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MANUEL BAPTISTA NO PAÍS DA CORPEDRO CABRAL SANTO2024-03-04
Abordar, e de forma esfusiante quanto baste, a complexa e deslumbrante obra do artista plástico Manuel Baptista (Faro, 1936) acomete-nos, acima de tudo, como se se tratasse de uma profunda – diríamos primitiva – arremetida viral, a plena e deslizante frequência persistente de um poderoso “vírus”, que tudo “inunda”. Inúmeras razões servem de suporte a esta afirmação, porquanto a vida e obra deste artista têm-se vindo, cada vez mais, a diluir, na infinidade de uma crescente hipersensibilidade – facto que se torna percetível em todas as dimensões expressivas do seu trabalho, e em particular na Pintura e no Desenho. Manuel Baptista é possuidor de um pensamento complexo, complexo na sua essência. Desde logo, é enquanto meditação que esta reflexão manifesta a sua presença, nas suas construções e abordagens telúricas e, em particular, na própria produção das suas imagens artísticas, facto que se traduz num estranho sentimento: estas parecem ser coisificadas a partir de “ferramentas” que nos “empurram” para o insólito, o indizível, ou ainda o esmero. Imagens invulgares que patenteiam estar “abotoadas” de forma veemente aos percursos de vida do artista, com fortes implicações na prontidão e eficácia aplicada à realização do seu trabalho artístico, envolto de um pensamento singular. Acentuando, deste modo, o cariz pessoal e representativo, transformando-o implacavelmente numa estranha aventura construída pelo desbravar do desconhecido, ou mesmo por aquilo que habitualmente designamos por hesitações, traumas, etc. E tudo, mas tudo, atravessado por uma enorme dimensão amorosa. Manuel Baptista está, sem dúvida, enamorado pelo seu trabalho. Em termos formais, referirmo-nos a poderosas malhas espalhadas em espaços brancos ou pré-coloridos, papeis, telas, madeiras, que da pintura ao desenho nos cruzam ferozmente o olhar. Malhas que sugerem enredos, labirintos, puzzles a preto e branco, ou mesmo pontuados com cores cinéreas, capazes de se expressarem em espaços irradiantes, topográficos, selvagens, declarados através de finos e grossos traços, onde o informe tem lugar. Espaços cuja lógica expressiva é comum à diversidade plástica exibida, que se constitui, reconfigura, mescla, extrorsa, de forma permanente, relegando-nos, assim, para um quadrante, uma zona euclidiana de puras harmonias e equilíbrios, formais, cromáticos e conceptuais. A pintura e o desenho, como dissemos, têm coabitado desde sempre a plenitude do trabalho do artista. Neste deambular, temos de ser corajosos, mormente em enfrentar dois sentimentos, nem sempre consensuais, que aparentemente emergem em nosso redor: por um lado, encontramos, através das temáticas abordadas, questões que se comportam como se fossem “próprias”, inteligíveis, do foro teológico – aspetos que nos impelem ao domínio da pura espiritualidade. Mas, por outro, estamos na presença de um observador da vida quotidiana, um praticante do Just Looking [1], que gosta de “olhar” e “observar”, com aprazimento, deleite e temperança. O artista parece viver, invariavelmente, entre estas duas dimensões, que operam sob a influência de pensamentos contraditórios, de procura incessante em optar por uma ou por outra, e também num profícuo, e cuidado, envolvimento em questões que estão diretamente relacionadas com a praxis artística e científica. Referimo-nos, em particular, à ótica, e sobretudo ao tratamento da dimensão da Cor, que o autor trabalha exaustivamente, embora esta vereda tenha sido muitas vezes ignorada na imensa e abundante literatura realizada sobre a sua obra. Este domínio disponibiliza-se objetivamente nas imagens do artista, habitadas por traços fortes, demarcados e incisivos, manchas de cor que deambulam a partir do preto e branco, e estimulantes explosões cromáticas. Na observação in loco do seu trabalho, temos imediata consciência de uma grande desenvoltura plasmada numa multiplicidade de metodologias. Por exemplo, aquelas que o autor emprega na(s) prática(s) do Desenho – com especial incidência para uma “secreta” vertente clássica, que se verifica, de forma evidente, no aperfeiçoamento de trabalhos onde emprega o carvão, ou ainda na “anatomia” das suas diversas pinturas coloridas. É interessante perceber como Manuel Baptista despende de forma invulgar os procedimentos relativos à perspetiva, que também podemos apontar como alvo apurado do seu métier, esboçando imensas cenas nas quais nos surge a teoria perspética – disfarçada, é certo, através de uma relação muito especial com o fator Cor. Na verdade, no entanto, a perspetiva em Manuel Baptista não se prende com a procura de uma profundidade espacial, em termos puramente clássicos, mas, antes, de uma singular “profundidade cromática”. Neste contexto, a Cor assume as despesas da casa, transformando-se na colossal cambota que empurra a “locomotiva” expressiva do artista, produzindo deste modo um enorme caudal emocional que o invade, e a nós, por todos os poros. Circunstância que urge, portanto, abordar: a cor tem o poder de nos toldar as emoções – como relatava Vincent Van Gogh numa das suas inúmeras cartas ao irmão Theo – e parece ser de um modo igualmente radical que Manuel Baptista interpreta o problema cromático. De resto, a problemática cromática está relacionada com toda a diligencia cultural e científica que se desenvolve insofismavelmente desde o modernismo até à atualidade. Pensamos, por exemplo, em autores como Pissarro (1830-1903) ou, um pouco antes, Corot (1796-1875), que também comungavam desta atitude essencial em relação ao uso da Cor: tornar a Cor invisível é, por outro lado, acentuá-la do ponto de vista emocional. O campo da Pintura é, em Manuel Baptista, difícil de separar do desenho. Tentando, no entanto, esse esforço, verificamos tendências reveladoras de dois sintomas: em primeiro, e como já afirmámos, a aplicação dos pressupostos científicos – as pinturas saturadas de cores primárias, o azul e o vermelho – e, em segundo, a presença de uma “paleta invisível”, assumindo uma carga “lírica”, poética e emocional, com as cores a surgirem essencialmente a partir da mistura e combinação das cores primárias, verdes e laranjas. Desde pinturas com uso cromático complexo, passando pela fase auspiciosa das monocromias, podemos dizer que a sua paleta é de facto, um autêntico tratado cromático, onde o autor consegue tirar partido das cores complementares, dos seus efeitos psicológicos, bem como dos contrastes simultâneos. Neste último caso, a sábia utilização do contraste simultâneo, Manel Baptista desenvolve uma técnica cuja atuação permite utilizar cores saturadas, do ponto de vista da aplicação de pigmentos puros, provocando deste modo um efeito sequencial, que resulta de uma interação luminosa entre a forma como posiciona as cores primárias face às secundárias. É interessante esta deriva provocada pelo autor, que nos recorda sem dúvida outros artistas, outros tempos. Por exemplo, quando atentamos a personalidades tão diversas como é o caso de Eugène Delacroix (1798-1863), William Turner (1775-1851) ou mesmo Claude Monet (1840-1926), verificamos um denominador comum: todos eles pintavam as sombras, pois a perceção de que como o cérebro perceciona as cores começava a impor-se como um dado científico cuja força não mais deixaria de ser tida em conta. É também o caso de Baptista, ao assumir as sombras como conteúdo e não como complemento – em muitos casos a sombra é projetada pela sombra obtida pela iluminação. Esta vivência traduz-se, afincadamente, nas possibilidades do uso da cor, procurando, desse modo, uma utilização diferente para esta, no campo pictórico. Esquivando-se à cor, à cor física, mas também à cor “espiritual”. E acentuando, ao invés, a cor aplicada em termos puramente plásticos, de acordo com a manipulação uma realidade plástica. Assim, Manuel Baptista distancia-se, a pouco e pouco, das cores que são obliteradas pela realidade, pelos objetos que fazem parte do mundo, gerando, brilhantemente, espaços cromáticos autónomos, que ditam as suas próprias leis. Estas questões conduzem-nos, inevitavelmente, a questionar a relação entre o seu trabalho e toda a interrogação da cor que marca o desenvolvimento da modernidade, através de múltiplos campos disciplinares, não só científicos – casos da Física, da Química, da Fisiologia, da Psicologia – mas também estéticos, artísticos, filosóficos. Para nos orientarmos, nesse contexto de grande riqueza, podemos estabelecer desde a extraordinária investigação de Goethe sobre a cor, culminando na publicação, em 1810, de Zur Farbenlehre (Teoria da Cor), até à atualidade. É a partir desta invulgar plataforma histórica que podemos aproximar-nos da obra de Manuel Baptista, e, em particular, do seu interesse pelos fenómenos que envolvem a persistência das imagens e também o(s) contraste(s) simultâneo(s) – fenómenos que constituem, de algum modo, o “centro” do interesse moderno pela cor. Veja-se como esta temática está presente na grande obra de George Seurat (1851-1891) Un Dimanche après-midi à l’île de la Grande Jatte (1886) [2]. A cena mostra-nos um importante lugar de encontro da burguesia parisiense do final do século XIX, um parque nas margens do Sena. No entanto, os personagens surgem inseridos no que aparenta ser uma paisagem artificial. Seurat recorre, é certo, à perspetiva dita tradicional, mas o encanto não passa por aí, mas pela forma como emprega os contrastes lumínicos e cromáticos, desestabilizando formalmente toda a pintura. O interesse que daqui advém confere à pintura – tal como em Manuel Baptista – um lugar “giratório”, que se desenvolve em torno do contraste das cores [3] – pequenos pontos de cores puras – entre si. A mistura entre as cores passa aqui a ser produzida pelo “olho” – de acordo com os princípios definidos por Chevreul – e não pela mistura efetiva dos pigmentos. Seurat pretendia realizar um trabalho cromático que garantisse, em termos de efeito, luz e cor, que se traduzia em “harmonias” testadas pelo espetador. Como resultado, obtemos uma pintura muito saturada do ponto de vista cromático, mas que se traduz, nos olhos do espetador, numa grande harmonia de luz e cor, que acompanha uma verdadeira “deflagração” da retina, cujo efeito é hipnotizante. Este efeito apresenta-se, de uma outra forma, no trabalho de Manuel Baptista. É a partir de uma compreensão da forma como funciona o elemento cor, combinado e recombinado com outras estruturas formais, que o autor produz a sua obra, levando esta problemática a um outro patamar, fruto da combinação de motivos oriundos da sua observação do dia-a-dia, transformados em elementos gráficos que flutuam, evoluem, num deslumbrante oceano híper-colorido, por vezes, esbatido, pardento, por outras. A cor, sempre a cor, a delimitar os acontecimentos representados ou, melhor, a dotá-los de permanente capacidade de reconfiguração, como se se tratasse de uma “obsessão”, uma boa obsessão que é parte vital e determinante da sua postura em torno do conhecimento da cor e do seu uso. Como já afirmámos, o pensamento de Manuel Baptista é complexo, e assume o carácter de uma meditação. E é através dessa dimensão que o seu trabalho se liga às experiências realizadas, e descritas, por Goethe. As reflexões de Goethe sobre a Cor não se constituem, como é o caso do trabalho de Chevreul, enquanto teoria positiva e sistemática – como Ciência, pronta a assumir uma dimensão técnica – mas, antes, como algo mais próximo de uma fenomenologia. Ou, precisamente, como uma meditação interminável. Do que se trata aí é de uma exploração dos limites dos fenómenos, e das práticas, nas suas manifestações mesmas. Assim, a obra de Manuel Baptista, na sua forte ligação à problemática da Cor, sem deixar de ter em conta toda a dimensão técnica e científica potenciada (não só mas também a partir) pelas descobertas de Chevreul, está profundamente enquadrada por uma outra atitude. E essa atitude é a de fazer dos fenómenos, das técnicas, da práxis, e do próprio olhar como prática e técnica, pretextos para uma meditação. Meditação que, na sua complexidade, na sua concentração, na sua profundidade, visa sempre, num trabalho infinito de reconfiguração, olhares e fazeres outros. E é isto que nos parece produzir o intrigante fascínio do trabalho de Manuel Baptista.
[2023, Pedro Cabral Santo. Texto original escrito antes do falecimento do artista.]
[1] Jonathan Crary chama-nos a atenção do influxo retiniano que se disponibilizou nas ditas sociedades ocidentais através das designadas “culturas óticas” muito ligadas ao prazer sinestésico, ao entretenimento e com grande expansão em finais do séc. XIX. Ferramentas que ajudaram a reconfigurar, em termos formais (sobretudo visuais), a forma como passamos a administrar o nosso olhar face ao quotidiano, e consequente atenção ou desatenção face ao mesmo.
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