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PERSPETIVA ATUAL


JÂNGAL. Fotografia: Estelle Valente/São Luiz Teatro Municipal.


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HIPER.JÂNGAL € UMA DERIVA TECNO-ESTÉTICA TANGENCIAL À PEÇA DO TEATRO PRAGA



RUI MATOSO

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It is easier to imagine the end of the world than to imagine the end of capitalism.
Fredric Jameson

 

 

1.
Uma selva cibernética em transe, um super organismo híbrido ou um hiperobjecto originado por um delírio ciborgue. Nessa desterritorialização pós-Internet que é Jângal, a peça dos Praga estreada em junho no teatro São Luíz, o espectador é confrontado com uma meta-personagem ubíquo que está no palco, em cena, mas também em toda a sala e mais além, conectada ao imenso rizoma, disseminado por cabos, ondas electromagnéticas e estendendo-se a todo o planeta Terra como uma nova camada de pele.

Numa altura em que a teoria crítica vem contestando a existência da Internet - The Internet Does Not Exist -, Jângal, enquanto subespécie de floresta electrónica ou Internet Biosférica, está preparada para acolher-nos a todos na sua gigantesca, complexa e interdependente teia de conexões. Através da exuberância animista manifestada em palco, vislumbramos um tributo à viragem pós-humana e um manifesto contra o que ainda resta (e é muito) do miasma antropocêntrico e das máquinas de guerra heteronormativas, cada vez mais atiçadas pelos neo-fascismos regressados das trevas, e estimuladas pelo comportamento hipermediatizado de personagens globais do poder machista no governo das “superpotências” (Trump, Putin, Temer,...).

Desta vez, a guerrilha micropolítica dos Praga veio carregada de munições pós-digitais, sob o disfarce de uma selva de Meinong [1], colocando em cena uma miríade de ontologias e fenomenologias alienígenas, bem como multitudes de agentes insurrectos que procuram em cada ficheiro ou hiperligação [2] desmantelar um pouco da poderosa e transnacional Matrix em que vamos sobrevivendo.

A evidência de que estamos algures entre a terra e a cloud, e de que somos cúmplices de uma batalha pós-histórica já em curso, é nos oferecida desde logo na abertura da peça pela voz da fadista-actriz, Gisela João: - Jângal is a folder with existent and non-existent entities (…) Jângal is an effort to change the order of the reality that’s been given to us.

A falta de causalidade lógica na diacronia das cenas (ficheiros), para além de assumida como ruptura com a tradição do teatro dramático, evoca muito directamente o modo como hoje acedemos à realidade virtual enquanto utilizadores, mais ou menos emancipados, do ciberespaço - essa alucinação consensual diariamente experimentada por biliões de operadores [3]. Dito de outro modo, por um dos dramaturgos, José Maria Vieira Mendes, «as razões pelas quais uma cena se segue à outra são as mesmas pelas quais [na internet] abrimos uma página e a seguir clicamos numa coisa de que gostamos e passamos à outra. E às vezes é só isso, é só o clique. Fazia todo o sentido para nós juntar toda esta ideia de existência à ideia da experiência, da vivência da Internet».

Não é que seja fundamental saber se Jângal é a primeira peça de teatro antropocénico criada e apresentada em território nacional, até porque, se quisermos permanecer fieis à dramaturgia somos obrigados a questionar criticamente a ideia de território e a de soberania, na era da geopolítica e da computação à escala planetária. As transformações provocadas pelo desenvolvimento da infra-estrutura mundial de redes telemáticas - vulgo sociedade em rede -, deram origem a numa nova fase da globalização que vem abalando seriamente os modelos de jurisdição e governação associados ao paradigma do Estado-nação. As fronteiras geográficas já não coincidem com os fluxos informacionais que circulam no Stack [4] em camadas sobrepostas e interdependentes, e que, segundo Benjamin Bratton, são: Terra, Nuvem, Cidade, Endereço, Interface e Utilizador. Porém, é também através desta estratificação de múltiplos actores-rede que hoje se produz a grelha de controle e de vigilância cibernética sobre cidadãos quantificados - quantified self - (big data, algoritmos, machine learning,...). A construção de um gigantesco dispositivo informacional, vem favorecendo o desenvolvimento da percepção sintética e possibilitando um significativo melhoramento na eficácia do Panóptico, desde logo porque fica definitiva e universalmente distribuído por todos os olhos epistémicos e artificiais (algoritmos de reconhecimento facial), na sua tarefa de identificar, analisar e codificar cada actor humano que se deixe enredar nas teias da vigilância.


2.
Enquanto síntese metafórica da actualidade, Jângal é a oportunidade irónica que antecipa o dilúvio apocalíptico, o derradeiro esforço para derrubar o velho humanismo da humanidade em vias de extinção. Não haverá viragem ecológica profunda se a mentalidade do homo sapiens continuar agrilhoada ao colonialismo vigente desde a modernidade ocidental, ou se, no capítulo da técnica, persistirmos na senda da instrumentalização e do determinismo tecnológico. Ao longo da História a técnica tem sido mobilizada como uma potência de manipulação de matéria e energia. Já criticado por Heidegger e sintetizado no conceito de enquadramento e exploração da natureza (Gestell), enquanto for dominado pelo complexo militar-industrial e do entretenimento, o agenciamento tecnológico agirá sempre como ideologia narcísica e narcótica, ao mesmo tempo que impõe à natureza um regime de extracção infinito ao serviço do suposto progresso da humanidade.

Dito de outro modo, a tão urgente e necessária viragem pós-humana nas sociedades contemporâneas carece ainda de inauditas modulações da sensibilidade e do pensamento, de tornar sensível o invisível ou legível o inconcebível. A tarefa não é simples e muito menos fácil, e no meio de tamanha complexidade há mais perguntas do que respostas: Como proporcionar uma experiência fenomenológica (sensível, estética) da presença de fenómenos excessivamente intrincados como o Antropoceno?

O capitalismo, apesar da boa vontade dos ideólogos do pós-capitalismo, continua a ser um agente planetário deveras enigmático. Para além da análise ancorada no marxismo e na luta de classes, o capitalismo é, como se sabe, um monstro devorador e uma máquina de computação financeira que hoje consegue o verdadeiro milagre de criar mais-valia ex nihilo. Provavelmente é por isso que alguns teóricos o pensem como um hiperobjecto extra-terrestre, um capitalismo alienígena em nada preocupado com os seres humanos e a sua prole.

Julgamos pois, ser de elementar justiça mencionar que Jângal traz para cena uma poderosa partilha do sensível ao correlacionar estética e politicamente as afecções globais da contemporaneidade. Numa dimensão extra-humana, convoca a complexidade e as repercussões dos hiperobjectos em interacção no planeta terra, cuja ontologia excede, em escala e no tempo, a apreensão humana, demasiado humana. O fenómeno designado como aquecimento global, tem sido dado como exemplo de um hiperobjecto actuante na era do Antropoceno e, é exactamente neste contexto que Timothy Morton avisa que é urgente mudar a nossa relação com outros seres do Universo, sejam animais, vegetais ou minerais.

 


3.
Numa outra dimensão, mais tangível e operativa, a peça dos Praga coloca-nos diante da realidade aumentada do quotidiano ou no interior de uma biosfera cibernética, onde o agenciamento conferido pela inteligência artificial à Internet das coisas, eventualmente um dia, nos convencerá a interagir amorosamente com sistemas operativos apetrechados com algoritmos de ultima geração. Neste caso, Jângal pode também ser entendida como um colectivo sociotécnico emancipado, onde máquinas e organismos, munidos de autonomia cognitiva e aprendizagem célere, interagem e discursam comungando da mesma linguagem e de sistemas simbólicos arquivados algures na nuvem computacional.

Parece-nos assim evidente que, através do seu dispositivo cénico radical, Jângal insufla a esfera pública com uma multiplicidade de práticas discursivas recentes, e, desse modo, contribui para a produção de novas subjectividades e mundivisões, que por sua vez possibilitam a existência de condições para a reorganização de novos sujeitos sociais, individuais e colectivos. Uma mise-en-scéne da Actor-Network Theory, sobre o plano inclinado do aceleracionismo, tendo como pano de fundo um cenário virtual e pós-apocalíptico imerso em ontologias orientadas a objetos, isto é, uma primorosa apropriação estética das teorias que gravitam em torno do Realismo Especulativo.

Se aceitarmos o pressuposto, tal como defenderam artistas como Mayakovsky e Brecht, de que a arte não é um mero espelho da sociedade, mas antes um martelo que serve para a esculpir, podemos reconhecer no teatro político dos Praga essa longa batalha contra a representação mimética, e a favor da experiência da presença e das contradições ideológicas, sociais e políticas de cada circunstância em concreto.

Neste horizonte próximo do abismo, como bem esclareceu Jacques Ranciére, uma política da estética requer a partilha do sensível e um espectador emancipado, para que enfim, possamos aprender a compor um novo mundo comum, pós-colonial, abandonando definitivamente a crença de que ainda controlamos o planeta, até porque o desastre ecológico não é iminente, ele já aconteceu e faz doravante parte das nossas vidas. O uso de pesticidas que matam abelhas, o poder de multinacionais como a Bayer-Monsanto na disseminação de alimentos e organismos transgénicos ao nível global, o monopólio sobre sementes ou o roubo da propriedade intelectual (patentes) infligido sobre a sabedoria milenar dos povos, representam hoje um ataque sem precedentes à biodiversidade biológica e cultural do planeta terra.

Imersos num espaço-tempo de complexidades extra-humanas e nas circunstâncias de uma desorientação esquizofrénica cada vez mais patente, haveria possivelmente que repensar o sentido da produção simbólica e cultural no horizonte do inumano e de um pós-humanismo fundado numa antropologia ciborgue, mas também sob efeito de um colossal inconsciente maquínico e da correlativa produção das subjectividades e do desejo. Por um lado, teríamos de reintegrar a viragem alienígena que, por exemplo, em Lyotard (O Inumano) significa aceitar a ideia de que a tecnologia não foi inventada pelos humanos, ou seja, compreender que o desenvolvimento tecnológico é um processo cósmico no qual estamos apenas episodicamente envolvidos.


4.
Não é por acaso que o mote de abertura de Jângal é dado pela repetição exaustiva de «We’re in trouble», a consciência de que «We’re trouble and we’re heading for more trouble!» é intrínseca a toda peça, também ela trespassada por uma sensação de urgência. O mundo estás prestes a arder, e talvez por isso esteja na hora de convocar a grande fraternidade planetária interespécies. Nesse sentido, talvez Jângal seja então a clareira na floresta do Ser, um lugar virtual onde a humanidade (ainda) habita poeticamente e os organismos se encontram com as coisas, apesar de tudo. Apesar da sombra lançada por esse terrível e invisível poder, sobre o paradisíaco planeta azul.

Também pode acontecer que nem sequer precisemos de categorizar Jângal como “arte cénica”, e seja suficiente pensar que uma “cena” (um ficheiro ou uma pasta) é afinal um encadeamento de acções significativas e de infinitas expressões, não de representações [5]. Desse modo, estaríamos na presença de um aparato cénico anti-edipiano, ou de uma deleuze-guattariana máquina desejante, cuja operacionalidade consiste em conectar-se performaticamente com o inconsciente geo-tecnológico do planeta.

Na intuição filosófica de Timothy Morton – o já citado autor da ideia de uma ecologia sem natureza -, aquilo de que desesperadamente necessitamos, na era em que a história humana colide com a da geologia, é de um nível de choque e de ansiedade apropriados ao trauma ecológico que demarca o Antropoceno. E entende-se porquê, porque na actualidade o grau de anestesia e de alucinação criadas e provocas pelo ciberespaço e pelo neuropoder, geram uma armadilha extremamente difícil de evitar. Na versão contemporânea do Império [6], o poder é exercido mediante máquinas que organizam directamente os cérebros e os corpos, com o objectivo de criar um estado de alienação permanente e independente do sentido da vida, ou seja, o Império como Sociedade de Controlo [7]. É no trabalho de adaptação constante das redes neuronais do cérebro humano (neuroplasticidade) que reside a operacionalidade do neuropoder. Isto significa que nada pode ser completamente externo ao humano, porque a extensão protésica e ubíqua da mente não pode ser fixada dentro de limites. Esta parece-nos ser uma das condições do pós-humano, já que o “ser humano” deixou de existir tal como estávamos comummente habituados a pensar que existia, como um entidade separada e em perpétuo antagonismo com o ambiente que lhe é externo. Trata-se portanto da necessidade de repensar uma outra figura do humano e de imaginar uma subjectividade que expresse e incorpore um sentido forte de colectividade, do relacional e da capacidade de construção de laços comunitários localizados, mas nomádicos. E, é aqui que entra a preciosa ajuda dos criadores de imaginários alternativos.

A escritora de sci-fi, Ursula K. Le Guin é autora de uma vasta obra crítica do status quo das nossas sociedades modernas, mas também inspiradora de outros modos de existência, designadamente na relação com seres não-humanos. Textos como “Floresta é o Nome do Mundo” (1976) ou “Vaster than Empires and More Slow” (1971), revelam uma característica fundamental comum ao sensório elaborado por Le Guin, uma condição psicológica que nos confere a possibilidade da relação “bioempática” com outros seres sencientes, vegetais e animais. Sentir a inteligência das árvores a circular pelas raízes conectadas em rede, sentir o medo ou a curiosidade nos animais que nos olham, sentirmos-nos ontologicamente diluídos no meio de uma floresta-organismo. Há diversas modulações da empatia na relação com a biosfera, a consciência de que a nossa existência não é um processo individual e de que estamos enredados numa teia de processos, de acções e reacções (feedback) estendidas a todo o Planeta Terra. Talvez assim seja mais fácil compreendermos a fragilidade humana na interdependência com a senciência e a autopoiese do ecossistema planetário, do qual fazem parte uma nova inteligência (mineral) e todos os organismos habitantes desta nave à deriva no cosmos...

 

 

Rui Matoso
Membro da European Communication Research and Education Association; professor na Escola Superior De Teatro e Cinema e na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa); investigador no CICANT e doutorando em ciências da comunicação.

 


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Notas

[1] Jângal, tal como dito pelos autores, foi parcialmente construído com base na teoria dos objectos, do filósofo austríaco Alexius Meinong (1853-1920), a qual influenciou fortemente os debates no cerne da filosofia analítica, propondo que seres imaginários como os unicórnios pudessem ter existências virtuais apesar de não possuírem uma ontologia palpável.

[2] Metáforas aplicadas em Jângal como substituto de “cena” no glossário tradicional do Teatro.

[3] Na definição inaugural dada por William Gibson no romance cyberpunk, Neuromancer.

[4] Vide Bratton, Benjamin H. (2015). The Stack: On Software and Sovereignty. The MIT Press.

[5] «Action is the material used to make things and create meaning (…) a software made of active forms (…) A diagram, as Deleuze and Guattari render the idea, is not a representational sketch of a single arrangement but rather an “abstract machine” that is generative of a “real that is yet to come”.» (Easterling, Keller (2015). “An Internet of Things”.The Internet Does Not Exist. E-flux Journal. Berlin:Sternberg Press. Pp 36-37).

[6] Hardt, Michael e Negri, Antonio (2000). Empire. Harvard University Press.

[7] Cf. Gilles Deleuze, Postscript on the Societies of Control.