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HIPER.JÂNGAL UMA DERIVA TECNO-ESTÉTICA TANGENCIAL À PEÇA DO TEATRO PRAGARUI MATOSO2018-07-25
It is easier to imagine the end of the world than to imagine the end of capitalism.
1. Numa altura em que a teoria crítica vem contestando a existência da Internet - The Internet Does Not Exist -, Jângal, enquanto subespécie de floresta electrónica ou Internet Biosférica, está preparada para acolher-nos a todos na sua gigantesca, complexa e interdependente teia de conexões. Através da exuberância animista manifestada em palco, vislumbramos um tributo à viragem pós-humana e um manifesto contra o que ainda resta (e é muito) do miasma antropocêntrico e das máquinas de guerra heteronormativas, cada vez mais atiçadas pelos neo-fascismos regressados das trevas, e estimuladas pelo comportamento hipermediatizado de personagens globais do poder machista no governo das “superpotências” (Trump, Putin, Temer,...). Desta vez, a guerrilha micropolítica dos Praga veio carregada de munições pós-digitais, sob o disfarce de uma selva de Meinong [1], colocando em cena uma miríade de ontologias e fenomenologias alienígenas, bem como multitudes de agentes insurrectos que procuram em cada ficheiro ou hiperligação [2] desmantelar um pouco da poderosa e transnacional Matrix em que vamos sobrevivendo. A evidência de que estamos algures entre a terra e a cloud, e de que somos cúmplices de uma batalha pós-histórica já em curso, é nos oferecida desde logo na abertura da peça pela voz da fadista-actriz, Gisela João: - Jângal is a folder with existent and non-existent entities (…) Jângal is an effort to change the order of the reality that’s been given to us. A falta de causalidade lógica na diacronia das cenas (ficheiros), para além de assumida como ruptura com a tradição do teatro dramático, evoca muito directamente o modo como hoje acedemos à realidade virtual enquanto utilizadores, mais ou menos emancipados, do ciberespaço - essa alucinação consensual diariamente experimentada por biliões de operadores [3]. Dito de outro modo, por um dos dramaturgos, José Maria Vieira Mendes, «as razões pelas quais uma cena se segue à outra são as mesmas pelas quais [na internet] abrimos uma página e a seguir clicamos numa coisa de que gostamos e passamos à outra. E às vezes é só isso, é só o clique. Fazia todo o sentido para nós juntar toda esta ideia de existência à ideia da experiência, da vivência da Internet». Não é que seja fundamental saber se Jângal é a primeira peça de teatro antropocénico criada e apresentada em território nacional, até porque, se quisermos permanecer fieis à dramaturgia somos obrigados a questionar criticamente a ideia de território e a de soberania, na era da geopolítica e da computação à escala planetária. As transformações provocadas pelo desenvolvimento da infra-estrutura mundial de redes telemáticas - vulgo sociedade em rede -, deram origem a numa nova fase da globalização que vem abalando seriamente os modelos de jurisdição e governação associados ao paradigma do Estado-nação. As fronteiras geográficas já não coincidem com os fluxos informacionais que circulam no Stack [4] em camadas sobrepostas e interdependentes, e que, segundo Benjamin Bratton, são: Terra, Nuvem, Cidade, Endereço, Interface e Utilizador. Porém, é também através desta estratificação de múltiplos actores-rede que hoje se produz a grelha de controle e de vigilância cibernética sobre cidadãos quantificados - quantified self - (big data, algoritmos, machine learning,...). A construção de um gigantesco dispositivo informacional, vem favorecendo o desenvolvimento da percepção sintética e possibilitando um significativo melhoramento na eficácia do Panóptico, desde logo porque fica definitiva e universalmente distribuído por todos os olhos epistémicos e artificiais (algoritmos de reconhecimento facial), na sua tarefa de identificar, analisar e codificar cada actor humano que se deixe enredar nas teias da vigilância.
Dito de outro modo, a tão urgente e necessária viragem pós-humana nas sociedades contemporâneas carece ainda de inauditas modulações da sensibilidade e do pensamento, de tornar sensível o invisível ou legível o inconcebível. A tarefa não é simples e muito menos fácil, e no meio de tamanha complexidade há mais perguntas do que respostas: Como proporcionar uma experiência fenomenológica (sensível, estética) da presença de fenómenos excessivamente intrincados como o Antropoceno? O capitalismo, apesar da boa vontade dos ideólogos do pós-capitalismo, continua a ser um agente planetário deveras enigmático. Para além da análise ancorada no marxismo e na luta de classes, o capitalismo é, como se sabe, um monstro devorador e uma máquina de computação financeira que hoje consegue o verdadeiro milagre de criar mais-valia ex nihilo. Provavelmente é por isso que alguns teóricos o pensem como um hiperobjecto extra-terrestre, um capitalismo alienígena em nada preocupado com os seres humanos e a sua prole. Julgamos pois, ser de elementar justiça mencionar que Jângal traz para cena uma poderosa partilha do sensível ao correlacionar estética e politicamente as afecções globais da contemporaneidade. Numa dimensão extra-humana, convoca a complexidade e as repercussões dos hiperobjectos em interacção no planeta terra, cuja ontologia excede, em escala e no tempo, a apreensão humana, demasiado humana. O fenómeno designado como aquecimento global, tem sido dado como exemplo de um hiperobjecto actuante na era do Antropoceno e, é exactamente neste contexto que Timothy Morton avisa que é urgente mudar a nossa relação com outros seres do Universo, sejam animais, vegetais ou minerais.
Parece-nos assim evidente que, através do seu dispositivo cénico radical, Jângal insufla a esfera pública com uma multiplicidade de práticas discursivas recentes, e, desse modo, contribui para a produção de novas subjectividades e mundivisões, que por sua vez possibilitam a existência de condições para a reorganização de novos sujeitos sociais, individuais e colectivos. Uma mise-en-scéne da Actor-Network Theory, sobre o plano inclinado do aceleracionismo, tendo como pano de fundo um cenário virtual e pós-apocalíptico imerso em ontologias orientadas a objetos, isto é, uma primorosa apropriação estética das teorias que gravitam em torno do Realismo Especulativo. Se aceitarmos o pressuposto, tal como defenderam artistas como Mayakovsky e Brecht, de que a arte não é um mero espelho da sociedade, mas antes um martelo que serve para a esculpir, podemos reconhecer no teatro político dos Praga essa longa batalha contra a representação mimética, e a favor da experiência da presença e das contradições ideológicas, sociais e políticas de cada circunstância em concreto. Neste horizonte próximo do abismo, como bem esclareceu Jacques Ranciére, uma política da estética requer a partilha do sensível e um espectador emancipado, para que enfim, possamos aprender a compor um novo mundo comum, pós-colonial, abandonando definitivamente a crença de que ainda controlamos o planeta, até porque o desastre ecológico não é iminente, ele já aconteceu e faz doravante parte das nossas vidas. O uso de pesticidas que matam abelhas, o poder de multinacionais como a Bayer-Monsanto na disseminação de alimentos e organismos transgénicos ao nível global, o monopólio sobre sementes ou o roubo da propriedade intelectual (patentes) infligido sobre a sabedoria milenar dos povos, representam hoje um ataque sem precedentes à biodiversidade biológica e cultural do planeta terra. Imersos num espaço-tempo de complexidades extra-humanas e nas circunstâncias de uma desorientação esquizofrénica cada vez mais patente, haveria possivelmente que repensar o sentido da produção simbólica e cultural no horizonte do inumano e de um pós-humanismo fundado numa antropologia ciborgue, mas também sob efeito de um colossal inconsciente maquínico e da correlativa produção das subjectividades e do desejo. Por um lado, teríamos de reintegrar a viragem alienígena que, por exemplo, em Lyotard (O Inumano) significa aceitar a ideia de que a tecnologia não foi inventada pelos humanos, ou seja, compreender que o desenvolvimento tecnológico é um processo cósmico no qual estamos apenas episodicamente envolvidos.
Também pode acontecer que nem sequer precisemos de categorizar Jângal como “arte cénica”, e seja suficiente pensar que uma “cena” (um ficheiro ou uma pasta) é afinal um encadeamento de acções significativas e de infinitas expressões, não de representações [5]. Desse modo, estaríamos na presença de um aparato cénico anti-edipiano, ou de uma deleuze-guattariana máquina desejante, cuja operacionalidade consiste em conectar-se performaticamente com o inconsciente geo-tecnológico do planeta. Na intuição filosófica de Timothy Morton – o já citado autor da ideia de uma ecologia sem natureza -, aquilo de que desesperadamente necessitamos, na era em que a história humana colide com a da geologia, é de um nível de choque e de ansiedade apropriados ao trauma ecológico que demarca o Antropoceno. E entende-se porquê, porque na actualidade o grau de anestesia e de alucinação criadas e provocas pelo ciberespaço e pelo neuropoder, geram uma armadilha extremamente difícil de evitar. Na versão contemporânea do Império [6], o poder é exercido mediante máquinas que organizam directamente os cérebros e os corpos, com o objectivo de criar um estado de alienação permanente e independente do sentido da vida, ou seja, o Império como Sociedade de Controlo [7]. É no trabalho de adaptação constante das redes neuronais do cérebro humano (neuroplasticidade) que reside a operacionalidade do neuropoder. Isto significa que nada pode ser completamente externo ao humano, porque a extensão protésica e ubíqua da mente não pode ser fixada dentro de limites. Esta parece-nos ser uma das condições do pós-humano, já que o “ser humano” deixou de existir tal como estávamos comummente habituados a pensar que existia, como um entidade separada e em perpétuo antagonismo com o ambiente que lhe é externo. Trata-se portanto da necessidade de repensar uma outra figura do humano e de imaginar uma subjectividade que expresse e incorpore um sentido forte de colectividade, do relacional e da capacidade de construção de laços comunitários localizados, mas nomádicos. E, é aqui que entra a preciosa ajuda dos criadores de imaginários alternativos. A escritora de sci-fi, Ursula K. Le Guin é autora de uma vasta obra crítica do status quo das nossas sociedades modernas, mas também inspiradora de outros modos de existência, designadamente na relação com seres não-humanos. Textos como “Floresta é o Nome do Mundo” (1976) ou “Vaster than Empires and More Slow” (1971), revelam uma característica fundamental comum ao sensório elaborado por Le Guin, uma condição psicológica que nos confere a possibilidade da relação “bioempática” com outros seres sencientes, vegetais e animais. Sentir a inteligência das árvores a circular pelas raízes conectadas em rede, sentir o medo ou a curiosidade nos animais que nos olham, sentirmos-nos ontologicamente diluídos no meio de uma floresta-organismo. Há diversas modulações da empatia na relação com a biosfera, a consciência de que a nossa existência não é um processo individual e de que estamos enredados numa teia de processos, de acções e reacções (feedback) estendidas a todo o Planeta Terra. Talvez assim seja mais fácil compreendermos a fragilidade humana na interdependência com a senciência e a autopoiese do ecossistema planetário, do qual fazem parte uma nova inteligência (mineral) e todos os organismos habitantes desta nave à deriva no cosmos...
Rui Matoso
[1] Jângal, tal como dito pelos autores, foi parcialmente construído com base na teoria dos objectos, do filósofo austríaco Alexius Meinong (1853-1920), a qual influenciou fortemente os debates no cerne da filosofia analítica, propondo que seres imaginários como os unicórnios pudessem ter existências virtuais apesar de não possuírem uma ontologia palpável. [2] Metáforas aplicadas em Jângal como substituto de “cena” no glossário tradicional do Teatro. [3] Na definição inaugural dada por William Gibson no romance cyberpunk, Neuromancer. [4] Vide Bratton, Benjamin H. (2015). The Stack: On Software and Sovereignty. The MIT Press. [5] «Action is the material used to make things and create meaning (…) a software made of active forms (…) A diagram, as Deleuze and Guattari render the idea, is not a representational sketch of a single arrangement but rather an “abstract machine” that is generative of a “real that is yet to come”.» (Easterling, Keller (2015). “An Internet of Things”.The Internet Does Not Exist. E-flux Journal. Berlin:Sternberg Press. Pp 36-37). [6] Hardt, Michael e Negri, Antonio (2000). Empire. Harvard University Press. [7] Cf. Gilles Deleuze, Postscript on the Societies of Control.
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