|
PARTE 1: JOTA MOMBAÇA - “O MEU TRABALHO FOI VIRANDO PARA MIM ESSE LUGAR EM QUE EU CONSIGO EXPERIMENTAR OUTRAS FORMAS DE SENTIRâ€FILIPA BOSSUET COM JOTA MOMBAÇA2025-03-28![]()
Esta é a primeira parte de uma conversa entre Filipa Bossuet e a artista interdisciplinar Jota Mombaça. A PARTE 2 pode ser lida aqui.
Um terramoto
Como estás Jota Mombaça? Essa talvez seja das perguntas mais complicadas, difíceis de responder [risos]. Eu estou bem agora. A prática tem sido uma coisa que me mantém firme. Tenho me apegado muito à rotina, à prática para me manter bem. É claro que nós estamos num momento tão conturbado e existem tantas imagens abissais à nossa volta, tantas narrativas muito brutais, tantas situações limites em que o mundo está colocando a gente, não que o mundo em algum momento tenha sido gentil connosco, mas nós estamos vivendo um momento particularmente explícito. A prática tem sido um elemento que me sustenta energeticamente, espiritualmente, por isso, eu consigo dizer que estou bem. Estou conseguindo sair de casa, vir para o estúdio, me manter firme nisso, isso tem sido uma coisa boa. Acho que essa é a minha forma mais honesta de responder.
Como se elaborou o processo de te compreenderes artista e, daí em diante, como viveste tudo isso profissionalmente? Vejo como dois momentos diferentes, porque eu sinto que desde muito nova sempre tive em mim uma dimensão de sentir que há algo a dizer e que me cabia fazer, mas ao mesmo tempo, sempre houve muitas tensões em torno da minha expressividade. Não tenho formação artística, mas eu tenho formação, sou cientista social. Comecei meio pela palavra. Quando eu estava na universidade, no Brasil, na minha cidade [Natal, Rio Grande do Norte] houve um momento em que a minha expressão tomava duas formas - a escrita e a performance, são duas formas muito acessíveis de praticar arte, digamos assim, porque você só precisa de um papel e de uma caneta e a performance só precisa do meu corpo e da minha presença. Foi aí que eu comecei a experimentar mais e entendi que para mim não bastava só escrever ou só articular as coisas no campo discursivo. Eu precisava encontrar uma forma de fazer esse discurso ter um outro corpo, ter uma outra carne, fui percebendo que eu era artista, que eu queria me dedicar a um modo de expressão que passa pela arte. Depois o que é a possibilidade de fazer isso profissionalmente não aconteceu de imediato, na verdade, foi me pegando de surpresa. Eu comecei a ser vista como artista do ponto de vista profissional antes de eu sentir que eu conseguia de facto ser. Eu entendo que os meus primeiros cinco, seis anos de carreira - tenho um componente do meu livro Não nos vão matar agora que é muito resposta a isso - me dediquei muito a entender o que é o sistema de arte, como ele opera e como dentro dele a gente consegue ou não ser reconhecida como artista. Eu tenho que saber alguma coisa? Eu tenho que conhecer as pessoas? Entrei numa coisa de pensar criticamente e também era um momento - 2014, 2015, 2016 - em que a cena brasileira estava prestes a se tornar no que ela é agora, mas num momento de transição. Os espaços de arte ainda eram maioritariamente formados pelas mesmas pessoas - as elites, pessoas que vinham de classes sociais mais abastadas, na sua maioria brancas. Essa era um pouco a realidade da cena artística. Esse trabalho de olhar para o sistema de arte, entender o que estava acontecendo e como operava, virou muito um trabalho de confrontar, então eu sinto que nos primeiros anos da minha prática, muito mais do que conseguir sentar com a minha prática e fazer o meu trabalho acontecer, eu estava dividida entre ir fazendo o meu trabalho, mas também fazer o trabalho de entender o sistema no qual eu estava tentando entrar - de que forma esse sistema se apropriava, que tipo de armadilha gerava. Fui tentando fazer isso e escrevendo sobre isso como quem também tentava criar ferramentas coletivas para esse trabalho. Eu sinto que eu comecei a me profissionalizar como artista antes de conseguir, de facto, me dedicar à minha prática artística - que é um lugar que eu fui produzindo depois. No começo eu ainda estava muito dividida entre esses dois trabalhos - as questões artísticas, formais e energéticas que eu estava buscando com o meu trabalho e o que era entender o sistema de profissionalização. No meu livro, tem vários textos que se dedicam a olhar criticamente o sistema de arte. Esse trabalho foi muito importante para mim porque me deu muitas ferramentas e, em alguma medida, criou ferramentas coletivas, mas também, foi algo que eu tive de deixar de fazer para conseguir me dedicar à minha prática. Isso até é meio um clichê mas é aquela frase: “quem critica não faz”, no sentido de que, criticar é fazer alguma coisa, mas se eu começo a rabiscar alguma coisa, pintar uma tela, fazer uma cerâmica ou pensar num projeto e a minha subjetividade está muito afiada na crítica, eu não consigo avançar. Em 2020, 2021, eu já tinha uma existência profissional, mas foi um momento em que eu decidi parar de escrever por um tempo e tentar me relacionar com a minha prática fora dessa luz crítica ao qual me dediquei nos últimos anos, aí foi meio que uma reviravolta, tanto nos termos da minha profissionalização quanto no auto-reconhecimento como artista. Lembro-me que vivi uma crise muito grande, na pandemia, estava tudo caindo aos pedaços em termos de projetos, era uma crise geral. Comecei a me perguntar: “Será que eu mereço esse espaço que eu estou acessando” entrei nessas crises de autovalor. A gente cai às vezes. Quando eu saí da crise eu entendi que eu queria que cada trabalho meu fosse a resposta dessa questão. Eu queria me dedicar a cada trabalho, a cada projeto, a cada operação, tentando encontrar nele o sentido do que eu estava fazendo, o sentido da minha vida.
A arte tem sido uma ferramenta de observação do mundo, não só em questões profissionais, mas também enquanto meio que acompanha o crescimento noutras dimensões da vida, o que permite a possibilidade de a entendermos como algo que se aplica para além da nossa compreensão. Como entendes isso? É muito interessante o que falaste agora porque de facto, explica muito dos processos internos em torno da minha prática. Nos primeiros quatro, cinco anos da minha carreira, quando eu estava tão dedicada em entender o sistema por um viés crítico - eu continuo achando um trabalho importante - era como se pensar sobre violência, expropriação, modos como os sistemas funcionam, dinâmicas de valor dentro do sistema de arte, operações políticas que definem quem entra e quem não entra, todas essas dimensões que a gente precisa constantemente confrontar porque o sistema de arte muito facilmente retorna à sua matriz sistémica que é a supremacia branca, o eurocentrismo, o fundamentalismo cisgénero, etc., me mantinha presa a um materialismo sem material. É um materialismo no sentido em que estou pensando em relações materiais de poder, como as coisas são distribuídas, mas não tem uma relação com um material como tinta, barro, que por si só, já desloca o nosso lugar de pensamento. Isso aconteceu quando comecei a estudar e a praticar cerâmica. Eu começo a mexer no barro, tem uma hora que eu não preciso necessariamente pensar para continuar a fazer, o que não significa que aquela operação é uma operação não intelectual. Tem alguma coisa que vai sendo mobilizada na relação do corpo com a matéria que vai ativar um pensamento ao qual, muitas vezes, eu não consigo chegar por um viés lógico como eu tentava fazer quando eu estava focada e obcecada com a crítica, que é um processo assim: “eu penso isso, logo eu penso essa outra coisa”. Com a prática material existem momentos em que eu não sei o que eu estou pensando, mas aí a própria relação com o material, com a forma, com a coisa que está vindo, ela me dá. No primeiro projeto que fiz com cerâmica - hoje em dia detesto visualmente - eu estava pensando sobre os meus dentes porque na minha carreira perdi cinco dentes seguidos. Tenho sempre histórias muito mirabolantes de como foi perder esses dentes. Os dentes quebravam e eu tinha que arrancar, tenho toda uma questão com a minha dentição que foi acompanhando o meu processo, então, na medida que ia ganhando espaço profissional, os meus dentes iam quebrando porque tinha que me dedicar completamente ao que estava fazendo e não me conseguia dedicar em nenhuma outra coisa, em nenhuma dimensão da minha saúde, da minha existência. Antes de começar o projeto ligava as coisas conceptualmente, as questões em torno da dentição têm um componente de classe muito forte, pensava nessas razões. Tinha uma coisa de estar mexendo no barro e parar de pensar. Estar mexendo no barro ouvindo uma música e daqui a pouco um choro me pegar e começar a chorar. Eu não via aquilo vindo, o meu pensamento não me preparou para aquilo. Nesse choro eu entendi sobre a questão que eu estava trabalhando, comecei a me apaixonar por isso, a me apaixonar por esse modo de quando a gente não está presa numa lógica de pensamento, pensação, de overthinking, e conseguimos nos surpreender com as elaborações que fazemos. Isso é uma coisa que eu comecei a ficar muito interessada na prática material, entendi que de alguma forma desenvolvia mais a minha espiritualidade, o meu trabalho, a relação com as minhas emoções por meio dessa outra prática material que era diferente das análises materialistas que eu estava fazendo. O meu trabalho foi virando menos analítico, menos o trabalho de alguém que está entendendo tudo - que era uma imagem que tentava passar muito quando estava no Brasil - e, mais, o processo de quem está dentro da confusão, do mistério de existir. Para mim tem que ver também com uma forma de me trabalhar emocionalmente, acho que hoje em dia me entendo muito menos, ou pelo menos entendo muito menos o que está ao meu redor, mas ao mesmo tempo me sinto muito mais preparada para sustentar o meu corpo, sustentar as minhas emoções de outro jeito. O meu trabalho foi virando para mim essa casa, esse lugar em que eu consigo experimentar outras formas de sentir.
Terra, tecido de algodão, metal, grafite, tinta à óleo, barro. Eu acho que uma das maiores lições do meu trabalho ao longo dos últimos anos, tem justamente que ver com a dinâmica do controle. Eu estava no meio daquela crise que mencionei anteriormente, mas que na verdade era uma crise de quase como se as minhas fantasias de controle se estivessem craquelando, como se estivessem rachando e se partindo. De novo, o trabalho da crítica implica uma dinâmica de controle muito forte. Tentar controlar as coisas para antecipar. O pensamento dá a impressão de que se consegue ir muito mais longe do que o próprio corpo, de facto, consegue ir. Isso cria a impressão de que se tem muito mais controle das coisas do que, de facto, se tem. O meu trabalho foi me ensinando a relação com os materiais, por exemplo, se trabalho com barro, argila, no processo de produção de cerâmicas, eu posso fazer uma cerâmica de dois metros de altura. Se eu tentar fazer uma peça de cerâmica com dois metros de altura em um dia, ela vai desabar porque eu preciso ir secando a base para continuar a crescer. O material me diz: “você pode tentar seguir só o seu tempo, mas eu, o material, vou resistir a isso”. O material te devolve ao teu lugar, te ensina: “aqui você não controla, você não está sozinha nesse processo. Ou você negocia comigo ou você trabalha comigo, ou você se deixa controlar um pouco por mim, se deixa possuir por mim ou o seu trabalho não vem”. Você coloca a peça no forno, que pode explodir se você não tiver dado tempo para ela secar. Todos esses elementos, por exemplo, trabalhando com barro, são elementos que, de alguma forma, desafiam essa tendência de uma subjetividade humana de tentar controlar as coisas. Trabalho muito afundando tecidos em diferentes corpos de água. Os tecidos conseguem ter uma experiência que o meu corpo orgânico no estado de vida que se encontra, não consegue. Eu não consigo passar quatro a cinco semanas debaixo de água. Isso para mim já me coloca numa relação de reverência com esse material, porque o que eu estou pedindo a ele é uma coisa que eu mesma não consigo. Se eu coloco o tecido debaixo de água, durante quatro a cinco semanas, não tenho como controlar o que vai acontecer porque o meu corpo não acessa aquela experiência. Muitas vezes faço isso para estudar um corpo de água: faço isso no rio Tejo, em Lisboa, tenho uma resposta, faço isso na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, tenho outra resposta, faço no Loire, em França, eu tenho outra resposta, porque aqueles rios, esses corpos de água têm outras histórias. As histórias deles vão interagir com o meu processo de uma maneira que eu também não posso controlar, porque não consigo dar conta de tudo isso. São aprendizados muito recentes que a minha prática vai me dando porque ainda tem uma parte de mim que tenta seguir um projeto, uma timeline. A primeira exposição que fiz em torno desses materiais afundados foi em São Francisco. Era suposto eu ir, mas não tinha o visto estadunidense - o meu visto foi negado porque não consegui comprovar que não era uma imigrante em potencial. Eu sou imigrante, é difícil provar que não sou imigrante, então não consegui ir. Tive que trabalhar meio à distância com a equipe que tinha lá ligada à instituição, para afundar e recuperar os tecidos. Um dos tecidos que afundei, quando era suposto ser recuperado, teve uma super maré que fez com que o lugar onde nós o tínhamos deixado ficasse completamente inacessível. A gente não podia chegar lá com segurança. Tive que conversar com a instituição que não tínhamos como lutar contra a maré, teríamos que esperar. A abertura da exposição estava marcada e tudo mais. Isso me pegou muito forte porque na época também não estava conseguindo entrar nos Estados Unidos e quando começámos a montar a exposição à distância, na época fazia uma residência na Holanda, trabalhava de madrugada aqui na Europa para poder me conectar com o horário de lá. Foi um projeto insano de montar e quando eu vi essas esculturas, tinham um esqueleto de metal e em cima do metal os tecidos se montavam. Desse tecido que não conseguimos recuperar, eu decidi expor só a estrutura de metal até a maré ceder e a gente conseguir acessar o tecido. Quando eu vi o metal nu, eu entrei numa crise, passei dois dias chorando. Primeiro eu pensei: “o trabalho está muito ruim, essa exposição vai ser um desastre”. Você volta para essas inseguranças bobas, mas que são muito presentes. Quando eu vi o metal nu sem o tecido porque não podia ser recuperado, eu entendi que o que eu estava sofrendo não era o medo do trabalho não ser bom, eu estava sofrendo porque a ausência daquele tecido me fez sentir a dor da minha ausência naquele contexto - que passava por não ter o meu visto aceite, por não poder me mover, por não ter conseguido provar que eu não emigraria para os Estados Unidos, que é uma coisa que eu tenho zero vontade de fazer. Esse processo para mim foi muito marcante. Não é que eu ache que a maré queria me dizer alguma coisa, mas eu acho que, de alguma forma, o facto da maré subir me permitiu chorar uma coisa que eu estava engolindo. Eu acho que isso é um momento muito bonito em que, diante de uma situação da qual você não tem controle nenhum, você sente uma fagulha de alinhamento. Você sente um momento em que aquilo que você não consegue controlar tem algo a te dizer, tem algo a te mostrar. Valorizo muito os pequenos momentos em que a minha prática me mostra algo que eu precisava saber, mas que eu não conseguiria aprender se não fosse me deixando viver. Aprender modos de abandonar as fantasias de controle, de me manter atenta às coisas. Manter atenção para que consiga perceber os momentos em que as coisas se alinham para mostrar alguma coisa. Na minha prática, que tem um componente muito forte de indefinição, eu não me vejo como mestra de nada. Eu não domino nenhuma técnica. Eu não domino quase nada na minha prática, ela é mais esse trabalho de mediação, estar atenta, aberta para que as coisas me surpreendam e eu consiga me adaptar a elas. São coisas que eu fui aprendendo. Quando comecei esse trabalho de afundar, eu não estava mais escrevendo, mas aí comecei a escrever poesia e essa poesia foi me dando umas chaves muito interessantes, por exemplo, tinha começado a fazer terapia hormonal da minha transição de género, a não a muito tempo de quando comecei a afundar as coisas. Uma coisa que aconteceu quando comecei a transacionar hormonalmente, foi que eu comecei a chorar muito de uma outra forma que o meu corpo não acessava antes. Antigamente uma coisa acontecia, eu era magoada por alguma situação, eu engolia o choro, inclusive dizia que nos primeiros anos da minha carreira de artista eu aprendi sobre um bolsão atrás dos olhos, onde eu guardava as minhas lágrimas até poder soltá-las porque eu vivia situações muito esdrúxulas que me faziam querer chorar absurdamente, mas eu conseguia sustentar, segurar, não chorar. Quando eu comecei a me hormonizar isso parou de acontecer, se a situação me magoava um pouquinho, o choro vinha. Como eu não estava acostumada com aquilo, o meu pensamento me levava para um lugar: “será que esse caminho que eu estou seguindo é seguro? será que eu estou ficando mais deprimida?”. Houve um dia em que eu estava indo embora da minha cidade lá no Brasil [Natal, Rio Grande do Norte] e veio um choro e eu estava escrevendo um poema que tinha que ver com os afundamentos e ele terminava com a frase Chorar é distinto de humano. Possessão elemental. Essa ideia de que o elemento possui a gente. Isso me deu uma chave, que foi muito bonita, de que nem sempre o meu choro é resultado de uma emoção que está acontecendo só em mim, às vezes eu estou chorando porque estou sendo possuída pela água. A água está chorando através de mim. Sou eu, vetor de algum processo. Às vezes a gente foge da tristeza, tenta não ser triste, mas a ideia de que a água me possui é uma ideia de que eu mais facilmente conseguia me entregar. Isso foi uma chave que o processo de afundar, a existência do poema meio que me deu e que tem que ver com as lições que a gente aprende pela surpresa, pelo mistério das coisas. Hoje me sinto muito mais conectada, atenta ao mistério do que me sentia antes.
No teu livro Não vão nos matar agora referes a ansiedade enquanto intuição, a “gagueira enquanto política de enunciação”. É uma forma de talvez se conseguir viver perante uma realidade social que não nos quer ver vivas, que nos quer mortas. Acho que de uma forma potencialmente distinta do momento em que esses textos foram articulados, sim. Eu continuo a ver uma relação muito direta entre a ansiedade e a intuição, eu continuo a ver um potencial muito contundente no domínio da quebra, da ruptura. Do ponto onde a realidade social, de alguma forma, racha, continua a existir para mim como um elemento muito concreto de percepção. Sinto que é distinto talvez, porque consigo perceber - e, na realidade, já está no livro -, essa ideia de que na verdade a ansiedade tem uma ligação com a intuição mas, é também o modo como a realidade social captura a intuição. No caso, o fenómeno da ansiedade produzida não só como categoria patológica, mas também como efeito social. A gente vive numa sociedade indutora de ansiedade - isso é um dos componentes da realidade social. O modo como a sociedade em que a gente vive induz a ansiedade, de alguma forma, tem que ver com o movimento de controle ou de uma tentativa de limitar o potencial intuitivo - a nossa relação com a possibilidade de imaginar os impossíveis. Nesse ponto é que a quebra volta porque desarticula o projeto da sociedade. É quase como se esse poder social de limitação da nossa experiência, da nossa imaginação, deixe de existir por um segundo nesse momento de estilhaçamento. A gente não sabe o que vai acontecer e é muito perigoso, muito tenso, mas é também um momento em que alguma coisa se solta e nesse alguma coisa se soltar, a intuição, os movimentos caminham por um outro lugar. Sinto que isso é uma dimensão. Eu não acho que o texto faça isso mas, às vezes, quando terminava de escrever e publiquei, me deu um medo de que o texto romantizasse a ansiedade. A nossa intuição não precisa da ansiedade. A ansiedade é um mecanismo, de alguma forma, produzido pela sociedade para fazer com que a nossa intuição não seja experienciada na sua possibilidade mais libertadora. A ansiedade como eu a experiencio, tem um componente que carrega consigo uma negatividade muito densa, antecipa o risco, antecipa o perigo, antecipa o que não vai dar certo, antecipa a crise. Acho que naquele tempo eu, de alguma forma, ainda pressentia que precisava muito disso para conseguir sobreviver. Eu precisava de ser capaz de antecipar a crise. A minha fantasia naquele período - nos meus vinte e poucos anos - era ser capaz de antecipar a violência para conseguir fazer algum tipo de gesto que me protegesse dela, que me ajudasse a esquivar dela. Eu sinto que esse movimento ansioso me mantinha constantemente conectada a esse sentimento. Eu tinha que estar todo o tempo conectada à violência, à crise. Isso territorializa a intuição num lugar cativo, um lugar que não permite a gente imaginar todas as coisas potenciais que podemos imaginar. Eu sinto que tem um potencial na intuição, imaginação que, por vezes, é capturado pela ansiedade. A ansiedade vai lá e meio que coloniza isso e não permite que esses potenciais se movimentem para outros campos, outras possibilidades. Isso é algo que eu consigo perceber hoje, mas tem que ver com a minha própria caminhada enquanto pessoa. Foi entendendo de que modo eu preciso, às vezes, neutralizar os efeitos da ansiedade para conseguir respirar, imaginar uma possibilidade. Acionar a minha intuição no que ela me sugere de outras ordens. Quando eu escrevi esse texto, ainda tinha um pouco mais de fé de que a ansiedade sozinha carregava esse potencial. Agora eu sinto que a ansiedade talvez seja outro mecanismo, mas ainda acho que existe uma relação muito profunda entre ansiedade e intuição, uma relação muito determinante, e que o ponto de quebra é o ponto de possibilidade - é o ponto em que as coisas deixam de funcionar como elas são. A exposição que referi anteriormente em São Francisco, o título era The Sinking Ship / Prosperity, trabalhava basicamente com essa ideia de que o momento que o navio afunda pode ser visto como um momento de prosperidade. O momento em que o sistema da logística falha, em que as coisas não se completam, é um momento de prosperidade se pensarmos que, o que o navio carrega é violência, o que o navio carrega é um projeto de mundo destruidor então o momento que o navio falha, fracassa, quebra, é um momento de possibilidade para tudo aquilo que esse projeto de mundo está negando. Eu ainda tenho uma fé muito forte no fracasso das coisas, na quebra das coisas, acho que são momentos muito potenciais de transformação.
E a prática mantém-se nesta conversa que estamos a ter. As tuas obras encaminham para a necessidade de criar continuidade e não dividir ou colocar em caixas. Nesta continuidade surge a tua ideia de te entregares sem te converteres. Me movimenta muito essas tuas colocações. Acho que a dimensão do mercado é uma dimensão interessante. Eu passei a entrar efetivamente no mercado de arte há uns três anos. Construí uma trajetória institucional que é uma forma de mercado. Vender obras de arte é uma coisa que eu não fazia, eu expunha em contextos institucionais mas não tinha uma prática de mercado, de venda de obras. Isso aconteceu há uns três anos quando me envolvi com a galeria com a qual trabalho. Eu sinto que resisti muito tempo a isso porque eu tenho uma resistência muito forte a que o valor das coisas que eu estou a fazer seja definido muito longe de mim, ou seja, definido muito longe dos meus processos internos de entendimento do que está acontecendo. No universo institucional, quando a gente entrega uma obra para um museu, nós estamos protegidos pelas possibilidades conceptuais que estamos a trazer, pela possibilidade de conversa num contexto mais amplo. Estamos a falar de um sistema que, em tese, as questões de valor não são articuladas tão cruamente como no mercado. No mercado, o colecionador vê aquilo e ele paga ou não o valor que a galeria determina. Isso é uma coisa que ainda me gera extrema ansiedade, tanto que, às vezes tenho reunião com a minha galerista e eu passo dias sem entender o movimento que está acontecendo. É difícil para mim participar desses trânsitos económicos, é difícil para mim pensar na tradução de um processo que está me dizendo todas essas coisas, em que eu estou me conectando em diversos níveis - emocional, espiritual, energético, político - e ver tudo isso traduzido numa operação económica muito crua. Isso é uma coisa que eu ainda não estou completamente resolvida internamente, ainda é um lugar que me traz muita tensão. Ao mesmo tempo, eu sou bastante estratégica, sempre fui. Eu fui entendendo o que eu posso fazer ao me submeter a esse jogo. Se eu aceito, de alguma forma, entrar nesse jogo, o que eu consigo fazer disso? No processo em que eu estava escrevendo e pensando criticamente sobre o sistema de arte, eu pensava: eu vou ter de consentir ser roubada para roubar alguma coisa. Essa era a minha elaboração nesse período e quando eu vim para a Europa isso ficou muito explícito para mim: sim, eu tenho que ir para esse museu que está querendo fazer essa exposição e está querendo usar a minha posição existencial para significar alguma coisa sobre eles - que é o que os museus fazem com artistas racializadas, trans, para criar uma imagem de progressismo, etc. No mais básico eu entendi que eu conseguiria pagar o meu aluguer, organizar esse espaço para mim, consigo talvez negociar um trabalho com outro museu em que já não precise estar da mesma maneira. No Brasil existe a expressão “engolir sapo”, que é quando você aceita uma coisa que é difícil aceitar. Eu dizia assim: eu vou engolir um sapo para cuspir a cobra. Então tinha sempre uma ideia de que vou consentir fazer uma coisa que não quero, que me perturba, para tentar fazer alguma coisa por fora que, de alguma forma, retribua ou restaure alguma possibilidade, e eu acho que isso é parte do projeto de violação no qual o mundo foi concebido. Essa é a possibilidade que a gente tem, é impossível qualquer pessoa racializada no mundo como o conhecemos, qualquer pessoa dissidente sexual e desobediente de género no mundo como o conhecemos, só ganhar. A gente sempre perde, porque mesmo que me torne numa artista incontornável, riquíssima, eu ainda vou conviver com aquelas pessoas que parecem comigo habitando um outro lugar social - é contínuo. Essa ideia de que, por exemplo, o meu sucesso artístico nas instituições significa justiça racial, justiça social, é mentira. Isso é uma coisa que a gente tem que aceitar em algum nível, a gente tem que entender que essa contradição siga existindo e que uma trajetória individual nunca repara uma dimensão colectiva. Eu valorizo muito o meu trabalho, mas eu ainda acho - como alguém que vive do mundo e entende o valor do dinheiro - surreal o que os compradores de arte podem fazer, o que significa para um comprador fazer esse tipo de movimento num mundo em que a gente está lidando com problemas que têm outra escala - morando em Lisboa com questões de moradia, com todas as minhas amigas com as suas rendas a subir. Toda vez que algum colecionador compra o meu trabalho eu fico grata porque eu vou ter condições de me segurar um pouco mais, mas eu fico pensando que isso é uma evidência da violência estrutural que organiza o mundo. Isso é uma evidência dos abismos entre classes. A ideia de me render sem me converter está nesse lugar de entender que, por melhor que seja para mim, isso não significa justiça. O sistema de arte, hoje em dia, vai muito para esse lugar do colecionador que compra o meu trabalho e quer que eu seja grata a ele porque ele está fazendo justiça com uma travesti. Ele quer que eu dê a ele esse “tapinha nas costas”. O sistema de arte quer que eu ajude eles a fingirem que estão fazendo alguma coisa para atenuar a injustiça do mundo, a minha ética de me entregar sem me converter é tentar não dar isso e não me convencer dessa mentira. Como eu disse, eu valorizo o meu trabalho, é um trabalho que me movimenta muito e ao qual eu sou muito grata e que me transforma diariamente de maneiras muito bonitas e misteriosas, mas eu não acho que a economia em torno do sistema de arte é razoável. Eu não acho que é razoável que gente muito rica possa adquirir esses bens e colocar eles num circuito de valor que está completamente distante da realidade de quem está fazendo, porque eu não sou uma pessoa que consiga chegar, abanar o meu cartão de crédito e fazer isso acontecer. Eu entendo que isso é parte de uma história de visão de classe, empobrecimento de populações racializadas, uma história de violência contra imigrantes. Está tudo entrelaçado. Eu me comprometo a continuar a deixar um espaço para não deixar que essas distrações do mundo me façam esquecer o que é o mundo como o conhecemos e como opera. O que de facto significaria justiça nesse mundo não é eu conseguir vender o meu trabalho por x ou y valor, mas sobre redistribuição, sobre reorganização da estrutura. É sobre o valor do meu trabalho não significar uma cifra numérica, mas o potencial de transformação existencial, emocional, energético que consegue produzir. Por estes dias uma pessoa me escreveu falando que estava a fazer uma pesquisa sobre práticas artísticas marginais e queria conversar comigo. Eu respondi: “A gente pode conversar. De facto, o meu corpo habita posições sociais que são marginalizadas historicamente, que experienciam uma certa dose de marginalidade, mas não sei se vou me sentir bem descrevendo a minha prática como marginal. Acho que isso é uma falta de respeito com quem está lutando da margem, nos espaços institucionais que eu ocupo. A pessoa pediu desculpa e disse que não queria me ofender e eu disse: “Não, você não me ofendeu. Eu não estou a dizer que a prática artística marginal é menor. Eu estou a dizer que a realidade da posição em que me encontro já não me permite evocar essa ideia”, porque de facto eu me entreguei a um ciclo institucional, eu me entreguei recentemente a uma dinâmica de mercado. Trabalho para isso e o que tento fazer é não me converter. Eu estou pintando para uma feira que tem como objetivo vender para que a minha galeria tenha dinheiro, com que eu tenha dinheiro e isso vai render alguma coisa para mim. Sinto-me várias vezes como alguém que está dentro do sistema esperando a hora que ele começa a ruir, cuidadosamente, sempre que possível mexendo alguma coisinha ou outra que talvez auxilie a que esse sistema um dia desabe, mesmo que isso talvez me leve de arrasto por causa das escolhas que eu fiz e da posição que eu vim parar. Esse é um trabalho ético que tento fazer. Detesto por exemplo quando as pessoas me dizem: “É muito importante que você esteja fazendo isso em nome das pessoas trans”, entendo que isso também é verdade em algum nível. Sempre fico pensando que não sei se é importante, não quero me convencer disso porque vai me fazer esquecer da realidade. Para mim é muito importante que as travestis brasileiras parem de ser assassinadas. Que muitas de nós acessamos espaços de arte talvez seja um dos possíveis caminhos para isso, mas não resolve. A nossa prática não resolve as coisas, às vezes ela opera dentro do mistério possibilidades impossíveis que vão surpreender a gente. Eu acho importante que a gente construa espaço para imaginar e praticar o impossível - fazer o impossível se materializar da forma que a gente conseguir. É muito importante não se permitir convencer pelas fantasias do sistema, não se entregar às narrativas que estão ali para resolver a nossa crise existencial. O projeto que estou fazendo agora: “Só vivo no mundo porque não há outro lugar onde viver” tem um componente desse. É sobre viver no mundo, mas enquanto tu fazes isso ir guardando alguma semente, algum recurso para quando o mundo ruir. Esse é o projeto. O projeto é a quebra do mundo como o conhecemos - a quebra do mundo da supremacia branca, a quebra do mundo colonial. O projeto é que isso vá à falência. Entregar sem se converter é ainda uma promessa, no sentido de que, tem uma dimensão da nossa prática que não pode ser completamente consumida, não pode ser completamente entregue, não pode ser vendida. Eu tenho tentado me dedicar a fortalecer o inegociável enquanto eu estou na contradição. Eu não sou uma heroína de nada, eu não sou alguém que revide 24h por dia. Eu sou alguém que negocia, que se entrega, consente ser roubada para tentar roubar alguma coisa, “engole o sapo”, mas que tenta preservar alguma coisa que não se converte, que não vira simplesmente o que o mundo quer que eu seja.
::: Jota Mombaça é uma artista interdisciplinar cujo trabalho se desenvolve numa variedade de meios. A matéria sonora e visual das palavras desempenha um papel importante na sua prática, que frequentemente se relaciona com a crítica anti-colonial e a desobediência de género. O seu trabalho tem sido apresentado em vários quadros institucionais, como a 32ª e 34ª Bienal de São Paulo (2016 e 2020/2021), a 22ª Bienal de Sydney (2020), a 10ª Bienal de Berlim (2018) e o 46º Salon Nacional de Artistas na Colômbia (2019). Atualmente, tem se interessado em pesquisar formas elementares de sensorialidade, imaginação anticolonial e a relação entre opacidade e autopreservação na experiência de artistas trans racializados no Mundo da Arte Global. Filipa Bossuet é o culminar do interesse pelas artes, jornalismo e tudo o que me faz sentir viva. Nasci em 1998, sou uma mulher do norte com memórias do tempo em Lisboa. Guiada pela sede de informação e pesquisa autónoma licenciei-me em Ciências da Comunicação e penso também sobre as influências dos estudos de mestrado em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo, criando um diálogo e questionamento entre os campos do saber. Colaborei como jornalista estagiária no Gerador, uma plataforma independente de jornalismo, cultura e educação, e no Afrolink, uma rede online que junta profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal. Utilizo performance, pintura, fotografia e vídeo experimental para retratar processos identitários, negritude, memória e cura. O meu trabalho transdisciplinar tem sido apresentado em espaços como a Bienal de Cerveira, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), Teatro do Bairro Alto, Festival Iminente e o Festival Alkantara. |