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ATLAS 
¿CÓMO LLEVAR EL MUNDO A CUESTAS?
26 de Novembro de 2010 - 28 de Março 2011 

Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid



Texto de apresentação de Georges Didi-Huberman da exposição homónima em cartaz no Museu Reina Sofía, em Madrid, até 28 de Março de 2011.



A partir do Atlas Mnemosyne

A mitologia grega conta que o titã chamado Atlas, junto com o seu irmão Prometeu, quis enfrentar-se aos Deuses do Olimpo para retirar-lhes o seu poder e dá-lo aos homens. Conta que foi castigado na medida da sua força: enquanto o abutre arrancava o fígado a Prometeu nos confins do Este, Atlas, no Oeste, (entre a Andaluzia e Marrocos) foi obrigado a suster com os seus ombros o peso da abóbada celeste. Conta também que carregar esta carga fez com que adquirisse um conhecimento infranqueável, e uma sabedoria desesperante. Foi precursor de astronautas e geógrafos, e inclusivamente alguns dizem que foi o primeiro filósofo. Deu o seu nome a uma montanha (o Atlas), a um oceano (o Atlântico) e a uma forma arquitectónica antropomórfica (Atlante) que serve como coluna de suporte.

Atlas, finalmente, deu o seu nome a uma forma visual de conhecimento: ao conjunto de mapas geográficos, reunidos num volume, geralmente, num livro de imagens, cujo destino é oferecer aos nossos olhos, de maneira sistemática ou problemática – inclusivamente poética, com risco de ser errática, quando não surrealista – toda uma multiplicidade de coisas reunidas por afinidades electivas, como dizia Goethe. O atlas de imagens converteu-se num género científico por direito próprio a partir do século XVIII (pensemos no livro de lâminas da Enciclopédia) e desenvolveu-se consideravelmente nos séculos XIX e XX. Encontramos atlas muito sérios, muito úteis – geralmente muito bonitos – no âmbito das ciências da vida (por exemplo os livros de Ernst Haeckel sobre as medusas e outros animais marinhos); existem atlas mais hipotéticos, por exemplo no âmbito da arqueologia; também temos atlas totalmente detestáveis no campo da antropologia e da psicologia (por exemplo o Atlas do homem criminal de Cesare Lombroso ou alguns dos livros de fotografias «raciais» constituídos por pseudo-eruditos do século XIX).

No âmbito das artes visuais, o atlas de imagens, Atlas Mnemosyne, composto por Aby Warburg entre 1924 e 1929, que ficou inacabado, constitui para qualquer historiador da arte – e para qualquer artista contemporâneo – uma obra de referência e um caso absolutamente fascinante. Aby Warburg transformou o modo de compreender as imagens. Ele é para a história da arte o equivalente ao que Freud, seu contemporâneo, foi para a psicologia: incorporou questões radicalmente novas para a compreensão da arte, e em particular a de memória inconsciente. Mnemosyne foi a sua obra mestra e o seu testamento metodológico: reúne todos os objectos da sua investigação num dispositivo de “painéis móveis” constantemente montados, desmontados, remontados. Aparece também como uma reacção de duas experiências profissionais: a da loucura e a da guerra. Pode ver-se então como uma história documental do imaginário ocidental (herdeiro nestes termos de “Los Desastres de la Guerra” e de “Los Caprichos” de Goya) e como uma ferramenta para entender a violência política nas imagens da história (comparável nisto ao compêndio de “Los Desastres de la Guerra”).


Na mesa de montagem

“Atlas — ¿Cómo llevar el mundo a cuestas?” é uma exposição interdisciplinar que percorre o século XX e o nosso recente século XXI, elegendo o atlas de imagens Mnemosyne como ponto de partida. Apesar de todas as diferenças de método e conteúdo que podem separar a investigação de um filósofo-historiador e a produção de um artista visual, ficamos espantados pelo seu comum método heurístico — ou método experimental— quando se baseia numa montagem de imagens heterogéneas. Descobrimos então que Warburg partilha com os artistas do seu tempo uma mesma paixão pela afinidade visual operatória, o que o converte em contemporâneo de artistas plásticos de vanguarda (Kurt Schwitters ou László Moholy-Nagy), de fotógrafos de “estilo documental” (August Sander ou Karl Blossfeldt), de cineastas de vanguarda (Dziga Vertov ou Sergei Eisenstein), de escritores que ensaiavam a montagem literária (Walter Benjamin ou Benjamin Fondane), e inclusivamente dos poetas e artistas surrealistas (Georges Bataille ou Man Ray).

A exposição “Atlas” não foi concebida para reunir pinturas maravilhosas, mas para ajudar a compreender como trabalham alguns artistas – em relação com eventuais obras mestras – e como este trabalho pode considerar-se desde o ponto de vista de um método autêntico e, inclusivamente, desde um conhecimento transversal, não estereotipado, o nosso mundo. Nesta exposição não se vêem as belas aguarelas de Paul Klee, mas o seu modesto herbário e as ideias gráficas ou teóricas que brotaram dele; não se vêem os modernos “quadrados” de Joseph Albers, mas o seu álbum de fotografias realizado sobre a arquitectura pré-colombiana; tão pouco as imensas pinturas de Rauschenberg, mas uma série de fotografias reunindo objectos tão modestos como heteróclitos; não se vêem as magníficas pinturas de Gerhard Richter, mas uma secção de montagens realizadas para o seu "Atlas" de longa duração; não se vêem os cubos minimalistas de Sol LeWitt, mas as suas montagens fotográficas nas paredes de Nova Iorque. Em vez das pinturas (como resultado do trabalho) preferimos, as mesas (como espaços operativos, superfícies de jogo ou de realização do trabalho). E ao caminhar pela exposição descobrimos que os supostos “modernos” não são menos subversivos que os “pós-modernos”, e que estes não são menos metódicos e preocupados pela forma que os “modernos”. Constitui uma nova forma de contar a história das artes visuais afastada dos esquemas históricos e estilísticos da crítica académica da arte.


Reconfigurar a ordem das coisas

Quando colocamos diferentes imagens — ou diferentes objectos, como as cartas de um baralho, por exemplo — numa mesa, temos uma constante liberdade para modificar a sua configuração. Podemos fazer constelações. Podemos descobrir novas analogias, novos trajectos de pensamento. Ao modificar a ordem, fazemos com que as imagens tomem uma posição. Uma mesa não se usa nem para estabelecer uma classificação definitiva, nem um inventário exaustivo, nem para catalogar de uma vez por todas — como num dicionário, um arquivo ou uma enciclopédia—, mas para recolher segmentos, troços da fragmentação do mundo, respeitar a sua multiplicidade, a sua heterogeneidade. E para outorgar legibilidade às relações postas em evidência.

Esta é a razão pela qual "Atlas" nos mostra o jogo a que se entregam numerosos artistas, essa “história natural infinita” (segundo a expressão de Paul Klee) o esse “atlas do impossível” (segundo a expressão de Michel Foucault com relação à erudição desconcertante de Jorge Luis Borges). Descobre-se, então, o sentido em que os artistas contemporâneos são “sábios” ou precursores de um género especial: recolhem pedaços dispersos do mundo como faria uma criança ou um trapeiro - Walter Benjamin comparava estas duas figuras com o autêntico sábio materialista. Fazem com que se encontrem coisas fora das classificações habituais, retirem destas afinidades um género de conhecimento novo, que nos abrem os olhos sobre aspectos do mundo inadvertidos, sobre o inconsciente da nossa visão.


Reconfigurar a ordem de lugares

Fazer um atlas é reconfigurar o espaço, redistribuí-lo, desorientá-lo em fim: deslocá-lo aí onde pensávamos que era contínuo, reuni-lo ali onde supunhamos que havia fronteiras. Arthur Rimbaud recortou um dia um atlas geográfico para consignar a sua iconografia pessoal com os pedaços obtidos. Mais tarde, Marcel Broodthaers, On Kawara ou Guy Debord inventaram muitas formas de geografias alternativas. Aby Warburg já tinha entendido que qualquer imagem — qualquer produção de cultura em geral — é um encontro de múltiplas migracções: é em Bagdad, por exemplo, que vai buscar os significados inadvertidos de algunos frescos do Renacimento italiano.
São numerosos os artistas contemporâneos que não se conformam apenas com uma paisagem para contar-nos a história de um país: é a razão pela qual coexistem, numa mesma superfície — ou lâmina de atlas — diferentes formas para representar o espaço. É uma forma de ver o mundo e de percorrê-lo segundo pontos de vista heterogéneos associados uns aos outros, como podemos observar nas obras de Alighiero e Boetti, de Dennis Oppenheim ou, mais geralmente, na maneira em que foi captada a metrópolis urbana, desde O homem da câmara de filmar de Dziga Vertov até às instalações recentes de Harun Farocki.


Reconfigurar a ordem do tempo

Se o atlas aparece como um trabalho incessante de recomposição do mundo, é em primeiro lugar porque o mundo sofre constantemente decomposições, uma detrás da outra. Bertolt Brecht dizia da “deslocação do mundo” que ela é “o verdadeiro sujeito da arte” (basta pensar em “Guernica” para poder entendê-lo). Aby Warburg, por sua vez, via a história cultural como um verdadeiro campo de conflitos, uma “psicomaquia”, uma “titanomaquia”, uma “tragédia” perpétua. Podia-se dizer que muitos artistas adaptaram este ponto de vista reagindo às tragédias históricas do seu tempo com um trabalho em que, uma vez mais, a montagem ocupa o papel central: as fotomontagens de John Heartfield nos anos trinta, e mais recentemente as Histoire(s) du Cinéma de Jean-Luc Godard e o trabalho de artistas como Walid Raad ou Pascal Convert.
É, pois, o próprio tempo que se torna visível na montagem de imagens. Cabe a cada um — artista ou sábio, pensador ou poeta — converter tal visibilidade na potência de ver os tempos: um recurso para observar a história, para poder manejar a arqueologia e a crítica política, “desmontando-a” para imaginar modelos alternativos.



NOTA
A versão original do texto, bem como as fotografias aqui publicadas, estão disponíveis em: www.museoreinasofia.es