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NO SEMINÁRIOMADALENA FOLGADO2022-05-31
"Wherever you go, there you are."
Buckaroo Banzai
À entrada do recinto do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, um azulejo com uma vieira, símbolo do caminho de Santiago de Compostela, confirma o vestigial da Meia-Noite, tema da Bienal de Arte Contemporânea de Coimbra, Anozero – Confirma-o, no firmamento…em aberto. Não se sabe se terá sido à meia-noite, mas aquilo que no passado se deslocou fugazmente no espaço celeste, uma tal chuva de estrelas, que permitiu localizar as relíquias do apóstolo São Tiago, atribuindo-lhe o epíteto ‘campo de estrelas’, em latim campus stellae – e por aglutinação, Santiago de Compostela – pede passagem noutro campus: O Campus Universitário do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Lá, à noite, foi tomada e transferida a sua negatividade; tem vindo a ser criado um campo epistemológico que é também o campus físico do Colégio, passível de acolher fulgurantes manifestações constelares – inesperados acontecimentos figurativos do Ser – afirmando outros modos de saber e de investigar, transformando assim a academia em médium. O conjunto das quatro exposições que nos ocupa tem, portanto, lugar noutro espaço físico. Por esta ocasião, já as visitei; integram o projeto Seminário, desenvolvido no âmbito da Programação Convergente da Bienal. Todavia, os processos constelares – ou anacrónicos –, que me são particularmente caros, implicam-nos na montagem e remontagem do tempo, dando a ver a “sobrederminação das imagens” [1]; que ocorre mediante “temporalidades distintas a trabalhar em consonância” [2]. Nestes instantes, em tempo linear, posteriores à visita principal, estendo a compreensão da experiência das quatro exposições; permito também que se estilhace, que se espacialize numa rede maior de sentido, ou simplesmente, que lhe seja alterada a escala. Dessa implicação, que não se explica, uma vez que falamos do vestigial da arte – enquanto movimento contínuo, e não imagem – emerge muitas vezes algo de salvífico; redentor. Dido de outra maneira: o modo como as imagens aparecem, e que sempre nos escapará, é determinante, se as pensarmos enquanto ‘meia-noite’, i.e., ‘meia-negatividade’, interstício, espera, clarão-rasgo, e não enquanto ideias tornadas clarões estéreis, por recalcamento da negatividade da experiência, e portanto apenas ‘instagramáveis’. Antes, enquanto coreografia, tornada possível pelo movimento que é a vida, quando coincidente com uma prática de atenção periférica; a outra atenção, a que tudo liga – A “desfocagem”, nas palavras da coordenadora do Projeto, Ana Rito, artista visual, curadora, investigadora e docente. Fala-nos, por isso, de uma “exposição-investigação-coreografia”, e não tanto de uma curadoria, mas de um “gesto curatorial” em aberto, e deste modo, de uma gestação em continuum, disso, que pede passagem, que nos quer aparecer, excedendo-nos; para lá, do controlar e prever de uma investigação positivista. Na conceção do projeto Seminário, como referido no texto curatorial, está por isso a noção de hospitalidade. Antes ainda de discorrer sobre as quatro exposições de Seminário, eis um sintoma intemporal do nosso tempo, e com ele, redentoras e iconoclastas possibilidades de seminarismo: Antes de ingressar na exposição principal da Bienal, ainda no Convento de Santa Clara-a-Nova, mas já depois do Seminário, uma inexplicável curiosidade – como sempre – fez-me entrar na porta da Confraria da Rainha Santa Isabel. Naquele instante, um padre católico, fundamentado na sua investigação, esclarecia uma visitante que a atribuição do milagre das rosas à rainha portuguesa resultou, afinal, de uma apropriação iconográfica da sua tia-avó húngara homónima. O analfabetismo de outrora – e não tão distante – encontra a falta de resiliência na leitura do agora, a simplificação simplista dos factos, a limitação de caracteres e de carácter. John Berger falou-nos há muito de um tipo de obras de arte que estendem a experiência do espectador, na medida em que não são concebidas a partir de um esquema abstrato, e que portanto não removem aparências do seu corpo essencial e específico de significados; não o esfolam – estas serão, segundo o pensador, as verdadeiras [3]. Dir-se-ia, as que mais desejamos, as que nos despertam a ser mais de nós; as que nos religam. É este o tipo redenção que os processos constelares conduzem, tão relevante em tempos de ‘pós-verdade’; através dos mesmos, muitas narrativas de poder se estilhaçam. No Seminário sente-se uma revigorante tomada de responsabilidade sobre as vidências e não tanto sobre as evidências [4], não se recalcam modos de saber não positivistas; os artistas-professores, como o padre católico, não alienam a sua responsabilidade às instituições que representam. “Pode uma instituição académica curar uma exposição que se pensa a si mesma e aos seus processos constitutivos na produção e disseminação de conhecimento?” – pergunta o texto curatorial geral. Pode-com, dir-se-ia, horizontalizando a sua estrutura, começamos por isso por Comer a mesa, com curadoria de Luís Alegre e Hugo Barata – Também não temos rosas, se não pintadas. Temos antes, outros pequenos milagres percetivos; uma “exposição-investigação-coreografia”, e portanto, o seu movimento, lembrando que rosa no sânscrito significa “a que baloiça” [5]. Temos Pão de Tiago Baptista e alguma loiça, que baloiçou – assombrada, por António Olaio, professor-artista nesta Instituição. Os curadores de Comer a mesa e de The art of teaching foram convidados pela curadoria geral do Colégio. Não podemos dizer que estamos diante de obras de um star-system, antes, de uma constelação de autores, de uma enorme diversidade, que se encontra através daquilo que quer aparecer; neste projeto, como referido no texto curatorial geral, o gesto cutatorial é uma prática de comunhão. Ao lado da chávena de António Olaio, temos o Laboratório de Materiais, a partir de Le Corbusier; esta peça, a par de outras variações, guarda o espanto da artista, quando num outro seminário, na Universidade de Harvard, viu o seu processo criativo transformar-se em obra de arte, e por esta instituição académica adquirida [6] – Porque estamos na Academia, e na Academia enquanto médium, convém lembrar: “Avaliar é criar – ouvi, ó criadores! São as vossas avaliações que transformam as coisas avaliadas em tesouros e em jóias”. [7] Ao lado das caixas de Fernanda Fragateiro, uma série impressões de Batia Suter, com marcas de dobra, Tool, lembra-nos, por outro lado, que “É a obra que sustenta a totalidade das referências na qual o instrumento vem ao encontro” [8]. Em frente, Waterfront: Um jogo de imagens sobre uma mesa faz aparecer a sombra luminosa da água, que empresta a sua essência aos copos invertidos, e que ora funcionam como lentes, procurando capturar a sua espectralidade, ora como seus condutores. Batia Suter expõe estes dois trabalhos pela primeira vez nesta exposição. Como todos os que, como o historiador de arte e cultura Aby Warburg, são tomados pelo movimento avassalador da torrente de imagens, nunca vê a sua sede saciada. Site Recite (a prologue), de Gary Hill, é um vídeo que compõe, sobre uma mesa, elementos em decomposição; aquilo que poderia ser uma colheita num bosque, i.e., componentes de húmus – etimologicamente, na origem das palavras humildade, homem e humanidade – o substrato mais fértil – criativo – da terra, onde ocorrem as misteriosas transformações alquímicas. A estas relíquias várias, juntam-se também elementos de outras proveniências, como conchas e notas amachucadas. A câmara foca e desfoca estes elementos – como que num registo póstumo da coreografia da atenção. E, que não é apenas imagem e palavra recitada, mas fundamentalmente escuta ativa. Talvez com alguma vanitas, e portanto não com tanta humildade, Andy Warhol, só, junta-se a Comer a mesa. Come um hamburger, uma iguaria das massas e, como nos dá a ver, não só. Ao lado, Desire as a gift, de Cecília Corujo e Juliana Julieta. Ainda nesta exposição, Miguel Palma e Gabriela Albergaria tomam da polissemia da palavra Seminário, o sentido de semente. A artista oferece-nos ao toque Peça para mão, uma semente negra. E, nesse toque, uma espécie de concentração de tudo o que em nós estava disperso. Nos instantes que a seguro, sinto essa potência esquecida, e da mesma, uma ecologia emergente. Esta concentração é a polaridade magnética que dá origem às constelações; aos acontecimentos figurativos do Ser.
Em (mesa) Fazer a mesa, os curadores e artistas Luís Alegre e Hugo Barata, servem-nos diferentes ordens de saber e sabor; investigações sinestésicas, ligações por fazer. Tudo está em aberto. Em frente, Regressamos ao Presente e deste em diante, por Nuno Sousa Vieira, onde a mesa é a grande ausência. “Etiam mensas consumimos. Consumimos até as nossas mesas”, é o mote do texto curatorial desta exposição, segundo os curadores, esta terá sido “a expressão […] proferida pelos soldados de Tróia junto de Eneias. […] Talvez de forma inusitada, surge aqui o herói homérico relacionado com a comensalidade enquanto gesto de resistência". Eis-nos em The Art of teaching. Interpolo desde já o título, com as palavras de Ana Rito, durante a visita guiada, para que não haja espaço para equívocos: “The Art of teaching…Yes, because teaching art…we don’t”. Esta exposição concerne uma programação de visionamento “[...] de filmes e vídeos de artistas que estendem as ideias exploradas no projeto do Seminário para o domínio da imagem em movimento. Assumindo múltiplos e variados modos de expressão, desde os primeiros documentos a preto-e-branco a um vídeo do You Tube”, como refere o texto de apresentação, e conta com a curadoria de Lori Zippay, António Câmara Manuel e Irit Batsry. Será possível visionar a seleção feita pelos curadores até ao final da exposição, dia 15 de Julho. Chegamos a Syllabus. Dias antes de visitar esta exposição, fui advertida para o carácter híbrido do espaço expositivo, de tal modo, que havia recentemente dado lugar a uma prova de doutoramento. Como tal, era-me então gentilmente assegurado que o espaço estaria pronto para ser visitado, aquando da minha chegada a Coimbra. Muito naturalmente, fiquei de imediato curiosa, e, ao chegar, as minhas espectativas foram superadas. Sobre a novíssima mesa, desenhada por professores do corpo docente do Colégio das Artes, desta recém-criada sala de doutoramentos, pode ser visionado, KUENSTLERLEBEN/Vida de Artista, de António Olaio. Nesta sua performance, que apesar do arrojo não coincide com a performance das provas públicas de mestrados e doutoramentos, o que, como tal, implica toda uma outra performance em ‘esterilizar’ este espaço tão emblemático da Academia – i.e., os vídeos são desligados, assim como removidas das paredes todas as obras da exposição – o artista-professor dança a coreografia dos – espera-se – novos tempos na Academia. Dá corpo à ninfa académica, fazendo esvoaçar a sua beca; o traje académico, sem ultrajar a Instituição. Esta é, Senhor Professor, uma imagem que não me sai da cabeça… A ninfa académica constela com uma outra ninfa, porque é de processos constelares que temos vindo a falar. A Ninfa é o tema central do Painel 46, do Atlas de Imagens de Aby Warburg. É a jovem – o novo – que chega, de vestes esvoaçantes – se não mesmo a própria corrente de ar, i.e., os ventos de mudança – que ventila todo o espaço pictórico do afresco de Domenico Ghirlandaio O Nascimento de São João Baptista, e não só…ela sempre traz consigo a abundância; é a fonte das imagens artísticas. O historiador, considerado artista postumamente, tanto a fetichizou, quanto a tornou a sua heroína: “o objecto dos meus sonhos, que toda a vez se torna num encantador pesadelo” [9]. Roberto Calasso refere-se às ninfas, nomeadamente a warburgiana, como as “Águas Mentais” [10] – estamos ainda, portanto, em constelação com Waterfront de Batia Suter.
Waterfront, 2022, Batia Suter © José Maçãs de Carvalho
Continuando em Sylllabus, sem dúvida a exposição mais híbrida do projeto Seminário, com curadoria do Colégio das Artes, e tendo ainda presente o processo de ‘esterilização’ que mencionámos a propósito da alternância de usos, detenhamo-nos em duas fotografias de José Maçãs de Carvalho, da série “Arquivo e Vestígio”. Elas são esses intervalos, carregados da negatividade das experiências, não acessíveis ao olhar do público, com lugar nos museus e/ou das bibliotecas. Revelam, uma vez mais, os movimentos – as delicadas coreografias ocultas – que ocorrem na manutenção dos seus espólios, manutenção essa, em si mesma, devir curadoria. Syllabus é um espaço de “implicação mútua”, ( ) Hands_Words_Ghosts é prova disso, uma vez que a sua autoria é atribuída à artista-professora Ana Rito e ao Laboratório de investigação com a colaboração dos estudantes do Curso de Doutoramento em Arte Contemporânea. Ao deter-me neste canto, abrigada, re-me-moro três coisas. A primeira, é uma leitura de Silvina Rodrigues Lopes sobre Agustina Bessa-Luís:
“Diz a Agustina: ‘É na educação que está a possibilidade de entender o mundo como um eterno recomeço […]. A educação é a reciprocidade; o mestre falha quando faz das suas próprias limitações pontos imaginários da dialética humana, em vez de interessar nisso o seu próprio aluno, incluindo-se a si mesmo na educação. A confiança em relação a uma autoridade só pode resultar pela aliança perante a decifração da realidade’. Hoje, quando se fala tanto em educação e em confiança, será bom que meditemos no que elas significam de ruptura com uma autoridade que não assente na transmissão enquanto implicação mútua”. [11]
Em segundo lugar, rememoro uma interlocução por Maria Filomena Molder, no decorrer de uma conferência; qualquer coisa como: “Ler é um ato de um vivo, para tornar vivo aquilo que lê”. E, por último, Maria Gabriela Llansol, e o seu "homem fragmentado numa miríade de escreventes-legentes.” [12]. Este canto, abrigado, tem um relator, é Pedro Pousada. Teach us to be still, de Marcelo Moscheta, é a quarta e última exposição, e tem curadoria dos alunos do Mestrado em Estudos Curatoriais – Diz o seu texto curatorial, que “é um apelo”. Dir-se-ia, um apelo para que possamos dar passagem ao silêncio, e que este, escave um abrigo para a “velocidade do cavalo parado”, do poeta Rafael Alberti: A velocidade de Ser, e com ela, a aparição do tempo – o tempo vertical. Marcelo Moscheta re-parou a nossa possibilidade de subida…e descida. Mas antes, procurou correspondência, entre os alunos-curadores; enviou postais com paisagens, para que podessem des-cobrir a sua ferida – detectar a sua dobra – e curá-la. As dobras mapearam os desdobramentos dos degraus das suas escadas; escadas de tiro. “Moscheta [não falhou assim o alvo, e-terno] eleva um conjunto de pedras resgatas do Claustro do Colégio das Artes que – suspensas na sua leve e transladada permanência – repousam agora sobre uma série de dispositivos desenhados pelo artista, evocando a essência transmutável da arqueologia sensível de ruína temporal” – esta é a voz dos alunos-curadores, entrelaçada com minha, a nossa.
Madalena Folgado É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.
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Notas: [1] Georges Didi-Huberman, Diante do tempo: História de arte e o anacronismo das imagens. Lisboa, Orfeu Negro, 2017, p. 17. [2] Georges Didi-Huberman, op. cit, p.156. [3] John Berger, John Berger – The Selected Essays. London, Bloomsbury, 2001, p. 224. “The distinction between works produced according to an abstract schema and those rare works which extend, as distinct from transposing, the experience of the spectator, is that the latter never remove appearances from the essential and specific body of meaning behind them. (They never flay their objects). They deny the validity of any outside prize.” [4] Eduardo Lourenço, “Espírito da Arte / Arte do Espírito” – comunicação a 5 de Novembro de 2015, no Auditório da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, no âmbito do ciclo de conferências Duetos. “São precisas mais vidências, do que evidências”. [5] Agustina Bessa-Luís citada por Silvina Rodrigues Lopes, “A realidade admirável do comum”, in Silvina Rodrigues Lopes, Exercícios de Aproximação, Lisboa, Vendaval, 2003, p. 181. [6] Fernanda Fragateiro, “Fernanda Fragateiro em nome próprio. Entre livros e arquitetura” in Diário de Notícias, 21 Junho 2017, consultada dia 30 de maio de 2022. [7] Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra, Lisboa, Babel, 2015, p.90. [8] Martin Heidegger, Ser e tempo, 1988, Petrópolis, Vozes, p. 111. [9] Giorgio Agamben, Ninfas, Hedra, São Paulo, 2012, p. 28, 29. [10] Roberto Calasso, "Águas Mentais" in Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, 2003, p. 34. [11] Agustina Bessa-Luís citada por Silvina Rodrigues Lopes, “Notas sobre a Alegria do Mundo”, in Silvina Rodrigues Lopes, Exercícios de Aproximação, Lisboa, Vendaval, 2003, p. 137. [12] Francisco Saraiva Fino, "O tempo de um corpo ao derramar-se" in Daniel Faria, O Livro do Joaquim, 2019, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 98.
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