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PERSPETIVA ATUAL


Artemisia Gentileschy, “Judith with her Maidservant”, c.1618,1619, óleo sobre tela, 114x93,5 cm, Palazzo Pitti, Florença.


Josefa de Óbidos, “A leitura da sina do Menino Jesus”, 1667, óleo sobre cobre, 22x29 cm, coleção Jaime Eguiguren Art & Antiques.


Angelica Kauffmann, “Portrait of Sarah Harrop as a Muse”, c.1780,1781, óleo sobre tela, 142x121 cm, Princeton University Art Museum.


Mary Cassatt, “Woman in Black at the Opera”, 1880, óleo sobre tela, 81,2x66 cm, Museum of Fine Arts, Boston.


Aurélia de Souza, “Jezebel devorada pelos cães por ordem de Jehu”,1911, óleo sobre tela, 25,5x33,7 cm, Museu Nacional Soares dos Reis, Porto.


Aurélia de Souza, “No Atelier”, c.1916, óleo sobre tela, 55x48cm, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.

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PORQUÊ ESCREVER SOBRE HISTÓRIA DA ARTE FEMINISTA, NESTA ÉPOCA EM QUE AS MULHERES ARTISTAS ESTÃO JÁ PRESENTES NUMA GRANDE PARTE DAS INSTITUIÇÕES ARTÍSTICAS DO MUNDO? - PARTE I



MANUELA HARGREAVES

2020-05-01




 

[Este texto é a primeira parte do artigo "Porquê escrever sobre história da arte feminista..."A segunda parte pode ser lida aqui]

 

 


Porquê escrever sobre história da arte feminista, nesta época em que as mulheres artistas estão já presentes numa grande parte das instituições artísticas do mundo? [1]


As razões são várias e remontam senão ao início da pintura enquanto manifestação criativa do ser humano, às grandes transformações ocorridas no século passado, período em que a mulher sucessivamente se liberta de condicionantes que não lhe permitiam atuar na plena consciência de ser mulher. Ou seja, foi preciso chegarmos ao século XX para que esse encontro se fizesse, e porventura esse processo ainda está em curso. O que é ser mulher na plena aceção do termo e neste particular o que significa ser mulher artista?

Durante centenas de anos, e na opinião generalizada da sociedade, foi equivalente a uma função acessória, decorativa, com traços de amadorismo, olhada com condescendência pela sociedade em geral, e pelas instituições vigentes. Um bom passatempo para horas intermináveis de confinamento doméstico, uma mais valia que acompanhava as artes do bem fazer, a par dos bordados ou do domínio do piano.

Existiram exceções, muitas pelo que nos dizem desde os anos 70, Linda Nochlin, Griselda Pollock entre outros autores, e neste caso Whitney Chadwick, salvas pelo desenterrar de camadas, como se de um trabalho arqueológico se tratasse.

Algumas já conhecidas do grande público como Artemísia Gentileschi, filha de artista, como era prática habitual nesta época, mas maior do que o pai, arrebata pela ferocidade com que retrata os seus temas. “Judith with Her Maidservant” e “Judite decapitando Holofernes”, pinturas de inícios do século XVII, não parecem executadas por uma mulher: a narrativa subjacente dá a explicação, a de que Artemísia teria sido violada no atelier pelo professor, amigo do pai. A denúncia dessas práticas está também presente em “Susana e os Velhos”, tema igualmente representado por Tintoretto, Rembrandt, Badalochio, Rubens, entre outros. No auge do seu sucesso, “Alegoria di Pittura”, é um auto retrato no ato de pintar: personificação da pintura, como se a artista quisesse marcar uma posição no mundo que a rodeava, e ao mesmo tempo certificar-se a si própria dessa posição. O século XXI glorifica-a e vai ser objeto de uma grande retrospetiva na National Gallery em Londres este ano [2].

Na Itália do século XVII as artistas eram excecionais, muitas filhas de pintores como Artemísia e Elisabeta Sirani, Sofonisba Anguissola, Lavinia Fontana, Diana Scultori (gravurista), entre outras, tiveram um papel importante na produção artística da época, e na sociedade, chegando Sirani a abrir uma escola em Bolonha para mulheres.

Num mundo mais redimensionado a outra escala, Josefa d’Óbidos, também filha de um pintor, Baltazar Gomes Figueira, não imprime ao seu trabalho a complexidade das suas congéneres italianas, nomeadamente de Artemísia que deu enfase à representação das mulheres heroínas, corajosas e poderosas. Longe do convívio com outros artistas e centros cosmopolitas de produção e discussão de ideias, é, no entanto, uma mulher emancipada, que trabalha com sucesso para encomendas dominadas por temas religiosos, num registo ligado ao detalhe dos pormenores, em que predomina o colorido e a luminosidade. A sua obra tem vindo a ser objeto de reavaliação nos últimos anos, inserida dentro do contexto dum barroco português, com caraterísticas distintas de outros países. Entre 2015 e 2019 foram vendidas várias obras em leilões, pinturas de pequenas dimensões sobre cobre, a obra inédita “A leitura da sina do Menino Jesus”(1667), em Bona na Alemanha, e “A penitente Madalena consolada pelos Anjos”, na Sotheby’s em Nova Iorque, com cotações elevadas [3].

Na “Vite de Pittori Bolognesi” Luigi Crepi lista vinte e três mulheres pintoras ativas em Bolonha no século XVI e XVII e, segundo Chadwick, pelo menos duas, Fontana e Sirani, atingiram um “status” internacional. Vasari, no seu livro “Vidas de Artistas” (1550), considerada a obra inaugural da história da arte, identifica-as como protagonistas, no entanto, a história da arte de Janson em 1962, quatro séculos depois, contém menos mulheres artistas do que a de Vasari.

Qual a razão deste apagamento decorridas várias centenas de anos, e tantas artistas que se seguiram?

O fio da história não tem uma progressão linear. O século XVIII é, na história clássica da pintura “feminina”, uma época de ouro em França, no sentido em que nunca anteriormente um tão grande número de mulheres atingiram importância pública e intelectual na vida da cultura aristocrática. Entre elas Rosalba Carriera, Elisabeth Vigée Le Brun, Angelica Kaufmann, Adelaide Labille –Guiard, Anna Vallayer- Coster, foram pintoras profissionais, ganhando fortunas numa sociedade que limitava o acesso das mulheres à atividade publica, conseguindo diluir fronteiras e confluir entre o gosto da clientela aristocrática e os ideais iluministas de uma nova ordem burguesa que se estava a impor.

Como explica Chadwick, terá sido essa capacidade de absorver o gosto que os críticos da época apoiavam nas mulheres pintoras, que as afastou mais tarde da história da arte das gerações futuras. Esse gosto, traduzido numa auto imagem de beleza, graciosidade e modéstia, e representado nos seus quadros, consolidava uma imagem do ideal feminino em atividades como o trabalho de costura, a música, os bordados e o desenho.

No entanto, e ainda que durante um curto período, a mulher teve na cultura aristocrática da França e de uma grande parte da Europa um papel deveras importante na produção da cultura artística, como transmissora dessa nova cultura nos “salons” de Madame de Stäel, Madame du Châtelet, Madame de La Fayette, Madame de Sevigné; a Marquesa de Alorna, grande entusiasta da cultura iluminista, poetisa, tradutora e pedagoga, é frequentadora destas reuniões e amiga íntima de Madame de Stäel. Nestas reuniões, frequentadas essencialmente por homens, algumas mulheres falavam com grande autoridade em apoio das ideias iluministas na literatura, ciência e filosofia, e o esbatimento das diferenças sociais permitiu que algumas artistas como Vige Le Brun ou Carrera, oriundas da classe média, conhecessem patronos na alta sociedade, sem os constrangimentos da diferenciação social. Este poder feminino é, no entanto, destruído com o advento da revolução francesa e de alguns dos seus teóricos; Rousseau, defensor dos novos valores da classe média, vê a “Salonière” como uma ameaça ao domínio natural do homem, o “salon” como uma prisão na qual o homem é subjugado às regras das mulheres. No seu livro “Emile”(1762) critica esta “usurpação” da soberania, da linguagem da autoridade e da cidadania, em oposição à linguagem “natural” do dever familiar (…“ela despreza todos os deveres da mulher e começa sempre a representar o papel do homem”... “ ela abandonou o seu estado natural”). Considera ainda que “… de forma alguma eu quero que aprendam (o desenho) da paisagem e menos ainda da figura humana”. A identificação da mulher com o lar, preconizada por Rousseau, adequa-se a uma época de rápidas mudanças na estrutura de classes; a nova ideologia burguesa dependia para o seu sucesso da posição do afeto e sexualidade dentro da família, e o confinamento do corpo da mulher à esfera doméstica privada, servia como meio de controlar a sexualidade feminina numa época dominada pela alta taxa de ilegitimidade.

Esta limitação aos temas do retrato, da pintura de género, a temas mitológicos não violentos ou alusivamente sexuais, afastadas do grande tema da paisagem, ou seja de um exterior que lhes estava negado por natureza, e da figura humana, meio através do qual um artista se consagrava, as mulheres foram até ao final do século XIX, e ainda durante parte do século XX, excluídas dos grandes cânones de legitimação artística.

O Impressionismo em França no século XIX traz a legitimação de um tema caro às mulheres artistas, a vida social doméstica, domínio do conhecimento íntimo feminino, é objeto de representação do imaginário impressionista, a par de outras esferas da vida social burguesa, como os “boulevards”, os cafés e os botequins, dos quais elas estavam excluídas. Esta representação, a par da pintura em “plein air”, consolida a imagem da nova classe média burguesa, à qual pertenciam a maior parte dos impressionistas. Mary Cassatt, Berthe Morisot, Eva Gonzalez, Marie Bracquemond, convivem no seio dos mais influentes deste grupo, como Monet, Manet, Degas, Pissarro e Renoir. No entanto, e apesar disso, a ameaça da mulher nunca foi totalmente silenciada, nas vozes de Renoir (“A mulher artista é simplesmente ridícula, mas sou a favor da cantora e dançarina”), ou Daumier (na litografia “The Blue Stockings”, representando-a como destruidora do lar). No caso particular de Morisot, e apesar de ter sido descrita por Zola e Mallarmé como “uma verdadeira Impressionista”, até 1987, altura em que o seu trabalho foi objeto de uma grande retrospetiva, os historiadores de arte quase exclusivamente confinaram o seu trabalho associando-o com outros pintores do grupo.

O movimento feminista, que se desenha a partir da segunda metade do século XIX em França, organiza o primeiro congresso sobre os direitos das mulheres em 1878, no auge do Impressionismo, no entanto, nenhum quadro impressionista é representativo deste acontecimento, nem toma conhecimento do aumento massivo do número de mulheres trabalhadoras da classe média, fora dos campos agrícolas. Por certo foi a habilidade de manter um compromisso entre as suas vidas profissionais, e negociar relações de paridade com os seus colegas, que permitiu a Cassatt e Morisot serem introduzidas no meio, dadas as origens de classe serem comuns. É, no entanto, nesta altura que aos poucos a mulher passa a participar numa outra realidade social, a dos eventos públicos e de massas, e disso é exemplo o quadro de Mary Cassatt “Woman in Black at the Opera” (1880), na emergência de uma cultura feminina, a da mulher espetadora nas arenas públicas da cidade moderna.

Aurélia de Souza, artista de transição para o século XX, tendo passado também por Paris na Acadèmie Julien, uma das grandes pintoras que representa o nascimento da modernidade em Portugal, não beneficiou desse sopro de liberdade. Nos seus auto retratos, indaga questões ligadas à identidade da mulher artista, numa época de incertezas para aquelas que escolhiam esta via; a pintura “No Atelier”, é um exemplo paradigmático deste universo de dúvidas vivido por Aurélia. Os seus temas passam pela paisagem difusa e desfocada dos impressionistas, lembrando por vezes a herança de Turner, a pintura de género que anula o detalhe a favor da pincelada solta e impressiva, e temas bíblicos tratados com grande liberdade, como expressa em “Jezebel devorada pelos cães por ordem de Jehu”. É uma pintora maior, num contexto de um país ainda proto moderno, pouco complacente com as mulheres que se arrojavam a aventuras além da pintura decorativista. “Não posso admitir que uma mulher seja uma esculptora ou uma pintora”, afirmação de António Lemos, um “amador” de arte em 1904, a propósito de um artigo dedicado às mulheres artistas, revela o espírito retrógrado que se vivia na época em Portugal. Apesar de tudo Aurélia fez da pintura o seu modo de vida e teve reconhecimento entre os colecionadores, tendo ocupado o segundo lugar nas vendas em 1918 na Sociedade Nacional de Belas Artes.

Em Portugal as revelações de mudança para as mulheres são tardios, no entanto, a primeira década do século XX traz consigo inúmeras modificações, que de forma global prenunciam uma revolução social, artística e das mentalidades.

 

 

 

Manuela Hargreaves
Doutorada em Estudos do Património –História da Arte (FLUP), pós graduada em Ciências da Educação, e em Dinâmicas Culturais (FLUP), docente e investigadora, tem realizado de forma sistemática entrevistas a agentes do mundo artístico português. Publicou o livro “Colecionismo e Mercado de Arte em Portugal – O Território e o Mapa”, na editora Afrontamento, em Dezembro de 2013, e uma segunda edição em Maio de 2016. Na mesma editora, a ser publicado em breve o livro “Mulheres e Cultura Artística em Portugal – O Território e o Mapa”.

 

 

 

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Notas

[1] Este artigo tem por base uma recensão crítica ao livro de Whitney Chadwic, "Women, Art and Society", London: Thames&Hudson world of art, 2002 (third edition).

[2] Exposição agendada para o início de Abril 2020, adiada possívelmente para Maio.

[3] Segundo fonte do jornal Público em artigos do Ipsilon de 15/05/2015, e 06/09/2019, as obras foram vendidas acima de 220.000 euros.

 

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Bibliografia

CHADWICK, Whitney – “Women, Art and Society”. London: Thames & Hudson world of art (third edition), 2002.

DUARTE, Adelaide – “Aurélia de Sousa”, In - Pintores Portugueses (coord. Raques Henriques da Silva), Instituto de História da Arte, Lisboa: QuidNovi, 2010.

NOCHLIN, Linda.- “Why have there been no great women artists?” In - Women, Art and Power and Other essays. Boulder, CO: Westview Press, 1988.

PINTO, Carla Alferes – “ Josefa de Óbidos”, In - Pintores Portugueses (coord. Raques Henriques da Silva), Instituto de História da Arte, Lisboa: QuidNovi, 2010.

POLLOCK, Griselda - Vision and difference. Feminity, feminism, and the histories of art .Londres: Routledge, 1988.

VICENTE, Filipa Lowndes - A arte sem história - Mulheres e cultura artística (séculos XVI-XX). Lisboa: ATHENA, 2012.