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EDUARDO GAGEIRO: FACTUMFÁTIMA LOPES CARDOSO2024-04-13
Que outro espaço tão nobre e que marcou a história do trabalho da Marinha poderia ser mais adequado à exposição Factum, de Eduardo Gageiro, do que as amplas paredes da antiga Real Fábrica da Cordoaria da Junqueira– as mesmas que já receberam Genesis, de Sebastião Salgado, em 2015, ou Icons, de Steve McCurry, em 2022, para referir apenas grandes mestres da fotografia documental? Neste lugar onde até 1998 a força do trabalho humano construía cabos necessários para aparelhar os navios, hoje, descobrimos as cerca de 170 fotografias de dimensões variáveis que o mestre Gageiro resgatou do passado e que agora apresenta por ocasião dos 50 anos do 25 de Abril. Algumas dessas imagens – as preferidas do autor – são os ícones da Revolução de 1974, mas também se identifica um olhar atento às condições de vida da classe operária, na linha do construtivismo russo, de Aleksandr Ródtchenko, às desigualdades sociais representadas pela corrente neorrealista e a força visual da fotografia humanista francesa. O que encontramos em Factum é a história e os diversos retratos de um país antes, durante e depois da Revolução, mas é, acima de tudo, a projeção de todos os valores que conduziram Eduardo Gageiro à fotografia e, particularmente, a lealdade às causas que acredita, assim como pelos ideais que o acompanham desde sempre. Num constante regresso ao passado, todos os sábados desde que a exposição estreou, Eduardo Gageiro tenta explicar aos visitantes mais curiosos como brotou o interesse pela fotografia. Nesses instantes, recupera a génese da relação umbilical que mantém, desde a adolescência, com a sua arte. E talvez Gageiro não fosse Gageiro se a sua história de vida tivesse outros contornos. Apesar de o pai não lhe ter permitido prosseguir os estudos, o espírito curioso e inquieto depressa galgaria barreiras: “Quando terminei a 4ªclasse, queria estudar, mas o meu pai não deixou. Como tinha um pequeno restaurante, disse-me que iria para o balcão aviar. Fiquei profundamente magoado. Aos 12 anos, mandou-me para o escritório da Fábrica de Loiça de Sacavém, acreditando que ali é que estaria o meu futuro. Fui furioso, mas passado pouco tempo constatei que não era assim tão negativo. O meu contacto com os operários passou a ser mais intenso, mas também com muitos artistas. Comecei com uma máquina pequeninha a fazer fotografias. Como andava de secção em secção a levar papéis, convivi com aquela gente toda, incluindo os grandes artistas.” Entre os mestres, estava o escultor Armando Mesquita que se dispôs a ver as fotos do pequeno Eduardo: “Ó miúdo, tu tens olho, mas não percebes nada de composição. Por isso, vais ao meu atelier, ao final da tarde, que te dou umas lições”. A primeira coisa que ele fez foi um retângulo aos quadradinhos: ‘Esta é a regra de ouro. Deves tentar colocar sempre o assunto principal ou do lado esquerdo ou direito, sobretudo, do direito. A vista tem tendência a olhar para a direita. Nunca ao meio. De forma que tens de encontrar vários elementos de composição também para o lado esquerdo, para equilibrar, mas o motivo principal fica quase sempre do lado direito.’ A partir daí, comecei a fotografar de maneira diferente.” Eduardo Gageiro nunca mais esqueceu a lição. Entre 1947 a 1957 manteve-se na Fábrica de Loiça de Sacavém até que começou a trabalhar no laboratório do Diário Ilustrado, onde revelava as fotografias de outros. O início não foi fácil, mas não demorou muito tempo a furar o forte corporativismo que encontrou na redação, sobretudo, entre os responsáveis pela fotografia, numa época em que esta editoria era formalmente inexistente em Portugal. Agarrou uma oportunidade, fintou o destino e mostrou o que valia: “O Diário Ilustrado tinha um suplemento literário no qual escreviam intelectuais e professores universitários. Não eram empregados do jornal. Lá fui eu fazer umas fotografias, se a minha memória não me falha, a Ferreira de Castro. Já conhecia toda a obra de Ferreira de Castro. Estava muito preocupado porque era o meu primeiro trabalho. Ouço o que ele diz, faço duas ou três fotografias. Depois, realizo uma diversidade de fotografias para tentar aproveitar o ambiente onde ele trabalhava e vou revelar o rolo no laboratório com o todo o carinho, pois eram as minhas fotos. Faço umas ampliações e mando para a redação. Fui chamado ao diretor. ‘Eh pá. Tu tens olho. Fotografas de outra maneira. Vais passar a ser o fotógrafo do suplemento literário’. E foi a minha sorte.” As fotografias que encontramos no Torreão Nascente da Cordoaria Nacional pertencem a outra fase da vida de Eduardo Gageiro, já ao serviço do jornal O Século e do Século Ilustrado. Com curadoria de Sara Antónia Matos, da EGEAC/Galerias Municipais, e legendas de Sérgio B. Gomes, mas com depoimentos na primeira pessoa, a exposição abre com cinco fotografias de uma família cigana captadas no Cais do Sodré, em Lisboa, no ano de 1973. Da ausência de figuras humanas até à união de uma família num banco de jardim, todas elas sugerem laços afetivos profundos, ao mesmo tempo que remetem para a fragilidade da condição humana. A escala do homem tão diminuto quando comparado com o espaço que habita, trabalha ou onde se move é evidenciada nas fotografias a contraluz de duas crianças que brincam em cima de monte, em Sacavém (1952), ou do agricultor que com o seu cavalo lavra a terra, em Mourão, Alentejo (1981). Num jogo de luz e de sombra, Eduardo Gageiro recorda, na série de cinco fotografias registada entre as décadas de 60 e 70, os milhares de portugueses que partiram das estações de Santa Apolónia para cruzarem as fronteiras rumo ao incerto em Vilar Formoso. Em destaque, surge o retrato de uma mulher de lenço na cabeça e de olhar perdido, captada através da janela do comboio. Seguem-se fotos dos que ficaram nas ruas de Lisboa, do Chiado a Alfama, evidenciado as formas, o jeito e a maneira de estar de um povo. Na mesma cidade, a câmara de Eduardo Gageiro eternizou a imensa manifestação de estudantes, na Reitoria da Cidade Universitária de Lisboa, a 20 de novembro de 1968, ou a carga policial contra os manifestantes, a 5 de outubro de 1960, entre outras imagens de um regime opressor que, na madrugada de 25 de Abril de 1974, teria um fim. A força de Factum encontra-se, precisamente, nas imagens que notabilizaram o autor: a fotografia de Salazar a olhar o mar, no Forte de São João do Estoril, obedecendo à composição da regra dourada ou regra dos terços de colocar o assunto à direita, tal como aprendeu com o mestre Armando de Carvalho Mesquita, na juventude, e as reportagens da Revolução e dos dias de Abril. Em destaque, revisita-se a foto de Salgueiro Maia a morder os lábios para não chorar ou outros momentos do Movimento das Forças Armadas, no Terreiro do Paço; a alegria dos jovens que comemoram a liberdade em cima dos tanques com os militares; o instante preciso em que um soldado retira o grande retrato de Salazar da parede do gabinete da PIDE; a chegada de Mário Soares à estação de Santa Apolónia; a libertação dos presos do Aljube; os protestos da população junto à sede da PIDE e a “caça” aos agentes da Polícia Política; o regresso dos combatentes do Ultramar, o emblemático discurso de Álvaro Cunhal, depois de regressar do exílio; as manifestações do 1ºMaio de 1975. É neste conjunto de imagens que Eduardo Gageiro deposita o maior orgulho: “É um documento único. No 25 de Abril, ligou-me alguma malta amiga que percebia mais de política do que eu, a dizer para levar muitos rolos porque hoje é que era. Quando aquilo acontece, sentimos, pela primeira vez, a liberdade. A minha falta de medo e a decisão de estar ali sem ligar às ordens de fogo que se ouviam porque o importante era que aquele momento, o grande dia. Nunca tive medo, nem pensei no medo. Sentia apenas que tinha de acontecer qualquer coisa de muito importante que mudaria para sempre o futuro do País e acabaria com a censura nos jornais. Assisti às negociações e tenho fotografias de planos próximos, a dar o corpo às balas”. A par da perspetiva eminentemente política de quem tem consciência que pode contribuir para recuperar a liberdade através das câmaras, na exposição, há um outro lado, mais etnográfico, cultural ou de cobertura jornalística. Eduardo Gageiro traz o Alentejo e outras paisagens para a Cordoaria Nacional, como a largada de touros, nas festas do Colete Encarnado, em Vila Franca de Xira. Na sua veia profundamente neorrealista, convoca a tragédia das cheias de 1967 que mataram centenas de pessoas, apesar de o regime ter ocultado a verdadeira dimensão da tragédia. Deste momento dramático, ganha perenidade a imagem das meninas que transportam um caixão pequenino. Encontramos a força da mulher nazarena numa das fotos que lhe é mais querida e que foi capa do Século Ilustrado. Com este clique, conseguiu uma das imagens da sua vida, mas, em contrapartida, foi preso. “Diziam que dava uma má imagem de Portugal. Enviei essa imagem para vários concursos e ganhou cerca de vinte e tal medalhas de ouro”, recordou Eduardo Gageiro. O país marcado pelas profundas desigualdades sociais que já tinha descoberto em criança, quando, sem ninguém saber, espreitou uma festa da alta sociedade organizada às escondidas, no restaurante do pai, é uma das preocupações fotográficas de Eduardo Gageiro. A foto da construção da ponte 25 de Abril e da fragilidade do homem no lugar de trabalho, a fábrica de Loiça de Sacavém, a CUF no Barreiro, ou operários do Poço do Bispo, em Lisboa, na década de 60, mostram um fotógrafo também influenciado pela estética construtivista. No primeiro andar da Torreão Nascente da Cordoaria Nacional, fica-se esmagado com a mestria fotográfica em cada retrato de figuras públicas que marcaram ou continuam a marcar o pulsar cultural, desportivo, religioso, político e económico do País e do mundo. Os principais protagonistas estão em destaque: Amália Rodrigues a chegar a Alfama e Eusébio, durante um jogo carregado de emoção. São dezenas de individualidades marcantes, de Natália Correia, Mário Cesariny e Sophia de Mello Breyner a António Champalimaud ou Otelo Saraiva de Carvalho, que posaram para a objetiva do mestre, alguns em situações improváveis - muitos destes retratos já são conhecidos do livro Revelações. São décadas de trabalho que exigiriam uma infinita atenção do olhar. Entre as 166 impressões a jato de tinta a preto e branco, existe um registo a cores que nos remete para o presente. Após a sequência das imagens que eternizaram o espírito e os ideais de Abril, surge a fotografia de 2023 que vem lembrar o quanto é importante celebrar a Revolução dos Cravos, 50 anos depois. Nessa imagem, dois jovens do mesmo sexo manifestam publicamente afeto. Antes da madrugada de Abril, um beijo em espaço público, mesmo que fosse entre casais heterossexuais, era punido com coimas. Se a foto a cores pode parecer perdida, ela irrompe com um sentido; a mesma causa que tem movido Eduardo Gageiro ao longo da carreira de mais de 70 anos: defender a liberdade através da fotografia, com a esperança de que seja um meio de preservação da memória e valorização do passado.
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EDUARDO GAGEIRO: FACTUM 27 ABR – 5 MAI 2024 |