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REVISITAR OS REIS DE COSTA PINHEIRO NO MOMENTO EM QUE QUESTIONAMOS OS MONUMENTOS AOS HERÓIS NACIONAISBRUNO MARQUES2020-10-21
Todo o documento é mentira. [...] porque qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro - incluindo, e talvez sobretudo, os falsos - e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos.
Com um lúdico cortejo de retratos imaginários, concebidos entre 1964 e 1966 à distância do exílio pátrio, o artista confrontou a grandeza histórica de um Império outrora cantado por poetas com a imagem desanimadora de um país à época visto externamente como espaço serôdio e profundamente medíocre, resultado de uma ensimesmada ditadura há muito fora da hora internacional. Tendo sido em 1962 enclausurado pela PIDE em Caxias por oposição ao regime de Salazar [1], o ciclo mitográfico-poético que Os Reis iniciam, propiciou a Costa Pinheiro não só um necessário ajuste de contas com a memória da sua saudosa pátria, como abriu uma oportunidade a um necessário reajustamento da maneira como o próprio país lida com a sua história - suas dores e fantasmas - à luz dos múltiplos tempos do contemporâneo no qual não se pode deixar de dramatizar sentimentos complexos e contínuas ambivalências. Composto por desenhos, pinturas sobre papel, águas-fortes, serigrafias e óleos, este conjunto é fruto de uma longa investigação que invoca o aprofundamento de uma mitologia da História em estrita articulação com um pensamento crítico sobre a pintura que deliberadamente curto-circuita os pressupostos tradicionais da representação. Recusando reduzir-se a um mero reconhecimento referencial, enquanto retrato a imagem manifesta a sua resistência a qualquer tentação de verosimilhança ou de subordinação. No seu lugar, Costa Pinheiro dá-nos um intricado de signos e de correlações causadoras de estranheza provocadora de sensação de distanciação para com a realidade, como se fosse uma disfunção representativa. Afastando-se da estafante iconografia da estatuária comemorativa, o observador reconhece-se nesse processo de diferimento e dissemelhança. Movendo-se a contracorrente da retórica oficial, de modo que a procura da verdade já não actua pela repetição, mas antes pela diferença, ou seja, pela abertura e liberdade como possibilidade de revelação de um não-revelado, não propriamente sobre a história, mas antes sobre a natureza e função do mito. A dimensão negativa, crítica ou experimental da proposta que subjaz Os Reis assenta justamente na impossibilidade de, numa época pós-metafísica, se aceitar uma verdade estável, autoritária e prévia (cf. Vattimo 1987, 16-17; Goodman 1995, 60), para se passar a jogar agora na errância, na instabilidade, flutuação ou oscilação dos signos conotados com os entes históricos. Sendo um dos poucos, senão o único – como nos diz Bernardo Pinto de Almeida – artista plástico da segunda metade do século XX português, a ousar inscrever a dimensão da história portuguesa como “imaginário próprio e consequente” (Almeida 2001b), de maneira indireta, Costa Pinheiro questiona as próprias bases da História como ciência objetiva. Mas porque não totalmente isentas de referências históricas, estas figuras geram propositadamente ambiguidades e ambivalências. Enquanto caras da História, estas são agora protagonistas e objecto de um inquérito imaginário: uma revisão da imagem desses símbolos à luz de uma “visão” contrária e critica à ilustração oficial dos grandes feitos de um povo personificados nos chamados “heróis nacionais”. Em suma, e fazendo jus ao pensamento de Mircea Eliade sobre a mitogenia (Eliade 2005, 45) são retratos bordados sobre situações-limite míticas e figuras arquetípicas que acabam por transcender as suas determinações temporais e históricas. Assim, estes Reis nada mais são do que uma galeria de personagens lendárias, deslocadas e transformadas em alegorias de outra tradição e realidade. Talvez sem plena consciência, Costa Pinheiro volatiliza a História de Portugal e, no seu lugar, apresenta outra, puramente “imaginária”, mítica, que é a sua negação. Ou seja, com o referente em suspenso, cancelada a relação sujeito/objecto da representação clássica, perde-se a autoridade prévia de um modelo, em que a verdade da representação se reconhece. Não se trata de justificar a imagem por um D. Afonso Henriques, por um D. Dinis ou por uma D. Inês de Castro autênticos e verdadeiros, mas pelas imagens mentais que já se separaram destes e se tornaram domínio público. "O Fundador da Nação e eminente Conquistador territorial pela força da espada.". "Aquele que mandou plantar o Pinhal de Leiria". "A que foi coroada rainha depois de morta". Tal como o Fernando Pessoa da Mensagem, Costa Pinheiro narra a História de Portugal de uma forma simbólica e emblemática, desvalorizando a narração e a descrição, e revelando um carácter mais abstracto e interpretativo. Desse modo, a figura do monarca está presente apenas sob a forma de “símbolo puro” - porque arrancada da sua posição no espaço “real” e transplantada para uma relação meramente mental, mítica. O hieróglifo afasta-se do seu ponto de referência concreto - o rei em pessoa - para se transformar numa espécie de abstracção. Sob a égide de uma liberdade simultaneamente poética e plástica, Os Reis poderão ser vistos como uma inventiva desconstrução dos afivelados códigos que pautam a retórica oficial. Pois não nos mostra os Heróis da História de Portugal como estamos habituados: encimando um plinto, de semblante dignificante, bafejados pela eloquência do pathos heroico e revestidos por um aparato iconológico devidamente identificado. O pintor presenteia-nos antes meros Reis, Valetes e Damas, numa iconografia de cartas de jogar, em gosto infantil de as repetir, de as usar à vista de todos, de as proclamar ironicamente como esquema invulgarmente eleito para retratar os nossos “símbolos nacionais”. Insubordinando-se contra a homogeneidade inabalável da estatuária oficial [2], Costa Pinheiro converte assim a figura histórica do monarca em território de puro devaneio hermenêutico, para ser tomado como enigma dirigido ao espectador, onde os nexos e articulações referenciais aparecem invariavelmente subvertidos ao tornarem-se cifras pessoais que dão largas à “reinvenção libertária dos signos” (Marques 2008, 196-197).
Um facto festivo e outro bem triste justificam a estátua que a Câmara Municipal agora inaugurou na praça principal da cidade. Já defronte das suas muralhas já se perfilavam duas estátuas, de Diogo Cão (Canto da Maia) e do Infante D. Henrique (Leopoldo de Almeida), obra de série a primeira, obra de concurso para um dos gorados monumentos ao Infante, em Sagres, a segunda - ambas integradas no grande movimento de estatuária pública iniciado em 1928 com o Zarco de Francisco Franco, para o Funchal, e depois multiplicado por cidades e vilas do país em comemorações várias de estilo comum, numa pretendida ‘idade de ouro’ da escultura nacional. O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro situa-se fora de tal movimento; a bem dizer, é o primeiro monumento que ousa fazê-lo, dentro dos limites da figuração iconográfica (França 1973, 41).
Em meados de 1960 os ícones nacionais, difundidos por um modelo monumentalista de estatuária engendrado mais de 30 anos antes, estavam desgastados. Historicamente a estatuária oficial desactualizara-se com a reivindicação de uma modernidade que nunca soubera transportar consigo. Desse modo, ao assumirem a forma de “estátuas espalmadas em cartas de jogar” (Fiandeiro 1990), Os Reis respondem, em jeito de afronta, a uma tradição comemorativa de carácter histórico. Costa Pinheiro exorta a passagem dos atávicos códigos e imagens estereotipadas [3] que tipificam a produção pública oficial, presa às exigências e prescrições propagandistas, para a transbordância e humor do imaginário popular. Dessa forma, o pintor promove que o retrato surja sempre como linguagem viva e movida pela imaginação livre daqueles que a falam. Ao sacudir o signo, Costa Pinheiro desafia o simbólico no sentido em que a convenção em que este assentava vacila e se desvanece. O que interessa a Costa Pinheiro é verificar como um modo de representar se cristaliza, se torna espesso, se sobrecarrega de estereótipos, se fossiliza pela repetição até adquirir a consistência das coisas evidentes (“naturalizadas”). Com efeito, e em plena sintonia com os parâmetros da Nova-Figuração, para que os símbolos o sejam efectivamente é necessário que deixem primeiro de simbolizar, para que se tornem sensíveis, criaturas vivas, e não emblemas de museu. Com isto, o pintor abstrai os significados específicos de cada significante deixando-os leves, soltos, libertos para se dissolverem, e, assim, se tornarem quase “figuras puras” [4], des-simbolizando tudo o que remete para a uma cultura agarrada a insígnias e marcos de referência supostamente seguros. Instâncias aqui sinalizadas de modo lapidar pela jocosa perversão não só do carácter solene da estatuária monumentalista, como ainda da rigidez que caracteriza a heráldica. Não obstante a reverência aos principais preceitos formais das armas de estado – a limitada paleta cromática, a estilização extrema das figuras, a preferência por composições geométricas e a simplicidade geral do desenho -, Costa Pinheiro sabota-a nos seus pressupostos identitários e na sua eficácia comunicacional. Tal sabotagem consiste, essencialmente, na subversão do signo e da sintaxe, como se operasse uma guerrilha semântica ao modo como alguns dos nossos emblemas e “símbolos nacionais” têm sido durante séculos compreendidos, apropriados e difundidos pelos agentes do poder político ou pelos seus observadores, utentes, destinatários, glosadores. Concebidos “como retrato-heráldico” (Dias 2008, 389), também Costa Pinheiro subverte a leitura do brasão nacional. Mas se, no plano mais estritamente literário, Fernando Pessoa ainda estrutura os versos da Mensagem mediante um desenho preciso, quase geométrico do que para ele é o “Brasão Português” (Hipólito 2010, 14), Costa Pinheiro leva ainda mais longe o carácter “lúdico” que Adrien Roig (1993, 286) atribui ao poeta, fazendo da heráldica um espaço de liberdade radical. Mas enquanto nesse poema patriótico e esotérico que é a Mensagem, em forma de prece e lamento sobre o Quinto Império, Fernando Pessoa confere carácter de urgência à necessidade de realização do Ser da Pátria pela via de um “novo sebastianismo”, enquanto percursor da Nova-figuração que desponta do efervescente ambiente dos anos 1960, Costa Pinheiro leva a cabo uma desmitificação dos nossos “ícones nacionais” mediante uma sabotagem semiótica dos emblemas, insígnias e demais símbolos que os sustentam. O retrato de personalidades históricas não é obviamente novo. O que muda em relação à produção oficial coeva, posta ao serviço de um poder político autoritário e nacionalista, não foi nem a sociedade nem os mitos. O que muda sim é o modo de ler esses mesmos mitos. À maneira do livro de Aquilino Ribeiro, censurado pelo Estado Novo, sobre os Príncipes de Portugal com as suas grandezas e misérias (datado de 1953 e que numa reedição de 2008 Costa Pinheira viria a ilustrar), trata-se antes de fazer a anatomia dos mitos e lendas que cobriram algumas das mais emblemáticas figuras da realeza portuguesa. Aí figuraram não só o melhor, como é costume por razões de exacerbação nacionalista, mas também o pior da nossa História. Assim o pintor teve o cuidado de o dizer (Costa Pinheiro 1966). Foi sem dúvida com este intento que Costa Pinheiro iniciou o processo de meditação sobre Portugal e a portugalidade, que o acompanhará durante praticamente toda a vida. Atendendo ao seu papel de “cultor de mitos e produtor de ícones nacionais” (Cabral 2005, 35), podemos traçar em Costa Pinheiro uma trajectória autogenética que começa a sua gestação a partir de De uma Iconografia (1961), desembocando num período de maturação plástica e conceptual que se estabelece no ciclo Os Reis (1964-1966), e que continuará em moldes mais depurados em O Poeta Fernando Pessoa (1981) e n’Os Navegadores (2001). Toda esta vasta galeria iconográfica que se foi expandindo ao longo do tempo resulta, nas palavras de Bernardo Pinto de Almeida, “indispensável à autocompreensão do país sobre si mesmo”, quanto o terão sido aquelas que “se tentaram nas reflexões de Eduardo Lourenço e de Agostinho da Silva, nos seus ensaios sobre uma hipotética psicanálise mítica do destino português” (Almeida 2001). Neste sentido, não arriscaremos muito se dissermos que há em Costa Pinheiro, no momento em que ele se decide pelo exílio pátrio, um movimento de retorno às origens a fim de encontrar os sentidos escondidos e esquecidos nos mitos e nos símbolos. Nesse gesto, trata-se menos de uma arqueologia do mito do que a criação de uma nova mitologia. E para recriar o mito, o pintor teria primeiro que inventar uma iconografia nova que lhe desse expressão. A (re)constituição dos mitos dá-se, assim, inevitavelmente pela via da (re)constituição da figura, de um ícone. Porém, e tal como Fernando Rosa Dias viu, no caso particular do artista português, “o ícone é idealizado por experiência significante mantendo o referente como um elemento irrecuperável da história: ao presente só se reconstitui o ícone como mito” (Dias 2008, 390). Como Roland Barthes notou, todas as linguagens mais míticas, apresentam uma homogeneidade inabalável: tecido de hábitos, de repetições, de estereótipos, de cláusulas obrigatórias e de palavras-chaves, em que cada uma constitui um idiolecto, ou, mais exactamente, um sociolecto (cf. Barthes 1983; Coelho 1974). Considerando este enunciado, Costa Pinheiro propõe, ao invés, uma fórmula alternativa, mesmo marginal, de representação e interpretação dos mitos nacionais. O pintor faz coincidir a ressurreição da figura com o desígnio eminentemente pessoano da importância renovadora do mito ou do regresso da figura-mito, (re)criada na esfera do Império do Imaginário. Poderíamos dizer que, no seu caso, a figuração sofrera uma morte momentânea ou transitória com o momento do informalismo abstracto de que ele fora, em finais dos anos 1950, um dos mais consequentes praticantes portugueses. O pintor seguidamente entra num processo de ressurreição da figura, análogo ao processo alquímico, transfigurado em processo. Desse modo, mais do que representar o referente – o rei em-si-mesmo – trata-se de o produzir e de o criticar. Desse modo, já não é o referente que produz o sentido do significante, mas antes o significante (a figura) que produz o sentido do referente. É nesta inversão onde a potencialidade crítica (e política) da nova-figuração de Costa Pinheiro assenta, não só enquanto exploração de virtualidades, mas sobretudo como gesto auto-reflexivo, como consciência da imagem, em suma, como eficácia meta-figurativa ou como “meta-imagem” (cf. Dias 2008, 52). Se aceitarmos esta hipótese, poderemos sustentar que Os Reis, homenageando e, ao mesmo tempo, pervertendo a Mensagem de Pessoa, corporalizam uma mitificação do mito, e por isso são - usando a formulação de Roland Barthes no célebre livro As Mitologias (1957) - um mito artificial. Essa premissa pressupõe que o sujeito histórico, a sua pessoa, seja duplamente deformado. Ou seja, Costa Pinheiro caricatura a deformação que a mitificação da figura do rei fez ao sujeito histórico levando-a ao limite [5]. Na esteira destas determinações, podemos ensaiar o seguinte raciocínio: no caso em análise, o significante prévio (imagem de D. Sebastião) fora desviado do seu sentido (heroico). O que equivaleria a dizer que é na passagem da denotação (o sujeito histórico) para a conotação (o Desejado, o Encoberto, o Adormecido e todos os demais epítetos que o eternizaram) que assenta a deformação (a distorção ideológica) que gera o mito. Assim, Costa Pinheiro ao apropriar o mito, imprime uma deformação segunda (um D. Sebastião, com enormes pálpebras, que nunca regressou por ter sido um desmedido sonhador), e que tem como efeito desvelar e perverter a distorção primeira, sancionada pela ideologia oficial, nacionalista e saudosista. Em suma, contra a apropriação fascista dos símbolos nacionais, Costa Pinheiro contrapõe o que Barthes propôs à lógica capitalista: uma contra-apropriação. Lembremo-nos da revolucionária asserção do ensaísta francês: “A falar verdade, a melhor arma contra o mito é talvez a de, por sua vez, o mitificar, é produzir um mito artificial: e este mito reconstituído será uma verdadeira mitologia. Já que o mito rouba a linguagem, porque não roubar o mito?” (Barthes 1984, 203). Partir em pedaços o signo mítico, inscrevê-lo numa montagem crítica e depois fazer circular este mito artificial sob a etiqueta de “retrato de um monarca”, é direccioná-lo para uma finalidade eminentemente libertária. Antecipando as teses de Eduardo Lourenço [6] e de Boaventura Sousa Santos [7] – que complementando-se permitem diagnosticar, nos portugueses, uma ausência da sua realidade que se conjura no excesso mítico em qualquer discurso que sobre si mesmos foi sendo feito -, Costa Pinheiro emerge aqui como decisivo agente que permite renovar profundamente a imagem dos Portugueses sobre Portugal. Mas repensá-la em função das imagens e contra-imagens mais actuantes da nossa herança cultural, sobretudo de origem estético-literária, parece ser esse o propósito mais sério e fundamental do pintor. Tais imagens devem ser agora com Os Reis confrontadas, perspetivadas, acaso rebatidas e seriamente questionadas em função de um conhecimento mais aderente à causa viva da realidade nacional. Por essa razão, estas “figuras mortas” (tal como o autor as designou) estão longe de poder ser reduzidas a uma apologia patriótica de tipo nacionalista, messiânico e regenerador. São antes de tudo uma dupla tentativa de intervenção para a compreensão espectral dos caminhos misteriosos do imaginário popular, mapeando no espaço do destino português os seus sinais proféticos e os seus fulgores. Os Reis poderão assumir toda a sua positividade e toda a sua abertura à esperança, mas não deixam esquecer igualmente a sua negatividade e os seus bloqueios.
Bruno Marques
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[1] “A razão pela qual foi preso, prende-se com o facto de o seu nome figurar num telegrama enviado por um grupo de artistas que viviam em Paris ao Presidente da República, Almirante Américo Tomás, acusando de crime de Estado o assassinato do pintor Dias Coelho, em 1961” (Acciaiuoli 2020, 15, nota 3). Sobre este assunto, ver “Entrevista de Costa Pinheiro dada a António Rodrigues” (Costa Pinheiro 1987). [2] Ao assumirem a forma de “estátuas espalmadas em cartas de jogar” (Fiandeiro 1990), poderemos dizer que Os Reis ironizam o “classicismo austero” proposto por Francisco Franco no seu Monumento a Gonçalves Zarco (Funchal, 1927), de que Leopoldo de Almeida não se desviou, cumprindo e consolidando os princípios academizantes da estatuária oficial do Estado Novo, a “idade de ouro da escultura portuguesa” segundo António Ferro (Ferro 1949), o director do SPN/SNI. [3] “[...] não há discurso político que não seja repetitivo, que não se alimente de estereótipos” (Coelho 1974, 20). [4] Sobre o termo “figura pura”, Rui Mário Gonçalves refere que: “O conceito de figura pura teria interessado aos surrealistas, para além da inicial proposta de ‘modo interior’, feita por Breton. As pinturas de Kandinsky, Klee e Miró abrigaram novas possibilidades, transformando a figura em signo, ou seja, um automatismo psíquico puro cumprido no próprio momento de execução pictural. / A concentração na figura pura e no signo conviria em especial ao surrealismo, tal como a forma pura tinha sido essencial para o cubismo e para a abstracção geométrica e tal como a cor pura caracterizava o fauvismo em certos aspectos da abstracção geométrica” (Gonçalves 1986, 90-91). [5] Para que o possamos compreender melhor, valerá a pena aqui reter duas passagens: “A relação que une o conceito do mito ao sentido é essencialmente uma relação de deformação” (Barthes 1984, 192). “A deformação é evidentemente inerente às línguas de conotação: é porque a forma do mito é constituída por um sentido que o mito pode deformar” (Calvet 1996, 56). [6] "Que o português médio conhece mal a sua terra - é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de viver mais a sua existência do que compreendê-la. Descaso de consequências inumeráveis ou desprendimento sublime, herança contemplativa ou simples reflexo de uma urgência vital que nunca deixou muita margem para teoria, esse comportamento é o responsável pelo penoso e já antigo sentimento que no século XIX foi quase o lugar-comum dos seus mais ilustres, de que estamos ausentes da nossa própria realidade" (Lourenço 1982, 67-68). [7] Para Boaventura Sousa o excesso mítico de interpretação é o mecanismo de compensação do défice de realidade, típico de elites culturais restritas, fechadas (e marginalizadas) no brilho das suas ideias (Santos 1995, 49). Mais adiante, na p. 57, o autor refere: "É importante, acima de tudo, transformar esse conhecimento num novo senso comum sobre os portugueses, menos mitificador mas mais proporcionado, menos celebratório mas mais eficaz, menos glorioso mas mais emancipador".
ACCIAIUOLI, Margarida. 2020. “Os Reis de Costa Pinheiro: imagens e fantasmas de um exílio”, in Reis, Damas e Valetes - O Imaginário de Costa Pinheiro (cat. da exp.), Lisboa: São Roque – Antiguidades e Galeria de Arte, 2020, pp. 15-19.
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Texto baseado num capítulo do livro Cartas Fora do Baralho. Retratos imaginados de Costa Pinheiro (Caleidoscópio, 2020) do autor. Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da celebração do contrato-programa previsto nos números 4, 5 e 6 do art. 23.º do D.L. n.º 57/2016, de 29 de agosto, alterado pela Lei n.º 57/2017, de 19 de julho.
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