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SITUAÇÃO 21: HISTÓRIAS COM AMANHÃ - UMA CARTOGRAFIA SOLIDÁRIA DA RELEVÂNCIA DAS GALERIAS DO PORTOCONSTANÇA BABO2021-04-28
A arte é uma potência que exprime a sociedade e o tempo. Por conseguinte, os espaços nos quais se instala são reflexo disso. As galerias assumem-se, pois, enquanto lugares de visibilidade, crítica, pensamento e reflexão, bem como de troca entre obras, práticas e plásticas, artistas, agentes culturais e público, criando constelações de imagens, ideias e coisas. Com efeito, como assinala Miguel von Hafe Pérez, “para além do vínculo primordial com os artistas que representam e expõem, as galerias de arte são produtoras culturais”, impulsionadoras de inovação, produção e criatividade. Ora, no caso da cidade do Porto, como o curador explica, foi esse sector que, durante anos, possibilitou ao público o contacto com artistas internacionais, algo fundamental tanto no campo das artes quanto na formação de conhecimento, de pedagogia e de uma massa crítica na sociedade portuense. Hoje, vivido um ano de pandemia, o papel das galerias revela-se particularmente fulcral. Se, por um lado, a esfera do digital e das redes demonstrou ser uma alternativa eficaz à divulgação e à disseminação da arte, por outro lado, também se comprovou o quão importante é presenciar e partilhar o espaço com a prática artística. Como tal, abertas as portas e iniciado o desconfinamento, é momento de celebrar o retorno ao “real”, ao físico, ao contacto próximo com os objetos artísticos e os seus autores, às experiências estéticas, visuais, perceptivas e sensoriais in loco que se mantêm insubstituíveis. O retorno da arte e da cultura às ruas do Porto é cumprido e assinalado por um projeto do consagrado curador Miguel von Hafe Pérez, cujos trabalhos primam, sempre, por atualidade, qualidade e valor, tanto no respetivo quadro conceptual como no conteúdo de que se fazem constituir. Intitulado Situação 21, trata-se do primeiro momento de uma iniciativa que se propõe dar continuidade no futuro, e que resulta de um exercício conjunto entre vários espaços, curadores e artistas. Como indica o comissário, procurou-se instituir um “diálogo profícuo com autores geracionalmente distantes”, mas os protagonistas são as galerias. Cada uma ficou ao critério e intervenção de um curador convidado, o qual foi desafiado a conceber uma mostra coletiva composta por uma conjugação entre artistas representados pelo respetivo espaço expositivo e novos nomes. Desse modo, reforçaram-se ligações e relações, ao mesmo tempo que se estabeleceram novas. Inaugurado na passada quinta-feira dia 15 de Abril, o projeto conta com seis galerias: Fernando Santos, Presença, Quadrado Azul, Nuno Centeno, Pedro Oliveira e Kubikgallery. Sendo de igual importância a passagem em cada um destes espaços, aqui se incorre numa retrospetiva centrada na rua Miguel Bombarda, de reconhecida notoriedade enquanto centro do tecido galerístico do Porto. Nesse mesmo quadro, será também adequado definir enquanto primeira visita a Galeria Fernando Santos, a primeira a instalar-se nesta zona da cidade. Porém, começar pela exposição que nela se apresenta, justifica-se sobretudo por a mesma se distinguir, o que se deve ao mérito da curadoria de Andreia Garcia que, no contexto artístico atual, se tem vindo a destacar enquanto particularmente valiosa e exímia. Com o título Contemporâneos Extemporâneos, lança, desde logo, um repto ao pensamento sobre o tempo. Como a curadora explana, somos todos, simultaneamente, testemunhos e produtos do passado, participantes no presente e procuramos antecipar o futuro, donde, somos extemporâneos. A mostra divide-se em quatro tempos, os do espaço, da estória, da matéria e da palavra, que se materializam em distintas áreas, entre as quais se propõe um percurso de cadência tão harmoniosa quanto estimulante. A exposição incita, de igual modo, a refletir sobre as condições da arte, tarefa hermética que se desvela sob a forma de um conjunto artístico igualmente desafiante. O mesmo somente é possibilitado, evidentemente, por meio dos artistas que se expõem, desde os residentes da galeria, tais como Avelino Sá, Geraldo Burmester e João Louro, aos que agora nela se estreiam, caso de Inês Teles, Teresa Esgaio e Luísa Salvador, esta última que se evidencia com uma obra extremamente sensitiva. Perfaz, assim, um grupo heterogéneo que traduz a própria pluralidade e densidade do conceito curatorial definido. Por certo, a arte é transversal ao tempo, manifesta-se dentro e fora deste, atravessa-o, rompe-o e projeta-se para além dele. E, como indica a curadora, “o universo da interpretação contemporânea apresenta um laço duplo que parte do contexto atual para logo se deslocar do anacronismo”. Também os curadores Luís Pinto Nunes e Luís Albuquerque Pinho defendem, justamente, que uma “convivialidade atemporal” pauta a contemporaneidade artística. Com tal mote instalam uma Ária do Encanto – uma flor que talvez não distinga o céu e a terra, na Galeria Quadrado Azul. O subtítulo corresponde a uma inscrição num desenho de Álvaro Lapa oferecido a Manuel Ulisses, fundador da galeria. Já Ária tem como uma das suas definições tratar-se de uma peça musical que pertence a uma composição maior. Com efeito, os curadores assumiram o desígnio de retratar por meio de fragmentos cinco décadas da produção artística do Porto. O resultado que se apresenta cruza e relaciona, em interessantes dinâmicas, referências fundamentais tanto deste específico espaço como do contexto português, indique-se, precisamente, Lapa, com nomes mais atuais mas que já conquistaram o seu lugar no campo artístico, exemplo de Isabel Carvalho. Refira-se, ainda, que o resultado reflete o desempenho da parceria entre os curadores, a qual tem vindo a destacar-se nos últimos anos e, neste caso, não só faz jus à Quadrado Azul, espaço de relevância nacional, como lhe concede novos pulsar e ritmo. Uma vez mais se recorre a Lapa, no que respeita um texto que acompanhou uma exposição sua na Galeria Presença, em 1995, onde indica que “Duplos são figuras cuja significação é a de representarem o sujeito que se vive por eles e se difere por elas”. Ora, é no contexto dessa mesma galeria que a curadora Aida Castro recorre a tal afirmação do artista, definindo-a enquanto um dos pilares que sustentam a sua coletiva Pontas duplas / Split ends. O título, sendo suscetível de várias interpretações, vê-se transcrito e justificado na mostra que se desdobra em surpreendentes instantes ao longo do espaço expositivo, construindo situações, precisamente, duplas, mas, simultaneamente, soltas. Ou seja, tratam-se de “pontas” que não se encerram em si mesmas, projetando-se espacial e conceptualmente em escalas, no limite, tão infinitas quanto as possibilidades da própria criação artística. Não obstante, como ponto de partida, expõem-se e exploram-se parcerias de pares, Helena Almeida e Lapa, Miguel Palma e Elisa Pône, Carlos Mensil e Diana Geiroto Gonçalves, ou seja, duos de maior renome que ilustram o valioso percurso da galeria e do país, juntamente com outros, expressivos da arte mais vibrante e atual. É, pois, no decorrer de um preciso exercício curatorial que, independentemente da primordial duplicidade que define a exposição, o modo como esta se instala e estrutura no espaço estabelece inúmeras relações, narrativas e encontros. As obras encontram-se, todas, em ativos diálogo, confronto e tensão, os quais não só configuram como lançam ao espectador várias experiências, visuais, percetivas e sensitivas. Finda a Situação em Miguel Bombarda, refiram-se as restantes três exposições que constituem o programa de von Hafe Pérez. Desde logo, pois a cartografia da cidade assim o sugere, descendo a rua da Restauração, chega-se à Kubikgallery, onde o curador Samuel Silva apresenta Uteropias. Num percurso eclético, como é próprio da galeria, estreiam-se Catarina Real e Luís Ramos, apresentados a par de artistas residentes, como Pedro Tudela e Valter Ventura, estes últimos que se destacam pelo impacto da força exercida pelas suas obras agora expostas. Proximamente, na Pedro Oliveira, Susana Lourenço Marques inaugura uma coletiva cujo título We Want Electricity expressa, em primeiro lugar, uma relação com a música, mais particularmente com o rock n’ roll, mas que aqui se sugere interpretar enquanto a reativação da voz da arte, pois, recorrendo-se às palavras da curadora, we want electricity again. Com ponto de partida no acervo e no percurso histórico e expositivo da galeria, marco na cidade desde 1990, desenrola-se uma mostra com obras de artistas capitais da casa, mas também do contexto artístico português, tais como Carlos Lobo e Luís Palma, a par de outros que mais recentemente se revelam, como Patrícia Almeida. Por fim, mas não por isso menos imprescindível de visitar, refira-se a exposição da Nuno Centeno, pela mão do curador Pedro de Lano. Como o próprio título sugere, Os conviventes, ergue-se a partir de convívios e associações, mas também de ideias e memórias de importantes referências não só da galeria como do panorama artístico nacional, caso de Mauro Cerqueira e Silvestre Pestana. É com esses artistas que se interligam outros que, nos últimos anos, também se têm vindo a demonstrar enquanto estruturais no contexto artístico contemporâneo, refira-se Carolina Pimenta, cuja obra fotográfica não cessa de surpreender. A exposição na galeria Nuno Centeno corporifica-se por meio de retratos, olhares, corpos e presenças. Em última nota, assinale-se que, como Miguel von Hafe Pérez pretendia, a estreia do projeto Situação 21, do qual se espera já contar com um segundo capítulo, anuncia, manifesta e afirma o reerguer do sector da cultura e da arte do Porto. Como tal, afirma-se enquanto indispensável a sua descoberta, passível de se concretizar até ao próximo dia 5 de junho.
Constança Babo |