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YOTA AYAAN: A HUMANIZAÇÃO DA AUTONOMIA DE UMA MÁQUINASARA MAGNO2023-01-12
O nome Yota Ayaan, por exemplo, foi escolhido ao acaso e não tem um significado particular, exceto a aleatoriedade em si que, para o artista, tem mais significado do que aquilo que as palavras poderiam alguma vez transmitir. Yota Ayaan é o nome que se encontra na porta do escritório onde tanto o artista como amigos e colaboradores deste trabalham. O artista é, portanto, um funcionário da sua própria corporação. Este escritório, ao contrário da maioria das corporações, está mais preocupado com a conceptualização e a produção artística em si do que com a reivindicação de qualquer autoria sobre ela. Esta produção inclui aparelhos híbridos para a conversão de som em dados e vice-versa, paisagens ciborgianas áridas, sites de hacking ético2 [2], e uma conta de instagram em branco. É possível associar a aleatoriedade à incerteza e, ao mesmo tempo, à necessidade de controlo num processo de tomada de decisão. Uma das questões culturais e políticas mais urgentes do nosso tempo é, precisamente, a forma como a tomada de decisões está a ser conduzida na era digital. Esta é uma questão com que muitos artistas e filósofos, bem como economistas e políticos, se têm debatido atualmente. Em Machine Dreams, Philip Mirowski (2002) argumenta que na teoria da economia política, por exemplo, a dificuldade que existe na tomada de decisão resolve-se retirando os humanos da equação. Se a racionalidade humana é um problema para a tomada de decisões económicas, substituam-se os humanos pela computação, por não-humanos racionais, e veja-se o que acontece - é assim que Mirowski coloca a questão. A fórmula mais difícil de criar e acrescentar a esta equação é, no entanto, o algoritmo da aleatoriedade. Operações algorítmicas são o modelo em código daquilo que devem duplicar, e o que elas duplicam é precisamente tudo, assim como tipos muito específicos de aleatoriedade que existem no mundo. Esta introdução pode ajudar-nos a compreender o que Yota Ayaan é, de onde vem, e no que visa. Primeiro, é o resultado de um tipo específico de algoritmo para a aleatoriedade - um algoritmo que poderia ser criado a partir de um sonho ou ao caminhar com os olhos fechados. O que propõe com produções artísticas como Plant Data (2021), The Basket (2021) ou Postscript (2022) - para mencionar apenas três projetos recentes - é tornar visível diferentes tipos de representação algorítmica e, ao mesmo tempo, compreender o que eles estão a tentar duplicar. Esta é uma preocupação partilhada por Hito Steyerl no seu livro Duty Free Art: Art in the Age of Planetary Civil War, quando ela observa: "Se os modelos para a realidade consistem cada vez mais em conjuntos de dados ininteligíveis para a visão humana, a realidade criada depois deles pode ser parcialmente ininteligível também para os humanos" [3] (Steyerl 2017, 71). Traduzir dados em expressões audiovisuais é, em parte, um motivo que Yota Ayaan usa para perturbar algo que se normalizou no mundo - uma vez que, como Steyerl também observa: "Não ver nada inteligível é o novo normal. A informação é transmitida como um conjunto de sinais que não podem ser captados pelos sentidos humanos” (Steyerl 2017, 47). [4] Mas é também um motivo para Yota Ayaan procurar acrescentar ao mundo algo que está em falta - pelo menos ao nível da lógica e da inteligibilidade humana. Plant Data faz uso de tecnologia avançada para a gravação de dados de áudio captados a partir das emissões acústicas de plantas, dados estes reproduzidos pela primeira vez neste projeto. The Basket explora a telepatia, a visualização remota e a inteligência extra-sensorial, para redefinir os limites da nossa compreensão acerca do que é a consciência e a comunicação humanas; e Postscript é uma instalação que inclui um multicanal de som e vídeo em loop durante 9 minutos, mobiliário de escritório, computadores, servidor de Internet, monitores, altifalantes, cabos eléctricos, routers wi-fi e papel de parede para criar um ambiente propício à audiovisualização de dados, fórmulas codificadas e expressões algorítmicas. Em todos esses projetos aquilo a que temos acesso é o proxis, ou seja, a lógica algorítmica de algo - sejam elas plantas, a consciência humana ou os próprios computadores. Esta lógica algorítmica torna-se uma espécie de essência, em termos heideggerianos. Algo que atravessa toda a matéria, e não-matéria. O mais recente trabalho de Yota Ayaan, Postscript, mantém uma ‘estética do escritório’ que se tem tornado a marca registrada dos ambientes onde este artista e sua corporação operam. O espaço do escritório funciona como um proxi para o estúdio de artista, transformado a partir de dentro pelo próprio algoritmo. Este é uma espécie de habitat natural do algoritmo, da informação na sua forma mais pura, na sua forma vetorial. O escritório representa para a classe dominante do nosso mundo globalizado, o lugar de excelência para se "fazer dinheiro”; é o lugar onde se podem acompanhar todas as transacções comerciais no mundo graças às cadeiras estofadas, às mesas de design, aos computadores poderosos e às salas climatizadas com ar condicionado automático a que obrigamos o nosso corpo a adaptar-se. O escritório pode também ser visto como o local de nascimento daquilo a que McKenzie Wark no seu livro Sensoria chama de ‘classe vetorialista’: "Enquanto que a classe capitalista possuía os meios de produção, a classe vectorialista possui o vector de informação. Esta é a classe dominante do nosso tempo" (Wark 2020, 56). [5] É seguindo esta lógica que o escritório na instalação artística de Yota Ayaan se pode tornar uma espécie de espaço reservado para o caos da guerra da informação que acontece todos os dias. Quanto à instalação audiovisual de Postscript, Yota Ayaan revela adoptar um processo criativo interessante: sistemática e obsessivamente grava sons, tanto do mundo exterior como do interior do computador. Depois, usa a Cloud para armazenar e converter os arquivos de som em tipos específicos de dados que, uma vez descarregados, "espremidos através de ligações digitais lentas, comprimidos, reproduzidos, rasgados, remixados, assim como copiados e colados noutros canais de distribuição" (Steyerl 2009) [6], volta novamente a mudar para outro tipo de dados, produzindo uma espécie de codificação e do material. Esta re-codificação, por si só, torna-se numa nova composição sonora. Este processo faz lembrar de alguma forma o Disintegration Loops de William Basinski (2002) que ele compôs depois de testemunhar a queda das Torres Gémeas da janela do seu apartamento em Nova Iorque; relembra também a peça sonora minimal de Alvin Lucier, Im sitting in a room (1969), em que o artista grava-se a si próprio a ler um texto, depois reproduz a gravação na sala onde o gravou e volta a regravar. Este processo repete-se várias vezes até que, devido ao tamanho e geometria da sala, certas frequências da gravação ficam amplificadas enquanto outras são silenciadas. Com o tempo, as palavras tornam-se incompreensíveis, sendo substituídas pelas frequências dominantes da sala. Esta peça precede a Internet e a Cloud, mas o trabalho de Yota Ayaan manifesta e exibe elementos semelhantes. Tal como acontece no quarto de Lucier, ao enviar dados sonoros para a Cloud e ao descarregá-los novamente, os sons que ouvimos na instalação de Yota Ayaan entram na câmara de eco e no loop de circulação da Internet - como diria Hito Steyerl: "(...) eles testemunham o deslocamento violento, as transferências e deslocações de imagens (neste caso sons) - a sua aceleração e circulação dentro dos ciclos viciosos do capitalismo audiovisual" (idem). [7] Ao mesmo tempo - e em perfeita sincronia, enquanto o som está a ser descarregado da Cloud, o vídeo reproduz o próprio código HTML dos dados sonoros em vários formatos visuais. O curioso aqui é que este código, por mais visível que seja - projetado sobre uma tela branca plenamente focado - ainda é uma imagem opaca, uma imagem que não é para humanos comuns lerem, mas sim definitivamente para máquinas. No entanto, o que se pretende enfatizar neste trabalho é essencialmente a forma como Yota Ayaan se concentra em detectar e representar esteticamente diferentes veículos de informação que se manifestam de formas variadas no mundo, visualizando como estes podem ser vivenciados a partir do interior - quer seja de um ser humano ou de uma máquina - contribuindo, desta forma, para pensarmos fora da norma institucionalizada e para imaginarmos juntos um mundo radicalmente diferente.
Sara Magno
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Notas [1] "Media are not pseudopods for extending the human body, they follow the logic of escalation that leaves us and written history behind it.” (tradução minha) Kittler, F. "Geschichte der Kommunikationsmedien", in: Jörg Huber, Alois Martin Müller (eds.), Raum und Verfahren. Desde os anos 1980, os "media técnicos" [Technischen Medien] de Friedrich Kittler tornaram-se uma das abordagens mais influentes da teoria dos media.
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Yota Ayaan (1981, Napier) é um artista e compositor de som, vídeo, instalação, hacking ético e pesquisa de dados com diversas indagações que abrangem as artes, a filosofia e a ciência. Yota Ayaan completou recentemente uma residência artística de 12 meses sobre inteligência vegetal na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde se focou nas teorias de dados mais recentes e nos limites do código binário e da IA; esta residência resultou na exposição individual e institucional de Plant Data no Museu de História Natural, MHNC, 2021. |