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FRANCISCO BRENNAND, MEGALOMANIA CERAMICA E TROPICALISMOMARC LENOT2017-04-26
Fora da arte bruta (o carteiro Ferdinand Cheval ou Filippo Bentivegna) é raro que um artista decida ocupar um grande terreno para aí expor as suas obras e geralmente aqueles que têm a loucura e os meios para o fazer confrontam aí o seu trabalho com o de outros artistas, como por exemplo Daniel Spoerri na Toscana. Claro que museus ou coleccionadores podem organizar um parque de esculturas à volta de um só artista, como por exemplo o jardim de Barbara Hepworth na Tate St-Ives ou, mais estranho, o Sacro Bosco do Príncipe Orsini em Bomarzo. Claro que um artista pode por vezes abrir o seu atelier ao ao ar livre ao público, como é o caso de Anselm Kieffer, claro que existem instalações especificas de Land-Art (como as de Walter de Maria, James Turrell,…), mas o único exemplo de que me lembrei, de um artista que cria assim o seu próprio espaço em grande escala, foi o do Jardin des Tarots de Niki de Saint-Phalle, também na Toscana. Nesse dia estava na periferia do Recife, à borda da floresta atlântica dificilmente preservada e descobri um lugar extraordinário. Francisco Brennand, herdeiro de uma família rica de Pernambuco (não confundir com o seu irmão Ricardo que, também ele rico, construiu um parque – museu que não visitei, mas que me descreveram como sendo uma espécie de Disneyland medieval) transformou, a partir de 1971, uma antiga fábrica de família, de tijolos e de telhas, num local de exposição das suas obras, numa área de 15 km². É uma encenação impressionante do seu trabalho em escultura, essencialmente em cerâmica, um templo cheio de símbolos, de traços de rituais, com as marcas de um tropicalismo pagão e sensual. Tudo é feito para incutir assombro, admiração, inquietude e causar emaravilhamento. Avançamos pelo meio de colunas fálicas encimadas por seres híbridos, atravessamos uma capela de cúpula azulada onde flutua um ovo primordial, contornamos um nível de água onde (verdadeiros) cisnes negros defendem abstracções calipígias. Tudo é marcado com o cunho do mestre, uma espécie de sino encimado por um triângulo (evitemos qualquer simbolismo vulgar). Uma obra em desenvolvimento há mais de 45 anos. Maravilhamo-nos e depois interrogamo-nos. Este filho de família nascido em 1927, depois de uma primeira formação no Recife (em particular com Álvaro Amorim e Abelardo da Hora) passará três ou quatro anos em França (onde foi próximo de Léger e de Balthus) e em Itália, onde admirará Masaccio e Piero della Francesca e aperfeiçoará a sua técnica de ceramista em Deruta. Para além da técnica, esta estadia europeia parece ter tido uma influência confinada à sua escultura mas não sobre a sua pintura. Duvido que se tivesse tornado tão famoso apenas com as suas telas, depois do que é mostrado num dos edifícios deste complexo: numerosos nus planos, sem chama e energia, e paisagens, em que as melhores lembram um pouco as cores deslavadas de Munch. Apenas algumas telas prendem a atenção, como estes corpos atados muitos evocadores do seu erotismo pagão bastante brutal. Em compensação, a sua estadia europeia e a sua cultura, forneceram-lhe uma infinidade de assuntos para a sua escultura: mitologia hebraica e grega, história romana, mas também Jeanne d´Arc, Pauline Bonaparte, Cyrano de Bergerac ou Marat surgem nos títulos das esculturas. Brennand usa tudo o que tem à mão e inspira-se em temas dos mais diversos.
Oficina Brennand, Caim. Fotografia: Marc Lenot
A execução destas estátuas em cerâmica e a sua disposição, pelo contrário, nada têm a ver com o velho continente. Aqui é apenas exuberância, motivos vegetais e animais luxuriantes, tropicais, pagãos, desenfreados. Encontramos aí uma forma de sincretismo, de antropofagia, a interpretação da cultura antiga em novas formas, que é de facto impressionante e feita para impressionar. Um observador atento vai encontrar aqui e ali uma forma que lhe faz lembrar Picasso, ou um plasticismo à Breker, uma asa à moda de Brancusi (há também uma coluna sem fim), mas estes ecos são diluídos numa estética que as devora e assimila. O espanto vem depois quando nos interrogamos um pouco sobre a cultura brasileira: neste estado, onde a cultura da cana do açúcar foi sinónimo de escravatura até ao final do século XIX (e não sei de onde vem a fortuna da sua família), nada, absolutamente nada, que evoque, nem que fosse casualmente, a cultura afro-brasileira, as suas formas ou os seus símbolos, julgados sem dúvida indignos de figurar na sua visão artística. E quanto à cultura indígena, os Ameríndios não estão aqui presentes senão num dos últimos edifícios construídos no local (“Templo do Sacrifício”), mas estes não são os indígenas locais, pouco dignos de interesse, mas dois grandes imperadores decaídos, o asteca Montezuma e o inca Atahualpa, bem mais nobres que os pequenos chefes tupi-guarani. Este distanciamento de duas realidades importantes da constituição do Brasil moderno não surpreendem quando conhecemos o desprezo que tantos brasileiros têm por estas culturas populares. Se Brennand se liberta do eurocentrismo, tão frequente na sua geração e seu meio, não chega a aceitar estas culturas locais e contenta-se com um tropicalismo conveniente, limitado à fauna e à flora. É portanto uma abordagem bastante surpreendente a que Brennand adoptou para este templo auto-erigido em sua própria honra: uma auto-glorificação não deixando lugar algum a outra pessoa, nem a quem o tenha influenciado, nem aos seus pares, nem discípulos, uma espécie de autismo auto-centrado, uma postura que não tem em conta as culturas locais. No entanto esta é uma obra apaixonante e um lugar fascinante. A cerâmica revela-se aqui, «in situ», como uma arte do gesto, da materialidade, de uma certa brutalidade criativa, bem mais do que num museu clássico. Brennand é pouco conhecido na Europa: uma participação em Veneza em 1990, exposições em Londres em 1989, em Berlim em 1993, e no Porto em 2001, algumas estátuas em parques de escultura ou exposições colectivas, e é quase tudo. No centro do Recife, um fresco em cerâmica de Francisco Brennand (em bastante mau estado) celebra a Batalha dos Guararapes contra os Holandeses em 1648, lembrando a tapeçaria de Bayeux, uma imagem que se desenvolve numa vintena de metros. Divertimo-nos ao ver aí a actual bandeira brasileira (que data de 1889) orgulhosamente agitada pelos soldados portugueses.
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