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GEÓMETRA PER LAVOROJOÃO BORGES DA CUNHA2023-04-28
De um modo que ainda agora não deixa de causar perplexidade, continuam as ser colocadas, hoje, à obra de fotografia, e aos autores, questões de acesso à esfera da arte que, apesar da maneira como ela condicionou as expressões estéticas no último século, insistem em oferecer-lhe um estatuto pouco emancipado. A mais persitente de todas, quando não a mais exaspereante – isto se descontarmos o extensíssimo debate sobre a técnica e as teses sobre o respectivo valor de culto, de exposição e de reprodução (cf. Walter Benjamin) –, parece ser de ordem genológica. Isto é, a vexata quaestio sobre a genética da obra e o género daquilo que ela representa. Em termos a que é dificil extrarir o tom caricatural, algo como: «fotografia de quê»? Indagação que, de resto, ninguém achará destituída de sentido, sendo até, quem sabe, nobilitante se dirigida a Diane Arbus, Francesca Woodman, Candida Höfer, Hilla Becher, Helena Almeida, Nan Goldin ou Cindy Sherman. O que, estranhamente, já não poderá ser replicado, sob pena de um módico de ridículo, à pintura de Gehrard Richter. A fúria temática a que a fotografia-obra-de-arte foi e continua a ser submetida, redundou numa constelação aflitiva de géneros e subgéneros com que os agentes artísticos convivem bem e que promovem, e se assemelha à querela entre a paisagística e a retratística na pintura barroca. Veja-se esse ultra-mundo, com seu prócere papal de nome H. C-Bresson, que é a street photography. A supina generalidade do que até aqui se disse recebe uma refutação finíssima perante o trabalho de Luigi Ghirri (1943–1992), do qual uma pequena selecção pode ser vista na exposição Obra Aberta. E é antes de mais por isso que a estas obras de fotografia nunca é fácil escusarem-se à categoria, não pouco arriscada, de descobertas, de curiosidades, de raridades, de bizarrias. Precisamente porque dizer com acerto aquilo que re-tratam esbarra na impossibilidade irredutível de indicar-lhes “coisa exacta”. E não se refere isto a qualquer pecha formal, ou formalista. As fotografias de Ghuirri são severamente figurativas, indexicais, realistas, hiper-realistas, trans-realistas. Há é um mundo tão heteróclito de coisas, de artefactos, de lugares, de recintos, parafernália e marginália, de gente e de não-tanta-gente, que nos é trazido a ver de forma tão indómita, que cair-se-ia, a cada peça, numa desconchavada atomização temática. Em Ghirri, cada fotografia inaugura o seu próprio género, sem que isto seja necessariamente virtuoso. Poderá daqui alimentar-se a ideia inopinada de uma tanta impaciência do olhar, de uma leveza de critério, ou de um diletantismo, o que é rematadamente enviesado e injusto. Ghirri ficciona. O certo é que o autor, ele mesmo, reconhece em textos ensaísticos que produziu a incapacidade de encontrar um termo, um fim, um limite para o que se lhe era dado fotografar. Na verdade, perseguia-o a glosa do pensamento de Mallarmé, que dizia do mundo estar feito para acabar dentro de um livro, e assim de igual forma que «hoje, tudo existe para acabar numa fotografia». Esta a razão para Ghirri ter encontrado nas expressões “obra aberta”, “infinito e universo” divisas maiores da sua oficina, bem como o conceito fertilíssimo de um “atlas-album-de-família” de toda uma geração-região. A retórica da Obra Aberta passou por estações várias, e foi incendiada nos anos 60 do século XX pelo livro, com o mesmo título, de Umberto Eco. Na altura, esgrimia-se o argumento de que as novas vanguardas estavam a compor obras que tinham um grau tão permissivo de abertura, e de possibilidade, à participação do observador/ espectador/ fruidor que a obra não se consumava sem essa intervenção, o que inaugurou as estéticas participativas, imersivas e intera-activas. Todavia, e apesar de todas as vigilâncias a que a noção foi sujeita, ela não deixou de entrar na vulgata do discurso sobre a arte. Porém, declinada com os sentidos ora de obra-inacabada, ora de obra a-ser-percebida. É deste último sentido que se reclama a experiência de ver a obra de Ghirri, e que a torna também numa experiência maior. O truísmo de que toda a obra só o é perante a percepção de quem a vê, ganha em Ghirri desafios insuspeitados. Sobretudo porque no corpo daquilo que são cenários visivelmente mundanos, Ghirri compõe uma dramaturgia de elementos que catapultam o espectador para experiências superlativas. Diz-se destas fotografias que são a paisagem de uma certa Itália, com o que nelas há de vestígios locais e de acontecimentos próprios, isto como tentando inscrevê-las no pitoresco de um dado tempo e lugar (Paesaggio Italiano). Acontece ser esta caracterização abaixo de uma nota de etiqueta. As fotografias que se vêem nesta exposição, e que contêm uma dignidade material que solicita a presença (um bravo! à curadoria) são o veículo de uma dimensão transcendental que as coloca na tradição da pintura metafísica de um De Chirico. Mas sem artefícios simbólicos que de alguma forma prometessem leituras herméticas, ou acessos extáticos. A fotografia de Ghirri é de raiz popular. E grangeia a adesão das massas à conta de idiossincrasias culturais: as cores em carne viva, o ponto-de-vista virtiginoso, o episódio inquietante. Mas é também uma obra exigente e superlativamente culta. Assim se vê em alinhamentos, enquadramentos e atmosferas enigmáticos, muitos deles com o toque de um cosmopolitismo refinado (de alguém que lia a Time-Life), e acerca dos quais o desconhecimento do que é a trindade, o pathos, uma myse-en-abîme ou o trompe l’oeil, fará perigar a obra em toda a sua abertura. Luigi Ghirri foi durante tempo assinalável da sua vida um geometra per lavoro no norte de Itália. Um geometra, no contexto cultural italiano, é um profissional que executa levantamentos e medições de edifícios, de propriedades e de terrenos. Um topógrafo. A fotografia foi-lhe, inicialmente, um instrumento de trabalho. A geometria, a arquitectura (colaborou com Aldo Rossi), os monumentos, os acidentes geográficos foram-lhe matéria artística. A exposição Obra Aberta, com a sua disposição em deambulatório “cultual” (fotografia-ícone lado-a-alado), parece esquecer esse vaso comunicante. E não lhe faz jus. Inegavelmente obrigatória, tem o seu quê de oportunidade perdida.
João Borges da Cunha
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