifacts like computers, consumer brands, and the expanding digital environments as forms equally material with rocks, trees and animals, co-existing in complex ecologies of matter and value. Although we are a dominant species driven by constant need for perceptual stimulation and costly signals, we are intensely more—not less—interconnected with nature. [7] Por sua vez, o artista Mark Leckey responde a Cornell do seguinte modo: The more computed our environment becomes, the further back it returns us to our primitive past, boomerangs us right back to an animistic world view where everything has a spirit, rocks and lions and men. So all the objects in the world become more responsive, things that were once regarded as dumb become addressable, and that universal addressability—a network of things—creates this enchanted landscape. Magic is literally in the air. [8] Para ele, a interacção com a realidade, com os objectos, plantas e animais torna-se estranha e complexificada através das diversas e crescentes formas de mediação que se colocam no meio. Acabando por aceitar essa mediação como uma condição quase indispensável da contemporaneidade, ele vê-se na impossibilidade de escapar de uma situação de alienação omnipresente no mundo e da igual impossibilidade de aceder directamente à realidade.
Filipe Afonso É artista e curador, interessado nos vários processos de mediação entre os humanos e o mundo do presente, passado e futuro.
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Notas [1] Bailenson, J., & Yee, N. (2005). Digital chameleons: Automatic assimilation of nonverbal gestures in immersive virtual environments. Psychological Science, 16, p.814-819. [2] Goffman, E. (1993, original de 1956). A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Lisboa: Relógio d’Água. [3] Haraway, D. (1991). Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New York: Routledge, p.149. [4] McGuirk, J., (2015). Honeywell, I’m Home! The Internet of Things and the New Domestic Landscape. e-flux Journal, 64. Origem: http://www.e-flux.com/journal/honeywell-im-home-the-internet-of-things-and-the-new-domestic-landscape/ [5] Enwezor escreve: Mais à mesure que les distances s’amenuisent, et que les frontierres séparant le lointain du proche se dissolvent, on voit grandir en proportion les conflits et les contestations en puissance, dans des relations de pouvoir qui définissent les zones de contact des cultures. Le contact peut être contagieux. Et pourtant l’intimité qu’il amène peut s’avérer perturbante. (p.23) Enwezor, O (Ed.), Bouteloup, M., Karroum A., Renard, É. e Staebler, C. (2012). La Triennale: Intense Proximité – Une Anthologie du Proche et du Lointain, Catalogue, CNAP/ARTLYS: Paris. [6] Cornell, L. (2013). Techno-Animism. Mousse, 37. Origem: http://moussemagazine.it/articolo.mm?id=941 [7] id. [8] Id. |