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DAYANITA SINGH: DANÇANDO COM A MINHA CÂMARAMAFALDA TEIXEIRA2023-12-24
Fotógrafa, book maker e artista offset – numa alusão à técnica de impressão mais utilizada no domínio da edição – Dayanita Singh (1961) tem desenvolvido, nos últimos quarenta anos, um corpo de trabalho que desafia a convencional abordagem à fotografia, medium que lhe ofereceu um caminho de liberdade com o qual determina as regras da sua vida e se liberta das convenções sociais. Esbatendo os limites entre livro – publicação – exposição, e questionando como pode o livro ser um museu e um museu pode ser um livro, a exposição Dançando com a minha câmara assume-se enquanto retrospetiva e a mais importante mostra dedicada à artista até à data. Comissariada por Stephanie Rosenthal, organizada pela Gropius Bau, em colaboração com o Museu Villa Stuck e o MUDAM – Musée d´Art Moderne Grand-Duc Jean, o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, é a última paragem da exposição e segundo a artista o melhor final por estar neste edifício, um tributo da arquitetura do Porto. Sinto que foi feita para este museu [1]. Entendendo a fotografia como uma matéria-prima, a partir da qual diversas expressões podem ser libertadas, Singh apresenta-nos as suas imagens numa infinidade de formas, desde museus móveis a livros-objetos, permitindo ao público participar ativamente de cada experiência e evento fotográfico. Avessa à ideia de ter a sua obra fossilizada num museu ou galeria, Singh pretende que as suas imagens possam ser movimentadas e ajustadas aos espaços que as recebem, motivo pelo qual no início da década de 2010, passou a incorporá-las em estruturas móveis de madeira, foto-arquiteturas, através das quais explora inúmeras possibilidades narrativas por meio de montagem e justaposição. Designadas de museus, as estruturas podem assumir diversas configurações, sendo exploradas, percorridas e dançadas pelo público que tem a oportunidade de as vivenciar e de estabelecer diferentes conexões.
A ideia dos museus é muito importante para mim porque sentia que a fotografia ficava fossilizada atras de vidros e pendurada nas paredes, por isso quis criar uma arquitetura especial para a fotografia. Eu não gostava do modo como o meu trabalho era exibido nos museus e como não podia mudar a arquitetura, porque não sou uma artista de instalações ou de performances, decidi fazê-lo à minha maneira [2].
O desejo da artista para que as pessoas se movam entre as imagens, se curvem ou afastem delas como uma escultura, experienciando-as com o próprio corpo, alia-se à ideia de fluxo e à perceção da exposição enquanto organismo vivo e em constante mudança, quer reorganizando a arquitetura dos espaços expositivos, quer alterando as relações de vizinhança entre determinadas imagens. Ultrapassando os limites da fotografia e apresentando-nos um retrato comovente da sociedade indiana, a exposição Dançando com a minha câmara dá-nos a conhecer não só as instalações fotográficas de grande escala da artista, bem como o uso do formato livro, parte essencial da sua produção criativa: Quero ter a liberdade como artista de mostrar o meu trabalho na vossa casa, no parque, no comboio, num livro (…). A este propósito destaquemos expostos na parede, inseridos em estruturas de madeira, os híbridos livros-objeto que compõem Suitcase Museum (2015). A obra, revela-nos quarenta e quatro exemplares de um mesmo livro, apresentando cada exemplar - na capa e contracapa - duas das oitenta e oito fotografias que o compõem, e que combinadas de forma aleatória permitem que a narrativa e a sua interpretação, bem como as ligações entre as imagens, se alterem. Próximas, no chão, duas malas de viagem em couro onde a artista guarda e transporta as quarenta e quatro molduras e um catálogo, completam Suitcase Museum, reafirmando a itinerância da obra e conceitos de acessibilidade, mobilidade e mutabilidade de um museu que se traduz em livro. A importância dos jogos de ocultação/desocultação; frente/verso; presença/ausências e a criação de novas conexões entre as imagens, são uma constante ao longo da exposição atingindo o seu auge nos museus que, funcionando simultaneamente como expositores e arquivos, podem ser abertos, fechados, movidos ou reorganizados. Considerado pela artista a mãe de todos os museus, que potencialmente poderia conter todos os outros, Museum of Chance (2013) reúne 163 gravuras relativas a temas díspares como dança, música, cinema, locais de trabalho e espaços de convivência, bem como pessoas que a artista conheceu. Constituído por duas estruturas em teca de grande escala, que como biombos se abrem em diferentes direções criando vários padrões de visão e movimento, Museum of Chance apresenta imagens e textos de ambos os lados, sendo-nos possível observar no seu interior caixas em compartimentos de arrumação nas quais a coleção é armazenada, numa obra em constante fluxo e movimento. Na mesma sala, do lado oposto, dois museus de sistema retangular – File Museum (2012) e Little Ladies Museum 1961-present – parecem unir-se como peças de um puzzle, revelando-nos os seus lados exteriores móveis e abertos que, como capas de um livro, podemos redesenhar infinitamente. Ode aos arquivos, lugares de histórias e segredos com um perfume que Saramago definiu metade rosa e metade crisântemos, File Museum é simultaneamente um elogio ao papel e ao seu desaparecimento na era digital. Confrontando-nos com a solidão e o caos nos labirintos de arquivos burocráticos da Índia, as imagens revelam cenas semelhantes: espaços interiores cujas estantes nos atraem para o ponto onde a escuridão as cerca, ou onde mais prateleiras bloqueiam o nosso olhar. Arquivos, sacos, baús e caixas disputam o espaço; cadeiras vazias são sitiadas pelas pilhas de documentos que as rodeiam; às vezes, o chão é tomado por torres de papel. Distinto, embora considerado museu irmão do anterior e com o qual partilha conexões ocultas, Little Ladies Museum combina fotografias da artista e dos seus irmãos, captadas pela mãe de Singh, bem como retratos da fotógrafa sobre jovens e mulheres em diversas fases da vida. Museu de figuras femininas, reconhecemos neste labirinto atemporal, imagens icónicas de Singh - a da menina que se aninha na cama ou a da fotógrafa deitada no colo de Mona Ahmed - que se multiplicam e materializam noutros museus ao longo da exposição. Na parede em frente e em diálogo com Files Museum, Time Measures (2015) é, segundo a artista, um trabalho sobre o tempo e o culminar de anos e anos que passei em diferentes arquivos [3]. As trinta e quatro imagens, captadas de uma perspetiva aérea, revelam-nos maços de documentos embrulhados por tecidos de cor vermelha, cujas diferentes manchas e padrões - entre o vermelho, o beije e o branco - provocadas pela exposição solar, indiciam a passagem do tempo e onde cada nó, como um retrato, nos diz algo sobre o estado de espírito de quem o amarrou. Conceitos de arquivo e memória, desaparecimento e extinção atingem o seu pleno na série de 2021-22, Painted Photos em exibição na segunda sala dedicada à exposição. Assemelhando-se a pinturas, as provas fotográficas em pigmento de arquivo e tinta de esmalte sobre alumínio, apresentam espaços interiores vazios, labirintos de arquivos e prateleiras abandonadas, cuja sensação de espectralidade é acentuada pelo exercício formal da artista ao anular cores e contrastes, reduzindo as imagens à sua essência. A mesma sugestão de ausência e vazio acompanha-nos em Museum of Shedding (2016), museu que fiz para mim para própria e onde iria viver, espaço arquitetónico que evoca um interior doméstico, constituído por simples elementos de madeira: uma mesa, uma cama, bancos, duas unidades de arrumação. Para além do mobiliário, o museu aloja fotografias a preto e branco de diversos espaços habitacionais em imagens inquietantes e austeras, despojadas de presença humana. A importância da arquitetura no corpo de trabalho de Dayanita materializa-se nas restantes obras apresentadas no segundo espaço dedicado à exposição, a este propósito destacamos Architectural Montages (2019-21), composições que unem pelo menos duas imagens diferente, duas arquiteturas, duas temporalidades e geografias. Cortando e sobrepondo as fotografias manualmente, sem recorrer a Photoshop, Singh constrói qual arquiteta - mediante ilusões óticas - afinidades entre arquiteturas e realidades concretas - espaços utópicos como aqueles que justapõem o pavilhão de Barcelona de Mies Van Der Rohe e um quarto de banho da casa de Serralves, ou uma biblioteca do século XXI a um templo de Kioto do século VII. Numa pequena sala, contígua ao segundo espaço expositivo, destaque para a série fotográfica Blue Book, cujo azul intenso acentua a áurea melancólica das paisagens urbanas e zonas industriais ao anoitecer, desprovidas de presença humana. Seduzidos pelo som da música, seguimos ao encontro de Mona Ahmed (1935-2017), cujo impressionante retrato em vídeo nos hipnotiza e desarma. Como um sonho, o breve momento entre dormir e acordar, Mona and Myself (2013) é, segundo Singh, o culminar de 30 anos a fotografar a artista transgénero e através do qual conseguiu fazer justiça à sua singularidade [4]. Mais do que um vídeo ou fotografia, a obra é um retrato a p/b de Mona que se torna na música que ouve ao longo da imagem estática em movimento e em loop, o primeiro moving still da artista. Figura central na sua obra, que se manifesta numa presença constante no corpo de trabalho da artista, destaquemos a sua celebração, na sala que lhe é dedicada no último espaço expositivo, com a série Mona Montages (2021). Compreendendo 23 fotomontagens de imagens de Mona cortadas manualmente e combinadas com outras obras de Singh, como Privacy (1992–2002), Masterji (1993/2021) e File Room (2008–2011), ou inserindo-a em filmes e espetáculos, como na cena de dança com Saroj Kahn, observamo-la à medida que ouvimos a sua própria voz recitando um poema urdo no vídeo Mona Shayari (2013-2021). Na última galeria dedicada à exposição, e em consonância com o título da mesma, a obra Museum of Dance (Mother Loves to Dance) (2021), apresenta-se-nos como uma homenagem à dança e a Mona. Ocupando um lugar de destaque no eixo central do museu, observamos Mona a dançar para a câmara, tanto sozinha quanto acompanhada, numa obra que nos fala da importância do movimento e da sua captação. A semelhança da dança, a música é igualmente celebrada no último núcleo expositivo em obras como Museum of Tanpura (2021); Zakir Hussuin: A Photo Essay (1986); e Musician’s Bus (2021). A importância do livro para Singh, enquanto exposição e museu portátil, encerra o percurso expositivo com as obras Sent a Letter Museum (2008/2021) e Museum Bhavan (2017). A primeira - projeto autobiográfico da artista - revela-nos, em vitrinas na parede, diários visuais por diferentes cidades indianas; a segunda apresenta-nos nove livros miniaturas em formato acordeão, cada um dedicado a um museu, concretizando-se o desejo da artista em tornar a sua obra acessível a todos, alterando a economia da arte e encontrando novas formas de disseminação da fotografia [5]. Dançando com a minha câmara conclui reafirmando a fácil capacidade de circulação dos livros em atingir um público amplo - no tempo e no espaço – e em criar de uma experiência tátil e particular, pois como nos diz a artista: As exposições vêm e vão, mas o livro fica para sempre.
Mafalda Teixeira
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Notas [1] Cit. da intervenção da artista durante a visita de imprensa à exposição no dia 16 de novembro de 2023.
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