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A DESMEDIDA DE KILUANJI KIA HENDA - DA TRIENAL DE GUANGZHOU À EXPERIMENTA DESIGN: DOIS PROJECTOSMARTA MESTRE2009-09-21Kiluanji Kia Henda tem vindo a expor internacionalmente – de Guangzhou à Cidade do Cabo, de Nairobi a Veneza - o que desvincula o seu trabalho de uma legitimação que passaria exclusivamente pelas capitais da arte contemporânea do Ocidente. Outro dos traços singulares do seu percurso é que até agora, a apresentação do seu trabalho não tem passado pela legitimação no “pequeno” mundo da “ex-metrópole”, Lisboa. Enquanto artista de nacionalidade angolana, e portanto, de um país hoje independente e outrora colónia portuguesa, o seu art world’s tem estado alheio a um conjunto de políticas culturais que têm a língua portuguesa como ligação, e que insistem em mostrar a arte e respectivos artistas em circuito fechado, itinerando pelas ex-colónias e a ex-metrópole. Em Portugal, Kiluanji Kia Henda expos uma única vez e fora dos centros habituais, “Ngola Bar” no Centro de Artes de Sines (2007). Traz agora a Lisboa, a propósito da Experimenta Design 09 e da exposição “Luanda: Anatomia da Velocidade”, um novo projecto (“Transit” e “Un recuerdo para ti”, 2009). Propomos, desta forma, fazer a leitura de uma das fotografias que Kiluanji traz a Lisboa – “Transit” – a par da foto-instalação “Icarus 13” apresentada na Trienal de Guangzhou em 2008, na China. Em ambos os projectos sugere-se um olhar quer do colonialismo, como do pós-colonialismo em África. Mas aquilo que suscita a leitura que se segue, é que ao procurar rever a história, vem-se a perceber que “toda a história como reconstrução do passado é, obviamente, um mito”(1) (Jan Vansina). ICARUS 13 CHEGA AO SOL O projecto “Icarus 13”, seleccionado por Stina Edblom, research-curator para a Trienal de Guangzhou “Farewell to Postcolonialism” (2), apresenta a primeira viagem espacial realizada ao Sol, protagonizada por uma missão angolana. Trata-se de uma instalação - oito fotografias e uma maqueta da nave – que documenta todos preparativos para a descolagem: desde as últimas revisões da maquinaria, a equipa de trabalhadores, uma vista geral do estaleiro, até aos feixes de luz da nave. O texto que acompanha este trabalho, deliberadamente anónimo, termina com um “to be continued” e deixa em aberto o desenrolar da missão. Tal como a própria instalação explicita ostensivamente, a missão Icarus 13 não existiu historicamente, e os trabalhadores que vemos nas fotografias jamais afinaram os motores da nave. Desta forma, “Icarus 13” fabrica uma perplexidade com gozo e ironia. O efeito que provoca tem uma intensidade e natureza antropológicas, ou seja, mistura episódios históricos, políticos ou mesmo mitológicos, também presentes nas narrativas utópicas. “Icarus 13” evoca de forma imediata o anti-herói grego que perde as asas no momento em que se aproxima do Sol, ao mesmo tempo que retoma inteligente as piadas ao jeito de Samora Machel que provocavam a gargalhada geral na audiência: “os africanos iriam chegar ao Sol, mas tinha de ser de noite para não se queimarem”. Para lá do irrisório da imagem, estabelece-se, portanto, uma ponte entre o mito e o cómico. A vida que anima a instalação “Icarus 13” é a vida que subtilmente se insinua nos intervalos de significação a que se prestam as imagens, quando cuidadosamente seleccionadas e montadas. Assim, a instalação oscila entre a ficção expressa (a missão solar) e a realidade, mas uma realidade composta tanto por posicionamentos político-civilizacionais (a piada de Machel, que pode ser interpretada como a proximidade/distanciamento de África vis à vis o Ocidente) como por reminiscências clássicas (Ícaro), mas ainda uma realidade profundamente enraizada no quotidiano, intrinsecamente prosaica e, por fim, a realidade artística em que, fatalmente, a obra artística se insere. Os trabalhadores que em “Icarus 13” afinam a maquinaria da nave são, afinal, trabalhadores da construção civil de Luanda que Kiluanji fotografou durante incursões de trabalho. “Icarus 13” “é” um mausoléu inacabado deixado pelos russos em Angola, onde consta repousar o corpo de Agostinho Neto. O que se apresenta como “Observatório de Astronomia”, por exemplo, “é” um cinema na região do Namibe que a descolonização deixou inacabado. As luzes da descolagem da nave “são” imagens captadas durante os festejos da ida da selecção angolana “Palancas Negras” à Copa do Mundo de 2006, etc (3). Kia Henda dispara em várias direcções e coloca-se no centro de um campo especulativo calibrado com a sinopse da instalação que diz: “As a ball of fire this odyssey to the Sun needed imagination as its fuel”, onde se compara a imaginação a um músculo que trabalha na contínua redisposição das imagens, entre a ficção e a realidade. Efectivamente, “Icarus 13” baralha a história, “desafina” o passado colonial, os estereótipos africanos e a desmedida imperialista, mas o interesse deste “programa”, aquilo que o torna destabilizador é o facto de operar no terreno vacilante que vai do documento à ficção, uma das questões centrais da pesquisa contemporânea. EM “TRANSIT” “Transit” surge no âmbito de uma parceria entre a Experimenta Design e a Fundação Sindika Dokolo, e no contexto de uma aproximação entusiasmada entre a Trienal de 2010 e outros projectos portugueses, como também é o caso da Trienal de Arquitectura de Lisboa. No Palácio Braamcamp, espaço em uso pela Experimenta09, Kiluanji Kia Henda instala face a face uma referência a dois momentos do período colonial. Por um lado, uma evocação, espécie de memento, da ida de um angolano à Rússia (o tríptico “Un recuerdo para ti”), e por outro, uma fotografia montada numa caixa de luz que representa a estátua de P. Dias de Novais, neto de Bartolomeu Dias, e primeiro governador da actual Luanda, intitulada “Transit”. É sobre esta última que me irei deter. Através da imagem do governador, Kiluanji propõe uma ponte entre a época dos Descobrimentos, altura dos primeiros contactos dos portugueses com a região que actualmente corresponde a Angola, e a actualidade. O título vê-se implicado na imagem. Kiluanji “captou” a estátua no momento da sua desmontagem na Fortaleza de S. Miguel. Vemo-la em trânsito contra um tapume vermelho das obras. É esta a sua situação actual. A fragmentação e a segmentação da imagem encontram, desta forma, uma relação muito estreita com a nossa forma contemporânea de ver (lembra a linha de montagem, a serialização, a BD, etc). Não só vemos as coisas, os objectos, mas também o seu processo, o espaço que está entre as coisas. Se por um lado a fragmentação da imagem sugere o modo como estes objectos eram transportados (originariamente de barco, em peças autónomas), por outro, a sua organização segmentada numa caixa de luz, confere ao projecto o carácter escultórico do objecto a que se refere, a estátua de Dias de Novais. Mas aquilo que verdadeiramente o faz “falar” de viva voz, é o facto de a imagem estar na horizontal, prostrada sob o chão, jaz morto e arrefece. Com efeito, mostrar na horizontal uma imagem que nos habituámos a ver na vertical vai permitir a constituição de um dispositivo crítico, através de duas vias. Trata-se de um caminho bifurcado, com horizontes distintos. Num dos sentidos sugere-se ao espectador aquilo que ele não sabe ver, trata-se de dizer: “Aqui está o tempo do colonialismo português finalmente decepado”, ao qual não é alheio o facto de historicamente os actos de iconoclastia e contra-poder terem sido praticados nos rostos das imagens, nem o facto de Kiluanji enquanto angolano estar em Lisboa a falar de um passado português, e que se assume como “paradoxo permissivo” (4) (Nathalie Heinich), ou seja, o poder integra a sua crítica (ou transgressão) no momento em que ela surge, e ainda antes de ser sancionada pelo público, expondo-a no contexto institucional da arte contemporânea. No segundo sentido, tenta-se produzir um curto-circuito através da montagem e da ocupação de elementos vaga ou declaradamente estranhos (na linha de “Icarus 13”), da existência de relações desestabilizadoras entre as imagens e as suas memórias. Vejamos sumariamente. ao colocar a estátua de tipo comemorativo na horizontal, ao inverso dos monumentos, dos obeliscos, dos padrões, dos menires, ou da escultura segundo a lógica do plinto, Kiluanji vem reflectir sobre as condições em que a escultura contemporânea realiza uma ruptura estética com a lógica do monumento (que Damián Ortega realiza esplendorosamente): fragmentar uma imagem é, neste caso, lembrar a fragilidade de um cânone. Para reforçar esta operação K. Kia Henda enclausura a imagem de P. Dias de Novais numa geometria clara: as dimensões do rectângulo (2,50 x 50), e a altura a que se expõe lembram alguns exemplos da escultura minimalista (por exemplo Donald Judd). A caixa funciona como contentor onde a imagem é depositada, tal como um jacente, o lugar da última morada daquele tipo de representação que, na arte portuguesa, esteve ligado ao academismo modernizado do Estado Novo (5). Ao resgatar para a contemporaneidade esta imagem e implicá-la nestes procedimentos, “relemos” Rosalind Krauss e a noção de “campo expandido da escultura” (6) (R. Krauss: 1979). Krauss explica que a lógica da escultura é inseparável da lógica do monumento, e que os movimentos artísticos dos anos 60 (Krauss recua a génese deste processo às vanguardas históricas), sintomaticamente contemporâneas das primeiras independências em África, operam uma ruptura de ordem estética. É nesta bifurcação que “Transit” suscita que Kiluanji reforça o sentido das imagens, optando pelo caminho que levou a uma percepção fragmentária e sequenciada da realidade, que suportou a passagem de um princípio vertical (devedor de toda a relação escultura-monumento) para um princípio horizontal. Sem ideia alguma de reconstruir a história, mas apenas olhando-a em trânsito. Marta Mestre Historiadora da arte e curadora. Doutoranda em cultura contemporânea, FCSH (Lisboa) / EHESS (Paris). NOTAS (1) Jan Vasina citado por Wyatt MacGaffey, “Crossing the River: Myth and Movement in Central Africa”, International symposium Angola on the Move: Transport Routes, Communication, and History, Berlin, 24-26 September 2003, www.tinyurl.com/lk2klb (acedido a 7/09/2009) (2) 3ª Trienal de Guangzhou “Farewell to Post-Colonialism” (Cantão, China), 2008, apresentou 184 artistas de 40 países, e um expressivo destaque sobre a arte contemporânea do continente africano e de artistas africanos da diáspora. (3) Um diálogo pode ser sugerido entre “Icarus 13” e “Sputnik” de Joan Fontcuberta, artista catalão, que ficciona a vida de Ivan Istochnikov, cosmonauta russo. Ao duplo desaparecimento (condição para a recuperação artística do acontecimento) soma-se, por exemplo, o facto de “Ivan Istochnikov” ser a tradução russa de Joan Fontcuberta, e do protagonista da “ficção” ser o próprio Fontcuberta. (4) N. Heinich, Le triple jeu de l’art contemporain. Sociologie des arts plastiques, Paris: Les Editions de Minuit, 1998. (5) Que veio a ficar caracterizado pela famosa designação de José-Augusto França, eskulturas, escrita com a letra “k”, uma vez que todas elas tinham capa. José-Augusto França, Quinhentos Folhetins, Vol. 1, Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1984. |