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OS ESTADOS DAS ARTES VISUAIS FORA DOS CENTROS (PARTE I)ANTÓNIO PINTO RIBEIRO2010-02-17O convite da Artecapital era obviamente muito estimulante, mas absolutamente irrealizável, dado o tempo e os recursos humanos que seriam necessários para realizar uma investigação apropriada e exaustiva sobre o tema proposto. Ficam aqui apenas algumas premissas de um possível trabalho para uma equipa de investigadores, e algumas notas relativas a um conjunto específico de países, de algum modo representativo da situação da produção e difusão das artes visuais contemporâneas fora dos circuitos e dos países até há pouco tempo tidos como primeiros e históricos produtores. Há que, desde logo, partir da diferenciação das condições de produção, da expectativa de valorização nos mercados e dos valores financeiros que separam as artes visuais das artes performativas, ocupando estas últimas, em termos de transacção comercial, uma importância bastante residual, mesmo considerando a Ópera e as suas mega-produções. Relativamente às artes visuais, há ainda que diferenciar a criação não contemporânea cujos objectos constituem maioritariamente um valor simbólico − nada desprezível, bem pelo contrário −, sendo as suas transacções mais raras e sempre espectaculares pelos montantes obtidos. Existe ainda uma terceira diferença, que diz essencialmente respeito aos valores quantitativos e qualitativos das peças, caso se esteja a falar do circuito de Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Paris e Zurique/Basel, ou dos circuitos mais emergentes como o de São Paulo, Xangai, Dubai, México. Estes últimos, embora sendo já mercados em forte ascensão, são difusos nas formas de implantação, acantamento de clientes − pequenos e grandes coleccionadores − nas trajectórias das obras e na sua valorização. Também os motivos de exposição, como os de aquisição de obras, são sociologicamente ainda pouco estudados. Finalmente, aspectos relevantes como a existência ou não de mercados locais cruzando-se com o circuito internacional, o estímulo por parte das organizações governamentais, onde se incluem os museus, os mecanismos de apoio à produção e à difusão dos criadores, as formas de acolhimento de artistas estrangeiros e, finalmente, os mecanismos de criação e de visibilidade, como bolsas de artes e residências artísticas, fazem a diferença entre aquelas cidades ou países que na actualidade mais expectativas podem gerar. No âmbito deste trabalho inventariam-se oito casos de estudo de situações emergentes e tradicionalmente tidas como periféricas: Brasil, Chile, China e Hong Kong, Grécia, Turquia, África do Sul e Moçambique, sendo que não há um modelo que lhes seja comum e muito menos um estado das artes semelhante. BRASIL O Brasil é um caso invulgar e muito singular neste contexto. Tem uma História da Arte que remonta ao séc. XVIII com a presença de excelentes desenhadores, pintores e escultores holandeses, franceses e brasileiros de origem portuguesa. Foi palco de uma das mais produtivas formas de apropriação do modernismo europeu e, desde os anos 20 do século passado, tem tido uma produção constante de obras nas artes plásticas e foi numa cidade brasileira que se iniciou a segunda bienal mundial de artes. Na década de 1980, o Brasil foi o país da América do Sul que mais depressa respondeu ao fenómeno da implantação das artes plásticas na circulação dos objectos culturais e globais. Actualmente, com um crescimento económico muito importante, foi possível desenvolver um mercado local, a par de uma presença de artistas plásticos brasileiros nas principais feiras de arte mundiais e em exposições internacionais, sendo a diáspora das artes brasileira uma das mais reconhecidas internacionalmente. Os mercados locais estão situados especialmente nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Verifica-se que a razoável quantidade de dinheiro circulante nos últimos 15 anos no Brasil tem permitido o surgimento, muito visível, de novos coleccionadores. Por outro lado, essa massa de novos compradores ainda não teve grandes consequências no maior investimento público nos museus, na mesma proporção em que tal afectou os mercados. Há muitas galerias brasileiras operando regularmente em feiras internacionais, acompanhando também alguns dos seus artistas nas agendas desses circuitos. Isso faz com que exista uma correspondência regular com o exterior, embora ainda restringida a uma pequena parte da Europa e dos Estados Unidos. O mercado na América do Sul é inexistente, e a Ásia é, para os brasileiros, ainda um mistério, com vendas episódicas. O apoio do estado brasileiro − ao nível federal, estadual e municipal − à produção artística existe de forma diminuta, e todos os processos são muito burocratizados e como tal inibitórios. O mecenato, através da “Lei Rouanet”, é um mecanismo de apoio federal e um instrumento importante no apoio à produção e à aquisição de obras, contudo, como é um mecanismo de natureza fiscal complexo exige uma cultura empresarial mais sólida, o que nem sempre acontece. Apesar da economia robusta, o Brasil continua a confrontar-se com enormes problemas de desigualdade social e com um ensino muito precário, sendo estas duas áreas as principais do marketing político, onde a questão da cultura artística é absolutamente secundária. No entanto, alguma atenção lhe tem sido dada por sectores mais inovadores e empresários mais “atentos” à natureza simbólica da arte como meio de diferenciação social. E, como tal, a economia das artes tem atraído o seu interesse, nomeadamente pelas implicações financeiras que provocam as grandes itinerâncias de exposições ou as bienais de arte, com todos os negócios que envolvem: a receita de bilheteira e do marketing, a produção de livros, o pagamento a monitores, a emissão de passagens de avião, a reserva de hotéis, o design, os transportes, os seguros, etc., e o que cada um nessa cadeia paga de IVA e que constitui receita para os cofres do estado. Neste contexto, o Brasil será o país mais atento ao boom da produção artística na actualidade, e um dos seus melhores reflexos é a quantidade de galerias de elevado nível que existem principalmente no eixo São Paulo − Rio − Belo Horizonte, assim como os inventivos ateliers dos seus artistas. CHILE El Fondo Nacional de Desarrollo Cultural y las Artes (Fondart) é o organismo do estado chileno que financia projectos de investigação, de criação artística e de difusão nas áreas do património material e imaterial, das culturas indígenas, e também que apoia e sustenta as infraestruturas artísticas e culturais, garantindo a liberdade de criação e de direitos de cidadania. Nos últimos anos, o Chile, nomeadamente com o recente governo (2006-2009) de Michelle Bachelet, estruturou muito bem o sector público das artes e da cultura, profissionalizando-o e convocando para as múltiplas direcções e programas uma nova geração de técnicos culturais e de especialistas mais bem formados e melhor informados sobre a actualidade produtiva. Aquele sector tornou-se uma prioridade da política governamental, cujos principais efeitos já se reflectem no domínio da produção e da difusão internacional do teatro, na produção quantitativa e qualitativa de cinema e no domínio das artes plásticas. Neste âmbito, patrocinou-se a construção de novos espaços, activou-se a política de exposições no estrangeiro, incentivou-se o coleccionismo e criou-se uma Trienal das Artes. Foram criadas linhas de apoio direccionadas tanto para uma produção mais erudita, como para a criação cultural mais local, em cidades com menos de 50 000 habitantes. A internacionalização é igualmente uma das preocupações desta política cultural, tendo já obtido alguns resultados visíveis, como a visita de responsáveis de importantes museus estrangeiros, nomeadamente americanos, ao Chile para a aquisição de obras de artistas nacionais. Ainda recentemente, o Museu de Arte Moderna de Houston, a sua Associação de Amigos e um representante da Christie’s estiveram no Chile para adquirirem obras de artistas chilenos como Roberto Matta, Mario Carreño, José Balmes, Gracia Barros, Matilde Pérez, Gonzalo Díaz, Eugenio Dittborn, Claudio Bravo, Carlos Ortúzar y Guillermo. A recém inaugurada Ch.ACO - Feira de Arte de Santiago do Chile - é a prova que um mercado local está a iniciar-se, capaz de incentivar o coleccionismo, muito focado nas obras de origem latino-americana. As principais galerias – e em número ainda não muito significativo – concentram-se em Santiago do Chile e ValParaíso e oscilam entre galerias de grande qualidade e inovação como a Animal, Afa, Moro e Metropolitana. Exteriores e um pouco à margem do lado mais institucional da arte, existem os ateliês de muitos artistas – que se devem absolutamente visitar – que estão a criar e produzir continuamente, sendo que a maioria deles exerce outra profissão para sobreviver economicamente. Existe já uma diáspora chilena em Berlim e Nova Iorque a integrar os mercados internacionais. CHINA (Beijing e Xangai) Beijing É o principal centro cultural e artístico da China, não só porque na cidade se concentram hoje a maioria dos artistas, galerias, estúdios, coleccionadores, mas também porque foi nela que se iniciaram as vanguardas artísticas, designadas de subversivas pelo poder político antes do massacre de Tiananmen em 1989, e consideradas dissidentes após esse ano. A ‘revolução’ pós-Mao partiu deste centro urbano, com todos os aspectos negativos e positivos que essa transição acarretou. À medida que estas transformações foram ocorrendo e o cenário artístico chinês se foi solidificando a nível internacional, durante os anos de 1990, esses factores contribuíram para uma maior abertura do poder politico local relativamente à arte contemporânea. De qualquer forma, essa abertura é ainda hoje ambígua, principalmente no que diz respeito aos apoios à arte por parte do Estado, e pela questão da censura, que obviamente ainda existe, e de que o organismo regulador para as artes, o Beijing Cultural Bureau Office / Beijing Municipal Culture Bureau – Division of Policy and Regulations é o principal agente. Os galeristas, os directores de museus e os curadores devem submeter a este organismo um dossier sobre as exposições que pretendem realizar para apreciação. Se os seus temas tiverem um conteúdo que não se adequa à sua perspectiva política, serão obviamente recusadas. Nesses temas censurados incluem-se aqueles que expõem obras de cariz sexual e pornográfico, críticas ao partido e/ou a figuras históricas ou políticas chinesas. Claro que os intervenientes culturais aprenderam a contornar estas situações de forma mais subtil. Xangai A primeira Bienal de Arte Contemporânea, realizada em 1994, foi um marco na internacionalização de Xangai. Desde então, a cidade tem sentido um crescimento económico que se fez acompanhar de uma revitalização cultural e artística, embora não com a envergadura de Beijing. Ainda assim, a partir de 2003 e num espaço de três anos, surgiram três museus privados e novas galerias e, desde 2007, realiza-se ali uma feira de arte contemporânea que tem atraído muito público local e internacional. O seu papel enquanto cidade financeira e económica prevalece (ou oculta) sobre a vertente cultural. O seu cenário artístico é mais disperso e discreto que o de Pequim mas, em contrapartida, Xangai é mais aberta e internacional. Tem que se debater, no entanto, com estratégias de sobrevivência, isto é, se por um lado, essa discrição leva a que os artistas estejam mais alheios à pressão do mercado local, por outro lado, como produz menos artistas e galerias, o seu esforço para manter essa dinâmica com qualidade é maior. O mercado interno da arte contemporânea é um meio ambíguo, como quase tudo na China e, apesar de ter florescido nos últimos cinco anos, ainda tem um longo caminho a percorrer. A sua expansão (ou estado de maturação) está a mudar a natureza do mercado artístico global relativamente à arte chinesa. A maioria dos compradores de arte chinesa continuam a ser os coleccionadores americanos e europeus, e na Ásia, são os coreanos, japoneses, indonésios, e alguns compradores chineses. São escassos os compradores que se podem qualificar de coleccionadores, com sentido de gosto face à obra de arte – coleccionadores como Uli Sigg ou Guy Ullens estão reduzidos a uma minoria. Hoje são os novos-ricos – pequena parcela privilegiada – que compram obras de arte contemporânea. Os artistas preferidos dos mercados são os chineses continentais que nasceram nas décadas de 1960 e 70. Os leilões principais, como os da Sotheby’s ou da Christie’s (concentrados em Hong Kong), assumem a maioria das vezes um papel relevante no mercado, dada a sua flexibilidade para subverter a percepção real das vendas. Paralelamente, e de forma a fazer frente a estes leilões estrangeiros, as próprias leiloeiras asiáticas (Seoul Auction ou Asian Auction) iniciaram a sua rede. Por outro lado, as origens dos capitais que investem em arte a nível interno são bastante dúbias. Na China não se pensa e age a longo prazo, o que leva a uma excessiva manipulação da realidade. O mercado interno cresce, mas não significa que esteja a crescer bem. No que diz respeito à circulação internacional das obras, ela começou ainda antes deste boom explosivo, no final da década de 1990, com artistas chineses que rapidamente se tornaram ícones como Qi Zhilong. Em Portugal, a Culturgest organizou em 2003 uma grande exposição de arte chinesa adquirida a partir da década de 1970 na China, a que deu o nome de Arte chinesa contemporânea: subversão e poesia. Mais, recentemente, de Outubro de 2008 a Janeiro de 2009, no espaço expositivo da Saatchi Gallery em Londres apresentou-se uma exposição de arte chinesa contemporânea denominada The revolution continues: New Chinese art. Depois de um primeiro período de descoberta, seguiu-se um período em que se registou uma regulação dos mercados. Os coleccionadores compram obras chinesas desde os anos de 1980, e os museus começaram a partir de 2000. Devido a esse interesse, os valores das obras subiram nos mercados e multiplicaram-se as exposições de e sobre artistas chineses. Os números, apesar de tudo não são excessivos. É sobretudo relativamente aos apoios à arte contemporânea que o panorama muda, o que contribui para que haja um desequilíbrio entre condições e reconhecimento. O ministério da cultura tem interesse em apoiar sobretudo a participação da China nas bienais, feiras, ou outros eventos que chamam as massas. A nível individual, ainda são escassos os apoios aos artistas. O distrito artístico, por exemplo, foi praticamente construído com fundos privados. Não existe apoio à criatividade artística. Existe a nível de cada cidade apoio municipal para determinados espectáculos, museus estatais, o arrendamento de espaços e pouco mais. A política cultural é anacrónica perante o potencial artístico. As residências artísticas são feitas sobretudo através dos espaços alternativos que se ligam em rede, suportando todos os custos que isso implica. Os espaços alternativos fazem assim muitas vezes o papel de instituições com fundos estrangeiros. HONG KONG (HK) O primeiro centro de exposições privado surgiu nos finais da década de 1970. Durante as décadas de 80 e 90, foram sobretudo espaços alternativos os principais dinamizadores do cenário artístico. Em 1995, foi constituído o Arts Development Council, organismo estatal de apoio à criação, produção e divulgação das artes visuais e performativas. Podem observar-se duas características negativas de Hong Kong: uma politica cultural mais direccionada para as indústrias criativas (Bairro de West Kowloon) e um défice de museus, em particular, de museus de arte contemporânea. Hong Kong concentra grande parte das leiloeiras estrangeiras e encontros de leiloeiras asiáticas, que agora aproveitam a realização da feira de arte contemporânea para efectuar os leilões. Os alvos do mercado em HK continuam a ser as obras dos artistas chineses do continente. Apesar dessa tendência, o aparecimento da Hong Kong International Art Fair (ART HK) em 2008 e a abertura de três novas galerias que representam artistas locais, têm vindo a contribuir para a mudança desse cenário. De qualquer forma, esses artistas distanciam-se das posturas dos artistas chineses do continente relativamente à sua obsessão pelo sucesso e mercado. O valor de exportação de obras de arte em Hong Kong, comparativamente à China, é maior – possivelmente por causa da sua localização, pelo facto de haver isenção de taxas e pelas próprias condicionantes que a China impõe. As diferenças dos apoios à arte contemporânea e aos artistas verificam-se também por causa da existência de uma administração local. O Home Affairs Bureau, através do Arts Development Council (estatal), tem um programa de bolsas individuais, apoiando também eventos como bienais e a participação em exposições. Este organismo tem levado a cabo uma reestruturação da política cultural, que ainda ocorre. Depois existem organismos privados, como o Art Asia Archive, arquivo/fundação que apoia monetariamente artistas, promove exposições e facilita a rede de residências artísticas e de curadoria); alguns espaços alternativos que conseguem fundos estrangeiros, assim como mecenas privados e algumas fundações. Pode dizer-se que actualmente os artistas têm boas condições de trabalho e apoios. A outra vantagem da criação artística em Hong Kong é não estar sujeita a censura, o que não é de somenos importância. Nota do autor Este artigo só foi possível dada a generosa colaboração de José Bechara, Maria Vlachou, Sandra Lourenço, Esra Sarijedik, Federica Angelucci, Elisa Santos, Beatriz Bustos e Ana Barata a quem muito agradeço. António Pinto Ribeiro Nota da editora A segunda parte deste artigo está disponível em: www.artecapital.net/perspectivas.php?ref=108. |