|
ANTÓNIO OLAIO: O FINITO ENTRE FRONTEIRAS DA ARTEDONNY CORREIA2019-04-03
A arte contemporânea nos ensina que não se é mais possível pensar a poética como algo inédito. Após a experiência das vanguardas históricas na Europa do início do século XX, e seus desdobramentos para além das Guerras e da consolidação da sociedade de mercado, o que vimos ao longo dos últimos 50 anos foi uma intensa correlação de ideias, processos artísticos e suportes de produção da arte. Por um lado, há a sensação de que tudo que deveria ou poderia ser produzido, o foi. O pragmatismo e os novos estados de coisas numa sociedade orientada à alta produtividade e ao esgarçamento das relações humanas têm um papel preponderante no processo. Por outro lado, o campo se expande no sentido de que novos artistas são impelidos a trabalhar a forma existente de maneira a dar-lhe outros significados, reciclar seus sentidos e oferecer ao espectador novas vistas em torno do legado anterior. Com efeito, diz-nos um importante estudo sobre o tema: A estética contemporânea, sofrendo a influência desse ambiente próprio de uma civilização tecnocrata e pragmática, se orienta em três direções ou tendências: 1) Reaparecimento de tendências icônicas, ou representativas, desprestigiadas desde a época do expressionismo abstrato; 2) Reação ao abstrato e tendência ao neo-construtivismo; Expansão ambiental e tendência à arte conceitual (MOURÃO, s/d, p. 73). Nesta chave de atuação, encontramos o português António Olaio, nascido em 1963 em Sá da Bandeira, Angola, que vive, hoje, em Coimbra onde é professor no Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade local. Tendo uma carreira que se iniciou nos anos 1980, não poderiam ser diferentes seus diversos estímulos estéticos formais e conteudísticos. Chegou a formar um grupo musical chamado Repórter Estrábico, em que mesclava performances e poesia. A partir dos anos 1990, passou a produzir conjuntos artísticos em que a tónica dominante seria a conjunção de suportes da produção em diálogo intenso e imediato. Aqui, com este breve ensaio, pretendo partir da série “Pictures are not movies”, que António Olaio produziu em 2005, composta por 12 pinturas, um poema e uma música, cuja melodia é de autoria de João Taborda, parceiro musical de Olaio há vários anos. De princípio, o que depreendemos dessa série, bem como de outras produzidas pelo autor, é uma preocupação em não estabelecer hierarquizações categorizantes quanto ao meio pelo qual se expressa uma arte. Ao nos aprofundarmos em “Pictures are not movies”, observamos uma constante preocupação em estabelecer elos sólidos entre aquilo que se vê, aquilo que se lê e aquilo que se ouve, como se os três formassem uma aurística fenomenológica que nega o fim da arte por meio de sua reprodutibilidade técnica (vide Benjamin), ao mesmo tempo que reconstrói maneiras de se decodificar o universo da estética criteriosamente ao gosto de um tempo social e histórico massificado. O que Olaio parece perseguir a todo momento é uma maneira eficaz de recompor o elemento sensível da arte, perdido por força de um cerebralismo impelido contra uma sociedade utilitarista. Se desejarem uma asserção melhor elaborada de meu raciocínio, examinemos o que nos diz um dos diversos tratados estéticos de Merleau-Ponty, dos quais me valerei ainda outras vezes mais para meus argumentos: O mundo verdadeiro não são luzes, essas cores, esse espetáculo sensorial que meus olhos me fornecem, o mundo são as ondas e os corpúsculos dos quais a ciência me fala e que ela encontra por trás dessas fantasias sensíveis (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 3). Vejamos. Analisar Arte Contemporânea por vezes se torna um empreendimento exaustivo que não leva a parte alguma e não contribui para os estudos específicos se preso estiver a um sistema de massificação da percepção. Não se pode balizar a fruição estética pelo macroentendimento de mundo que o receptor presumidamente detém. Longe disso, a gama infinita de possibilidades deve ser abordada a partir de seus predicados autónomos, em que pese a formação, a instrução e o domínio estético-histórico do autor. Quero me utilizar, em primeiro lugar da mais impressiva imagem que compõe “Pictures are not movies”, 5 a.m, 6 p.m. A primeira imagem nos coloca diante de um discurso complexo quanto à interação entre distintos suportes de produção, como citei anteriormente. De modo geral, o traço de Olaio e suas escolhas estilísticas nos remetem a um surrealismo metafísico de Magritte, por exemplo, em que o desamparo inunda as vistas por meio de personagens isolados, deslocados de seu meio. A cor azul, que deveria trazer algum alento à percepção do espectador, não irá cumprir este papel. Ao contrário, potencializa a sensação desalentadora por meio das perspectivas das linhas que formam duas janelas pelas quais o observador deve procurar a chave de leitura. Algo incomum à pintura em sua evolução histórica é a inserção do verbo. Quando nos deparamos com uma imagem que nos arrebata, devemos mergulhar e perscrutar seus indizíveis. Mas, Olaio nos oferece uma pista a mais para a compreensão de sua criação, quer dizer, ao inscrever na imagem “5 a.m” e “6 p.m”, o enigma se torna mais intrigante. Especulo que o homem da janela à esquerda, jovem e distante, isolado e cabisbaixo se limite com a inscrição “5 a.m”, que no sistema anglo-saxão de medição de horas significa cinco horas da manhã. Um horário que não mede realmente o tempo em números, mas desloca a percepção do espectador para a alvorada do Homem. Tal qual o enigma da Esfinge, no amanhecer um jovem tem apenas uma vaga ideia de como o mundo se lhe apresenta. Há apenas um empirismo em torno daquilo com o que nos relacionamos. O contato corporal estreito só produz um “sentimento vago”, o “saber de um algo indeterminado” que nunca é suficiente para “acionar” a conduta [...] e para criar uma situação que reclame um modo definido de resolução (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 216). Portanto, a mera silhueta de um homem na paisagem em meio à neve, torna-se um elemento de reflexão a que o receptor é impelido a agir. Tal qual Magritte, a pintura se torna um espelho das relações intuitivas e transcendentes que estabelecem aquele que vê com aquilo que é visto. Vidente e visível tornam-se forças de um mesmo corpo estético em expansão. Isto se reforça ao olharmos a imagem da segunda janela, à direita. Um velho calvo, já de pele decrépita, no adiantado de seus dias, salta assombrosamente às nossas vistas, tanto quanto a indicação de hora “6 p.m”, ou seis horas da tarde, hora do crepúsculo, hora de o animal que de manhã caminha sobre quatro apoios e à tarde sobre dois, caminhar, à noite, sobre três esteios, quando vê, agora de perto, sua própria decadência na desolação relacional com o que o mundo lhe provê. As inter-relações constitutivas desta obra de Olaio caminham ao encontro do que há de mais urgente na Arte Contemporânea: sua incessante busca por estabelecer conexões entre o que se dá no quadro e o que se expande para além, no mundo físico e objetificado. “Nossa percepção chega a objetos, e o objeto, uma vez constituído, aparece como a razão de todas as experiências que dele tivemos ou que dele poderíamos ter”, diz-nos, mais uma vez, Merleau-Ponty (1999, p. 103). Tão relevante para um entendimento de ser e estar no mundo quanto a primeira imagem, é outra pintura da série que parece autopsiar a posição do Homem em relação à sua natureza finita e seus anseios infindáveis que jamais serão, de todo, contemplados. O esforço hercúleo que nosso personagem parece fazer para levar a termo aquilo que pretende escrever me faz recorder a primeira versão de A inspiração de São Mateus, de Caravaggio, em que o homem campesino, simples e – por certo, analfabeto – faz extremo esforço para colocar na página o que lhe revela o anjo. Tal versão foi censurada na época de sua execução. Mas, aqui, na segunda imagem, António Olaio ressuscita a ideia de uma empreitada dificílima a ser vencida antes que as velas do vigor da vida (convenientemente representadas em seu sentido concreto para produzir a interpretação figurada) derretam por inteiras. O que quer que nosso personagem, também uma figura no adiantado de sua idade, esteja pretendendo colocar em escrita, não há de ser mais implacável que o tempo conspirador, que corre em contramão do corpo físico e do espírito. Olaio parece nos querer dizer que nem mesmo as ideias estão imunes a esse tempo finito. Olhemos a vela que repousa quieta sobre um dos livros, à esquerda do quadro. Ela nos adverte que a chama que consome o ímpeto estético racional, também pode pôr termo ao próprio legado, nas gerações futuras. Ao fim e ao cabo, o que Olaio nos revela é a fragilidade do que somos, do que produzimos e de nossos intentos comezinhos. Por fim, gostaria de terminar esta breve apreciação – que não tem, nem de longe, pretensões de esgotar o significado, nem das obras comentadas, nem daquelas deixadas para outra ocasião – lembrando que, depois de posto meu olhar sobre uma amostra da série “Pictures are not movies”, o título parece autoexplicativo. Pinturas (Pictures), jamais serão como filmes (movies). O filme, seja sua narrativa a mais aberta possível e dando ao espectador elementos para distintas interpretações, ainda depende de uma linha diegética que leva o receptor de um ponto ao outro, necessariamente. A pintura apresenta-se apenas tal como é e com os elementos constitutivos ocultos em seus detalhes. Cabe àquele que toma contato com ela trazer à tona sua imensa sorte de sentidos, fazendo-a ser uma bula que agrupa um sentimento do tempo e do espaço no momento em que foi pensada e executada, e fazendo-a permanecer (ou às vezes não), para que gerações adiante, engolidas pela massificação de um sistema social e histórico, sejam capazes de extrair seus discursos que hão de se tornar atemporais e perenes.
Donny Correia
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas, 1948. São Paulo, Martins Fontes, 2004. MOURÃO, Rhéa Sylvia. Da influência do surrealismo na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Pallas S.A., s/d. |