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CONVERSAÇÕES NA ESPLANADA COM JOÃO NICOLAU PARTE 2ALBERTO MORENO2016-10-20
Entretém sobre o divino e o humano, o político, e como não podia deixar de ser, o cinematográfico, na Praça 2 de Maio com o cineasta João Nicolau, o último vencedor do festival Filmadrid para o melhor filme em competição e a melhor longa metragem para o júri jovem. Uma manhã de domingo, depois das memórias da festa que os rapazes do Filmadrid nos propuseram na noite anterior – quem escreve desfaleceu. Bonita manhã, boa gente, bom ambiente no terraço do 2D na esquina da rua Velarde com a rua de San Andrés em Madrid. Terraços cheios, bons vinhos, conversas com o pessoal do local. Um encontro muito gratificante com uma antiga conhecida e umas quantas cervejas sem problemas de tempo. Espero na minha quietude hedonista a chegada de João Nicolau, cineasta “terrível, por impedimento ético”, parafraseando o já desaparecido Bernard da Costa sobre a figura de João César Monteiro, pai espiritual desta maravilhosa camada de cineastas de Portugal. E ali nos sentámos, vendo passar a vida... as crianças a jogar à bola, uns músicos a tocar, os casais a beijarem-se, a gente conversando e... uma menina passa em bicicleta diante de nós. João pede uma Coca Cola, eu continuo com as minhas cervejas e umas azeitonas a acompanhar. Enrolo um cigarro, ele fuma outro e esperamos ver passar as nuvens.
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JN: Acho que resultou bastante bem a minha relação com as raparigas, já que nunca as tratei como estúpidas. Parecem-me mais inteligentes, oferecem-te um mundo mais amplo e permitem-te trabalhar juntos. Isto é para mim o socialismos [– um pequeno sorriso surge da justa apreciação]. AM: Acho que as mulheres convertem-nos em sociedade, a sua inteligência emocional leva-nos a fazer comunidade. Abrem-nos mundos de relação mais ricos. Constroem paraísos porque nos interrelacionam. São brilhantes humanamente. Há excepções, mas abrem um mundo de inteligências que nós talvez escondamos. Bom, se calhar exagero... E agora voltam os paraísos. Falemos dos paraísos imaginários e reais. Em “A Espada e a Rosa” (2010) crias um paraíso. JN: Bom, aí é mais evidente do que aqui o barco ser uma possibilidade de paraíso, com essa substância que lhes permitia destruir as leis da realidade – se se tem que roubar, rouba-se; pode-se viver das artes, da música, da ciência. Mas em “A Espada e a Rosa” mostra-se que a natureza humana é má (o filme termina com a traição). AM: Tu conseguiste dois paraísos: um paraíso de evasão em “A Espada e a Rosa”, e em “John From” um paraíso de amor... JN: Sim, o paraíso é viver bem consigo mesmo neste mundo, que é o mais difícil, poderíamos dizer. No entanto, acredito mais na posição da Rita, que tenta isso com essa paixão para seu próprio proveito e faz o bem como side effect. Se não tens prazer, não podes dar prazer. Porque este tipo, Filipe, está disponível para que lhe aconteça isto. Ela não é uma Lolita, não é nociva, e ele também não. No Filmadrid falámos sobre isso. O facto do fotógrafo ser mais velho não é o tema do filme, isso parece-me ser uma consequência que surge no filme, que não está fundado numa coisa de disfunção psicológica ou de preconceitos sociais que a televisão e o cinema nos fazem acreditar agora. Isso não ser um tema faz-me muito bem. Não me disseram “Olha, é uma pessoa madura com uma adolescente, vê lá onde te metes”. Isto é devido a uma contenção do actor, que trabalhou um olhar sem intenção. Isso, creio, é o melhor mérito que se pode atribuir a um actor. Já o conhecia, é um bom profissional, faz de tudo: teatro, cinema, televisão... É o reflexo da bondade. Rita (Júlia Palha) é uma adolescente muito bela. No final essa beleza – não a beleza física, mas o que passou para o filme dessa beleza nas suas expressões – e a disponibilidade de Filipe ao que se passa, é o mais interessante. Por exemplo, Filipe não reage mal quando vem a névoa, que é um problema para todos os vizinhos. Ele está sempre disponível, essencialmente porque está resolvido consigo mesmo e isso fá-lo estar preparado. Agora, acho que se há algo de mensagem isso não me interessava muito. É que o verdadeiro interesse da paixão amorosa, que é egoísmo por si mesma, é aquilo que faz estar disponível ao outro. AM: E a bondade... JN: Claro. E isso a mim faz-me considerar caminhos. Há coisas que já não filmaria, como coisas que ocorreram em “A Espada e a Rosa”, e há outras que sim. AM: Vais voltar em breve às intimidades das relações? JN: Eu nunca tinha pensado no passado que ia filmar uma paixão adolescente. Por exemplo, como quando Rita chora no momento em que o pai reage. Não sei se continuarei a filmar coisas como “John From”. AM: Tens um caminho aberto à volta da bondade no campo do amor. JN: Sim. Agora que tive um filho, há coisas que me mudaram, em que antes não pensava, na verdade. São coisas muito orgânicas, muito práticas. Estás a passear com o teu filho pela rua e dás-te conta da empatia que há no mundo por ter um filho. AM: O mundo precisa sempre de amor, de ver uma ponta de inocência. As crianças tiram-nos as defesas e aplicamos nelas essa necessidade. JN: É um momento em que te abandonas, porque às 7h30 estás acordado e tens que ir para a rua com ele brincar. Já não tens cinco horas para fazer o que queres quando chegas a casa. Vives em função dele... [acende um cigarro] AM: Ensinam-te muito. JN: Sim... acontecem imensas coisas novas. AM: Pareceu-me muito interessante o que comentavas na livraria 8 ½, sobre o facto da profundidade de campo ser capitalista. Esses retratos sem profundidade à Straubs. JN: Bom, nunca fui um cinéfilo. Dessa lista de nomes que citaste [ver Parte 1 da entrevista] eu sou o que nunca estudou cinema. Todos fizeram a escola ou vêm da crítica, mas a mim aconteceu-me. Eu estudei antropologia e comecei a montar documentários. Agora chamam-me menos para editar... Parvoíces... porque acham que sou realizador e já não quero editar. Eu com o cineasta belga Alejandro Comodín trabalhei como montador e apoiamo-nos. AM: Onde é que estudaste edição? JN: Não, não estudei edição, fui fazendo. Trabalhei para o Sandro [Aguilar], também na última curta do Miguel [Gomes] antes de “As mil e uma noites”. E preciso trabalhar como montador, gosto muito, dá-me muito prazer trabalhar para outros, mais até do que para mim. Como o Kaurismäki. Não sou um cinéfilo e nesse aspecto se não posso filmar, não tenho grande ansiedade, não vou morrer. AM: Mas em ti vejo esse parar das personagens no plano, esse olhar a câmara, essa frontalidade. Também em “John From”. JN: Isso vem-me do antropológico. Eu comecei com o cinema observacional, onde as coisas têm um tempo. Trabalho dessa maneira, mais do que com a ficção. Eu tenho necessidade de fazer isso. Estar com a câmara à espera ali, com ela (Rita). É verão e não se passa nada. Há que contemplar as coisas quando não acontece nada. AM: Os tempos mortos da vida, tão cheios afinal... JN: É que isso também é parte da vida, aí ocorrem muitas coisas importantes. Para mim o aborrecimento não existe, é para quem não sabe olhar o que não tem interior. Nunca fui um cinéfilo, mas reconheço que os filmes de que gosto são os que podemos classificar dentro da cinefilia. Quando era adolescente era o maior fã do João César Monteiro. Tinha uma t-shirt com a sua cara, como se fosse uma estrela rock. AM: Que força vos deu “Recordações da Casa Amarela”? JN: Bem... eu vi aquilo e interroguei-me “Mas isto pode fazer-se?”, “Que é isto?” Para toda a gente da minha geração, para Miguel e Sandro, ele era o único realizador que nos dizia algo. O único que tinha uma centelha punk. O César Monteiro sempre foi um cineasta muito jovem. Gosto muito do Aki Kaurismäki. Por exemplo, essa cena em que filma os telemóveis. Acontecem coisas importantes numa mensagem de texto, porque não vou filmar isso então? Há colegas meus que ideologicamente não filmariam. Para mim é tão importante como filmar o ecrã do Google, o Metro... como ir ao hipermercado. É aí onde ocorrem as coisas. É parte da nossa vida. AM: Como despedida, queria dizer-te que foi um prazer estar contigo, a pessoa que montou “Vai e Vem” (2003). Esse plano eterno no Jardim do Príncipe Real com João César Monteiro, João Vuvu, sentado com a sua bengala e chapéu, vendo passar a vida, a beleza dessa menina montada na bicicleta que passa uma e duas e três vezes. Restavam-lhe poucas horas ao mestre, mas ele continua a perseguir a beleza. Com essa música... ““Donde vas con mantón de manila…” Saí emocionado quando o vi pela primeira vez na Filmoteca lá por 2004. JN: “La verbena de la Paloma”… Sim, estás a dizer-me isso e eriçam-se-me os pêlos só de recordar. Descobriu-se isso na montagem. Tínhamos já essa música, mas não encontrávamos nada para esse momento até que a pusemos aí e funcionou. Se não te armavas em engraçado – já sabes como ele era – e trabalhavas, ele permitia-te fazer coisas. Estivemos à procura, olhando e acertámos. AM: Que beleza, de verdade João, que beleza... Quanta beleza tinha esse homem na cabeça. JN: É incrível, isso foi incrível... Na verdade incrível. AM: Vem da teatralização da “La verbena de la Paloma” em casa de João Vuvu, com esta rapariga... JN: Rita Durão? AM: Sim, Rita Durão. JN: Uma das raparigas que passa pela casa. Bom, passa muito rápido. É minha companheira. Conhecemo-nos aí, o que é a vida! AM: E depois esse autocarro, e César Monteiro a olhar para todos os sítios, para um lado, para o outro, para trás, a ver se lhe vai acontecer algo de bonito na vida. Em busca de um mito... Quem era o ser mitológico que estava na árvore? Não me vem agora o nome... JN: Dafne. AM: Que maravilha. Em busca de Dafne num autocarro metropolitano, a dar voltas pelo Bairro Alto. JN: Sim, é cinema de bairro. [Terminamos a conversação com uma gargalhada]
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João Nicolau (1975), realizador, começou o seu percurso com Rapace (2006), recebendo o prémio de melhor curta metragem no festival de Vila do Conde. Realizou “A Espada e a Rosa” (2010) e “John From” (2015), este último prémio de melhor longa metragem no festival Filmadrid. |