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ENCONTRO INESPERADO EM CAMPANHã. ESPAçO MIRA: OBJECTIVA SOBRE UM CONTEMPORâNEO NA ARTEALEXANDRA BALONA2014-05-14Uma certa multitude artística encontra-se, periodicamente, na discreta rua de Miraflor, em Campanhã, participativa e espectadora de eventos que têm lugar no Espaço Mira e no Mira Fórum. Com morada em quatro dos onze armazéns da rua que lhe sugeriu o nome, e contando só com seis meses após a sua abertura oficial em Novembro de 2013, o Espaço Mira e o Mira Fórum são já polos atractores de fluxos e dinâmicas artísticas, ancoradas na fotografia e no seu campo expandido, que têm potenciado, além de exposições colectivas e mostras de performance, ainda sessões de cinema, conferências, conversas de artistas, workshops, residências e apresentações de peças de teatro, concertos de música improvisada, entre outros. De uma efervescência crescente e periodicidade quase semanal, qualquer olhar mais atento regista as movimentações da rua Miraflor. Manuela Matos Monteiro e João Lafuente, os directores do projecto Mira, sempre mantiveram com a fotografia uma relação de vida intrínseca, tendo integrado e dinamizado diversos colectivos nesse âmbito. Agora com outra disponibilidade, era chegado o momento de encontrar um lugar onde a fotografia pudesse morar, ser reflectida, exposta, operada, tanto na sua especificidade, como no seu campo expandido de contaminações recíprocas com as mais diversas formas de pensamento e prática artística. Sem o propósito inicial de localizar este projecto em Campanhã, a decisão perante os armazéns de Miraflor foi, porém, imediata. E, curiosamente, todo um passado familiar de filiação a Campanhã se revelou mais presente do que inicialmente suposto, reverberando memórias pessoais de Manuela Matos Monteiro e João Lafuente. Rua de antigos armazéns de carvão e de vinho, transversal ao olhar quotidiano, Miraflor ainda guarda traços do desenho urbano dos bairros operários em ilha, uma marca daquela que foi a zona da cidade com maior concentração de indústrias até meados do século passado, convivendo então com terrenos agrícolas, casas senhoriais da alta burguesia proprietária das indústrias, residência temporária de estrangeiros com relações comerciais, zona de veraneio e de campo. Hoje, a zona oriental do Porto, será uma das áreas da cidade em que o tecido socioeconómico e estrutural se apresenta mais debilitado, com antigas instalações industriais devolutas, e um conjunto edificado, em geral, precário e deteriorado, numa zona onde predominou a construção de bairros de habitação camarária no último terço do século passado. Campanhã tem alojado, ainda que timidamente, projectos de criação artística e cultural, como a companhia de teatro As Boas Raparigas, o CACE Cultural do Porto, a comunidade de músicos do Centro Comercial Stop e, num passado mais recente, o Espaço Campanhã (hoje, inactivo), projecto que se destacou pelo comissariado de exposições, sob direcção artística de José Maia. No Espaço Mira, a direcção artística é, novamente, de José Maia, com curadoria de exposições de José Maia, Patrícia do Vale, Ana Carolina Frota, Rita Breda e Suzana Torres Corrêa; curadoria do ciclo de cinema também de José Maia, com Ana Pinto, Joaquim Pinto, Regina Machado e Sara C. Branco; e direcção da publicação de reflexão crítica por Ana Pinto, Regina Machado e Sara C. Branco. O Mira Fórum, que integra o projecto Mira, tem direcção artística de Manuela Matos Monteiro e João Lafuente, e propõe uma programação diversificada no âmbito da formação, criação e apresentação, extensível a outras áreas tangenciais à fotografia. Com uma amplitude evidente pelos eventos e dinâmicas que promove, pelas residências e iniciativas que acolhe, na disponibilidade que o caracteriza, e na generosidade com que interage com o território geográfico-social e artístico que gravita em seu torno, o espaço Mira, o Mira Fórum e os contíguos Armazéns 3 e 4 têm vindo a assumir, no seu conjunto, o corpo de um centro cultural na zona leste da cidade do Porto. Mas regressemos, então, ao Espaço Mira. 12 de Outubro de 2012 foi a data do primeiro evento, mesmo antes das obras de renovação. Aceitando o desafio de abrir os armazéns ao público, lançado pelo evento de arquitectura “Arq-out 2012”, Manuela Matos Monteiro e João Lafuente convidaram o artista Manuel Santos Maia a expor o seu trabalho, ao qual o artista respondeu com uma proposta de exposição colectiva e multidisciplinar intitulada “Encontro inesperado com o diverso”, e que contemplou arquitectura (Rui Neto, desenhos e livro de artista), pintura (Cecília Albuquerque), vídeo (Margarida Paiva), fotografia (Manuel Santos Maia), desenho-ilustração (Ricardo Abreu), literatura (Cristina Oalves), texto crítico e poesia (André Lamas Leite). Cerca de um ano depois, em Novembro de 2013, (re)abre o Espaço Mira com o primeiro momento de uma série que já conta cinco, e que aborda a porosidade da fotografia na sua relação com outros media (cronologicamente, com as imagens em movimento, com a performance, a fotografia na relação ambivalente consigo mesma, com a pintura, e finalmente, com a arquitectura, a construção e materialidade). Desde o início, as propostas de curadoria procuraram imprimir o contexto geográfico, político, social e artístico de onde partem, como referiu José Maia: “Espaço Mira que é de Campanhã, que é do Porto, que por sua vez é de Portugal, que por sua vez é da Europa...”, e esta postura evidencia-se na escolha dos artistas que se têm circunscrito a uma relação de proximidade (condicionada, provavelmente também, por constrangimentos financeiros e estruturais). Este facto pode ser tão limitativo quanto estimulante, se pensarmos “o que fazer com o que temos?”, sobretudo no contexto contemporâneo em que os discursos curatoriais vieram, de certa forma, substituir o lugar do crítico. Além disso, em cada exposição houve uma articulação semântica entre a sua especificidade e a própria arquitectura do Espaço Mira, ou dos armazéns adjacentes. Outra marca que as propostas denotam é a de uma certa horizontalidade: cada momento foi apresentado como uma possível mesa de montagem que responde à relação da fotografia com outro media. Como referiu José Maia, “muito mais haveria a tratar em cada exposição, muitos outros artistas poderiam estar aqui presentes”. Outra particularidade do projecto de curadoria é, como foi referido, o largo espectro dos eventos paralelos propostos, nomeadamente, sessões de cinema, percursos urbanos, conversas com os artistas ou conferências, em diálogo com a especificidade de cada momento. Esta amplitude intelectual é catalisadora da atracção que o projecto Mira tem alcançado. O Momento I, intitulado “Um vasto espaço de realidade” (As imagens em movimento e a fotografia - o Porto), inaugurou em 9 de Novembro de 2013, e contou com obras de Cristina Mateus, Dalila Gonçalves, José Oliveira, Mauro Cerqueira e Paulo Mendes. Sublinhando a ancoragem das propostas de curadoria ao lugar e à cidade, António Preto apresentou uma conferência sobre a fotografia no cinema de Manoel de Oliveira, seguida da projecção de dois filmes deste cineasta (“Douro Faina Fluvial” e “O Estranho Caso de Angélica” ); na semana seguinte, teve lugar um percurso pedestre por Campanhã, guiado pelo artista José Oliveira, seguido de uma conversa entre artistas, comissários e público. Aproximadamente um mês após, a 14 de Dezembro, inaugura o Momento II: a exposição “Quando ‘te vês’ é tudo” (A relação entre fotografia e performance), no qual participaram artistas de diferentes gerações, desde os anos 60 até à segunda década do século XXI: Silvestre Pestana, Pedro Tudela, António Olaio, André Fonseca, Hugo Soares e João Gigante, Vera Mota, Hugo de Almeida Pinho. A exposição, como referiram os curadores, constituiu-se “enquanto ‘expeausition’, segundo a proposta de Jean-Luc Nancy em Corpus, pensando a pele que se expele na performance como lugar de acontecimentos de existência, os indícios do corpo e a presença da ausência que permanece”. Foi apresentado um ciclo de mostra de performances intitulado “Constroem o vento”, com dois momentos, e que contou com obras de Silvestre Pestana, Pedro Tudela, António Olaio, António Lago, Susana Chiocca, André Fonseca, Hugo Soares, João Gigante, Vera Mota, Horácio Frutuoso, Hugo de Almeida Pinho, Dalila Vaz e Jonathan Saldanha. Além das propostas mais recentes, foram revisitadas performances desde a década de 80 até ao início deste século, momentos singulares que com toda a pertinência importa reinscrever numa comunidade artística mais recente. O programa paralelo contemplou o encontro “Amanheceu enquanto conversávamos”, uma conversa entre os artistas, os curadores e o público (que se iria repetir nos momentos subsequentes), e a projecção do filme Blow Up, de Michelangelo Antonioni, com texto de Mário Silva. A performance histórica incide sobre o corpo e a efemeridade do evento, articula-se com o espectador como agente presencial e com a fotografia e o vídeo, sobretudo, como media de registo e documentação. Recentemente, a performance dissemina-se num campo expandido de relação com outros meios tecnológicos (vídeo, fotografia, plataformas digitais, virtuais, etc.), tendo sido preocupação de abordar nesta exposição “a performatividade do acto de fotografar mas também a performatividade do corpo consciente do acto fotográfico”, do corpo consciente de si enquanto registo. Em 10 de Janeiro de 2014, inaugurou o Momento III, com o título “A riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade”, que incidiu sobre o próprio estatuto ambivalente da fotografia: de documento, a objecto estético, ou objecto teórico e conceptual. Contou com obras de Miguel Leal, Cristina Regadas, Eduardo Matos, João Marçal, Nuno Ramalho, Diana Carvalho e Limamil. Paralelamente, foi proposto uma conferência sobre a obra de Pedro Costa, por Cristina Mateus e Miguel Leal, seguido da projecção do filme O Sangue, do cineasta. Na semana seguinte, teve lugar a conferência “As Diferidas: memória, autoria, fotografia”, por Eduardo Brito, seguido de mais um encontro de conversas “Amanheceu enquanto conversávamos”. O Momento IV, “Tudo é outra coisa”, com enfoque na relação entre a fotografia e a pintura, inaugurou a 15 de Fevereiro de 2014. À semelhança dos momentos anteriores, a própria exposição relacionou-se espacialmente com o Espaço Mira, na escolha criteriosa da montagem e localização dos objectos pictóricos, sua colocação na parede ou sobre as mesas, ou ainda na intervenção-fresco de Filipe Cortez no próprio tecto da galeria, culminando com uma peça de Francisco Babo instalada na black box, que fazia dialogar a fotografia, a imagem projectada, a pintura, e a instalação. Logo após a entrada no Espaço Mira, na parede do lado direito, a frontalidade íntima do auto-retrato de Arlindo Silva convocava a aproximação do observador. A uma certa distância, o realismo da imagem e a sua paleta cromática citavam a fotografia analógica de um outro tempo, mesmo sem o hiper-realismo das suas obras mais recentes. Mais próximo, o observador entrava já na esfera da matéria pictórica que nos devolvia a marca pessoal do detalhe e da textura. Era legível a domesticidade do contexto, reiterada no olhar desarmado do artista, em tom de dádiva. Em seguida, surgia a obra de Cecília Albuquerque, errática e desconcertante, fazendo referência a cenas da intimidade, citações de imagens da história da arte, da publicidade, naturezas mortas, paisagem, dispostas tanto no plano da parede, como sobre uma mesa. José Almeida Pereira apresentava, mais à frente, duas obras de pintura a partir da duplicação e sobreposição de imagens fotográficas, bem como um ensaio que partia da deformação óptica de uma imagem fotográfica de uma obra de arte. Uma vez mais, numa obra que é pintura foram-nos dadas a ler diversas camadas de citações: a pintura que se faz a partir de uma fotografia (manipulada) que, por sua vez, é documento de documento de... uma obra pictórica histórica. De volta à mesa e ao plano da parede, Luís Fortunato Lima apresenta sob a primeira, um espólio fotográfico sobre o vale da Campanhã, que o artista apropriou e retrabalhou, e no último, as suas paisagens apocalípticas, que partem de arquitecturas urbanas em construção mas que o artista retrata em ruína, cuja gama cromática de cinzentos enfatiza a carga dramática das imagens, com um discurso político subjacente. A acompanhar a exposição: a exibição do filme Mãe e Filho, de Sokurov, intensamente pictórico, as conferências “Cinema de Alexander Sokurov “, por Jorge Leandro Rosa, e “A relação entre pintura, desenho e fotografia”, por Luís Fortunado Lima. Repetem-se as conversas “Amanheceu enquanto conversávamos”, e foi proposto um percurso pedreste às pichagens políticas em Campanhã, uma vez mais, envolvendo o público na vizinhança urbana do Mira. Finalmente, o Momento V intitulado “A casa já não é casa para quem morar saber mais do mundo” (A fotografia, a construção, a desconstrução e a recuperação arquitectónica) esteve patente de 22 de Março a 19 de Abril. Tendo como base o território urbano e arquitectónico do contexto envolvente, nomeadamente, os bairros operários de tipologia em ilha, Felícia Teixeira e João Brojo apresentaram duas peças: uma projecção de vídeo na porta de entrada do Espaço Mira que transpunha para aquele plano a própria espacialidade de uma das ilhas contíguas, e um livro de artista que tratava a materialidade cromática dessas habitações. Em seguida, Tiago Cruz propunha uma excursão para o espaço exterior da cidade, ao apresentar uma escultura que remetia para as letras na fachada do Coliseu, ou outras peças que apropriavam formas de objectos do universo da construção, replicando-as com outra materialidade, numa subversão do binómio referente-obra. José Martins Leite compõe sobre o solo uma superfície de materiais, ou despojos, instalação site-specific, como se de um desenho urbano a duas dimensões se tratasse. Finalmente, Jérémy Pajeanc opera no espaço do Armazém 4 (A4), que ainda não foi alvo de obras de recuperação total. No fundo desse edifício, o artista ergue uma parede, delimitando um outro espaço dentro do existente. No decorrer de uma performance (com intervenção de Maria Trabulo), abre janelas e gera permeabilidade visual entre os dois, convocando através de uma instalação cénica de objectos, uma possível memória histórica do armazém. No sábado, dia 19 de Abril, o artista operou o segundo momento performativo a partir da mesma instalação. Convocando o universo da escritora e realizadora Marguerite Duras, o artista destrói com uma rebarbadora a parede então construída. O gesto é ruidoso, e agressivo: desvela-se o espaço (privado) e expõe-se intimidade. \\\"O sol estava sobre si – diz ela\\\" foi o título do momento que o Espaço Mira acolheu no sábado, dia 19 de Abril, comemorativo do centenário do nascimento de Marguerite Duras, integrado nas comemorações da FLUP. Além de instalações de Catarina Oliveira e Jérémy Pajeanc, este momento contou com uma mostra de performances de Vera Mota, António Lago & Ossos, Jérémy Pajeanc (já mencionada), Inês Vicente com Tiago Boto e Eric Many, Daniel Pinheiro e Paula Ferreira, e o lançamento de uma publicação de Hugo de Almeida Pinho. No dispositivo espacial instalado por Jérémy Pajeanc (a parede com pequenas aberturas), Vera Mora cita o filme India Song de Marguerite Duras, operando cinematograficamente, as questões que visibilidade-invisibilidade, aparição-desaparecimento. Inês Vicente, Eric Many, Daniel Pinheiro e Paula Ferreira trabalham a partir de (i)legibilidade da língua francesa, o seu desuso contemporâneo, e sublinham a idiossincrasia semântica e cultural que cada língua acarreta, bem como a sua tradução impossível (Derrida). O último evento com curadoria do Espaço Mira ocorreu, como não poderia deixar de ser, na celebração do quadragésimo aniversário do 25 de Abril, com o nome: “Como se o mundo tivesse de ser todo, novamente, reaprendido”. Na verdade, todos os eventos do mês de Abril impunham a necessidade de pensar hoje a revolução, (re)inscrevendo-a com as preocupações do presente: reiterar a importância da criação, do artista, da cultura, da liberdade de expressão política, identitária, ou até mesmo, sexual. Contou com exposições e mostra de performances no dia 25, exibição do filme Os Republicanos de João Sousa Cardoso (2008) no dia 26, seguido de uma conversa entre o realizador e o filósofo José Bragança de Miranda. Por ter impresso no seu carácter, desde o início, a relevância do contexto de onde parte para pensar as suas propostas, este evento assumiu a forma de uma digressão pelo território geográfico-cultural circundante, a freguesia do Bonfim para, nas palavras dos comissários, “pensar a liberdade, a memória e a acção”. A exposição sai dos seus limites institucionais, os corpos manifestam-se andando, homenageiam artistas e pensadores portuenses, olham as marcas das guerras e da ditadura, (re)visitam o passado, para com ele pensar o futuro. Sublinhando a relevância da criação, hoje tanto mais premente, o evento teve início no Parque Nova Sintra (Águas do Porto EM – CMP), e Reservatório Nova Sintra que reúne as fontes que abastecem a cidade do Porto. Se recordarmos a peça de Bruce Nauman Self Portrait as a Fountain (1966), este gesto alegórico que afecta a criação ao domínio aquático das fontes, torna-se evidente. O evento derivou pelas ruas contíguas, travessas e casas habitadas em seu tempo por Agostinho da Silva, Aurélio da Paz dos Reis (fotógrafo e realizador pioneiro de cinema português), ou pela artista Aurélia de Sousa, e prosseguiu numa homenagem a estes artistas com uma exposição colectiva (obras de Hernâni Reis Baptista, José Almeida Pereira, Isabel Ribeiro, Ricardo Novais Pereira e Cristina Regadas) e performance de Flávio Rodrigues na Casa Oficina António Carneiro. O percurso/manifestação seguiu para a Museu Militar do Porto, antiga sede da PIDE, onde está ainda patente uma exposição colectiva (obras de José Almeida Pereira, Rui Effe, Carmo Osul, Paulo Jesus, Limamil, Jorge Lourenço), e terminou no final do dia no Espaço Mira e Armazém 4, respectivamente, com uma exposição colectiva (obras de Carlos Azeredo Mesquita, Paulo Osório, Paulo Pimenta, Dinis Santos) e performances de Joclécio Azevedo e de Ossos do Ofício. Estas exposições estarão patentes até ao final do mês de Maio (https://pt-pt.facebook.com/espacomirafotografia?ref=stream&hc_location=timeline). :: Este projecto irradia diversas questões, para as quais não tenho a pretensão de encontrar uma só resposta, mas de disseminar reflexão (a pressão da objectivação contemporânea já nos impõe demasiadas restrições ao pensamento). Importa reflectir sobre o estatuto do Espaço Mira, que se pode localizar algures entre o espaço independente gerido por artistas e o institucional, numa economia outra que não a galerística. Possui uma escala que lhe confere visibilidade e permite a sua inscrição, preservando a independência do seu projecto curatorial, com as suas idiossincrasias e discursos próprios (mais ou menos dinâmicos, só o tempo o dirá!). Vale a pena ponderar se será este um formato alternativo possível, o esforço que o faz operar agora (com receitas provenientes somente de actividades de formação e de residência), e as condições que o deveriam sustentar no futuro. Ainda, qual a pertinência de um espaço dedicado à fotografia, neste momento particularmente inquieto das imagens? Hoje, é impensável circunscrevemo-nos à especificidade dos media artísticos, entre eles a fotografia, desde já pela destabilização que esta e o cinema operaram na estrutura de autonomia da arte, assim como nos seus fundamentos ideológicos: “original”, “cópia”, “autor” e “aura” [como bem profetizou Benjamin nos seus dois ensaios “Pequena história da fotografia” (1931), e no seminal “Obra da arte na era da sua reproductibilidade técnica (1936)]. Além disso, a disseminação de imagens e sua proliferação nas redes de informação global fazem da fotografia um media omnipresente por excelência, já que as imagens se tornaram elementos constituintes da própria realidade, ou de uma imagem de realidade enquanto superfície (cada vez mais evidente). O sujeito contemporâneo, no seu papel de consumidor alienado de imagens, hoje provenientes não só dos mass media, mas do fluxo das news feed das redes sociais e hiperligações da internet, passou também a auto-produtor instantâneo, ou apropriador/pós-produtor, subscrevendo frequentemente a lógica selfie do “perform oneself” ou “advertise oneself”, contribuindo desta forma para o fluxo incessante de imagens que nos consome (sem querer com isto retirar o benefício democratizador da internet). Contudo, não será suficiente permanecermos na crítica da superfície, do simulacro (Baudrillard), da espectacularização do real (Guy Debord), ou da arte que se torna progressivamente entretenimento, da reabilitação urbana que toma a forma de pastiche, ou ainda de uma resposta ao turismo que transforma os centros históricos em parques temáticos, porque esta não elimina uma estrutura que continua subjacente e se apropria de cada desvio ou transgressão em seu favor. Talvez por isso necessitemos ainda de derivas artísticas e de pensamento, e de insistirmos na inscrição do corpo nas mesmas. Deslocalizarmo-nos da superfície das imagens (ou do real) para o encontro presencial e performativo com estas, nomeadamente, através de exposições e eventos desconcertantes e catalisadores do pensamento. Até ao momento, as exposições colectivas do Espaço Mira têm potenciado a reflexão sobre práticas artísticas em torno da fotografia e seu campo expandido, atentas sobretudo a um raio geográfico de vizinhança (por agora), com uma estratégia caracterizada pela disponibilidade de ver o que se está a fazer aqui, e mantendo um diálogo muito informado com o passado recente e histórico de produção artística portuguesa (por sua vez, mais ou menos contaminada pela produção e pensamento internacional). Hoje, as exposições colectivas são um dos principais lugares de experimentação curatorial, capazes de abrir novos espaços discursivos na prática e pensamento artístico. Reiterado por muitos, o curador veio ocupar o lugar do crítico, sobretudo quando utiliza uma estratégia que vai além do ilustrativo e do narrativo, e transmite a potencialidade experiencial e crítica para o espectador, ou catalisa o pensamento pelo desconcertante da sua proposta. Há uma responsabilidade nesta inscrição de obras e artistas num espaço e num tempo ou, como propõe Daniel Birnbaum, a exposição será uma unidade fundamental a partir da qual se possa pensar (e escrever) história, numa analogia com a linguagem, cuja compreensão exige mais do que as palavras isoladas. “São necessárias frases completas, jogos de linguagem, ou o que Wittgenstein chamaria ‘forms of life.’” [1] Por agora, ficaríamos com esta ideia (exigente, é certo) de exposições enquanto formas de vida, para com ela acompanharmos, atentos, o Espaço Mira. Alexandra Balona É arquitecta e doutoranda na European Graduated School. :::: Notas [1] Suzanne Cotter, Massimiliano Gioni, Okwui Enwezor, Connie Butler, Bob Nickas, Hans Ulrich Obrist, Daniel Birnbaum. Defining Contemporary Art – 25 years in 200 pivotal art works. London: Phaidon Press Limited, 2011, p. 457. :::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia] |