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AMBIENTE RETINIANO DE FRA ANGELICO A ØYVIND KOLÅ | PARTE 2PEDRO CABRAL SANTO2022-01-30
[Esta é a segunda parte do artigo Ambiente Retiniano – De Fra Angelico a Øyvind Kolå. A primeira parte pode ser lida aqui e a terceira aqui]
Recentemente, em 2014, Brian P. Schmidt, Maureen Neitz, e Jay Neitz propuseram um novo modelo para a visão da cor [1]. O ponto de partida é um conjunto de críticas à perspetiva dominante, tal como foi formulada a partir do artigo de De Valois e De Valois. A primeira crítica é que o modelo de De Valois, apesar de conseguir estabelecer uma base biológica hipotética para a perceção da cor, a partir das previsões de Hurvich e Jameson – e, nomeadamente, respeitando os eixos espectrais dos pares oponentes – o faz, no entanto, à custa de uma excessiva complexidade – que se traduz no “adiamento” da resolução do problema para um estágio posterior do processamento, no córtex – quando esta complexidade não assenta em nenhuma base empírica [2]. Pelo contrário, os resultados de certas linhas de investigação entram em contradição com o modelo [3]. A segunda crítica é que o modelo de De Valois não se enquadra numa perspetiva evolucionária e genética do desenvolvimento da visão tricromática nos primatas. De facto, a investigação mais recente nessa área obriga a uma revisão do modelo tradicional [4]. A terceira crítica parte de uma consideração das necessidades de eficácia no sistema visual, dados os recursos presentes na retina[5]. Nesse contexto, as vantagens do sistema de compressão e descompressão da informação, de acordo com o modelo proposto por De Valois, são questionadas por novos estudos, a partir da adoção de uma perspetiva de custo metabólico [6]. Ou seja, em contraste, são enfatizadas as vantagens de um modelo de processamento paralelo da cor[7], e a possibilidade de este assentar num número relativamente reduzido de cones e células ganglionares, em conformidade com as características dos campos recetivos ideais para obtermos a visão cromática, e a sua baixa resolução espacial [8]. É a partir daí que surge a proposta de Neitz e Neitz: um relativamente pequeno número de células ganglionares anãs, recebendo sinais não só dos cones M e L mas também dos cones S, seria responsável por uma via neuronal, independente da via P, que asseguraria a visão cromática. Esse pequeno número de células ganglionares anãs estaria organizado em quatro tipos, responsáveis pelos dois eixos de pares oponentes [9]. O modelo proposto parece responder às questões suscitadas pelo modelo de De Valois [10], além de ser confirmado por experiências recentes, com recurso a novas tecnologias [11]. Quaisquer que sejam os desenvolvimentos futuros no domínio da neurociência, o presente debate em torno do sistema visual parece-nos estimulante para a investigação daquilo que se designa por imagem. Um primeiro ponto a reter é que uma grande parte do processamento visual parece ocorrer na própria retina, que possui mecanismos extremamente especializados de tratamento da informação recebida pelos fotorreceptores. Trata-se, provavelmente, de um número não especificado de vias neuronais paralelas, recebendo cada uma o seu tipo de informação, de acordo com uma frequência espacial que está adaptada a esse tipo de informação. Nesta perspetiva, e como afirmamos, o Where e o What deixam de ser entendidos como correspondendo às duas grandes vias neuronais, mas a oposição mantém-se se os entendermos como os extremos de um leque constituído por múltiplas vias paralelas. Como um segundo ponto a reter, temos assim a importância da baixa resolução espacial na perceção. Trata-se de um conjunto de funções que operam com tempos de reação muito rápidos, e naturalmente estão mais ligadas à sobrevivência imediata. Estão nesse caso a perceção do movimento, a organização espacial global, e mesmo o reconhecimento facial. A maioria da informação visual que recebemos no dia a dia é deste tipo, e o nosso cérebro parece socorrer-se da memória para a completar sem necessitar de recorrer a uma perceção mais fina. Em consequência da sua grande presença na perceção, parece ter havido, desde muito cedo, nas práticas humanas de representação visual, uma forte tendência para calcar este processo percetivo, usando a distribuição espacial, o claro-escuro, como o ritmo que estrutura a composição e a espacialidade. Em contraste, as funções de alta resolução operam com tempos de reação comparativamente lentos, e são ativadas por uma necessidade de perceção mais fina do espaço, quando somos confrontados com o desconhecido, ou na manipulação de objetos, ou noutras situações que implicam um exame visual detalhado. Incluem-se aqui funções muito importantes como o reconhecimento de arestas e contornos, que permite completar a perceção do espaço, o reconhecimento de texturas, e ainda de alguns traços faciais. Estes processos parecem utilizar uma grande quantidade de informação cromática sobre a forma como a luz modela o espaço, mas sem dar origem à perceção de matizes cromáticos. O olho está equipado para detetar o limite entre duas faces caracterizadas por diferentes propriedades cromáticas, em função das propriedades da reflexão luminosa. Isto dá origem a uma delimitação muito precisa das propriedades espaciais, que também encontrou desde muito cedo expressão na representação, sob a forma do desenho linear. Um outro aspeto é a perceção da cor, ou mais exatamente dos matizes cromáticos. Uma grande parte da informação cromática parece não ser usada com esse fim, mas antes – como já referimos – para a perceção fina do espaço. A perceção de matizes cromáticos parte provavelmente – como também já referimos – de um número relativamente pequeno de cones, e caracteriza-se por uma baixa resolução espacial, e tempos de reação relativamente lentos. Assim, em função das necessidades de sobrevivência da espécie, a cor não assume de imediato um papel de primeiro plano. É colocado maior enfâse na perceção do movimento e do espaço, e a cor, ainda que importante. vem depois, complementando a identificação de determinados objetos, como por exemplo animais ou frutos. Este facto encontra correspondência no modo como a representação trata tradicionalmente a cor, submetendo-a hierarquicamente à forma, ou, nos casos nos quais a cor se autonomiza e é valorizada em si mesma, fazendo-o em função da atmosfera luminosa. Assim, podemos dizer que, globalmente, a representação se desenvolveu apoiando-se nos dispositivos fisiológicos de processamento da informação visual, que resultam das necessidades de perceção do meio ambiente pelo organismo, e estão já presentes na própria retina. A partir desses elementos fisiológicos de base, a perspetiva tradicional a partir da qual se desenvolveu a produção de imagens pictóricas foi a de criar dispositivos técnicos – ou seja, modos de fazer – que, apoiando-se precisamente nessa base fisiológica, se constituíam como processos eficazes de manifestar o investimento simbólico que o organismo opera sobre os conteúdos percetivos – prolongando, e expandindo, fenómenos que já se observam no comportamento animal, na exibição de padrões coloridos, nas danças, e nos cantos, associados ao acasalamento, à marcação do território, etc. Ora, a partir de um determinado momento histórico, esse modo tradicional de estruturar simbolicamente o mundo é colocado em questão, surgindo uma nova atitude, que podemos identificar como «crítica». É nesse contexto que podemos falar de «arte moderna» como «desconstrução» do simbólico. E, na medida em que essa desconstrução se pode apoiar no estrato elementar dos processos fisiológicos de codificação do aparelho percetivo, poderá verificar-se uma aproximação ao trabalho que a ciência realiza na mesma área. Veja-se o caso do artista Øyvind Kolås, cujo trabalho se apoia na exploração de puras ilusões óticas, nas quais o cérebro é levado a ver uma imagem colorida, onde esta não existe verdadeiramente. Kolås utiliza imagens a preto e branco, às quais sobrepõe uma subtil grade cromática designada por «grade de assimilação cromática». O efeito produzido é surpreendente: as imagens a preto, cinza e branco passam a ser percecionadas como coloridas. Na realidade, o autor tira partido de um fenómeno que poderá ser explicado pelo facto de o nosso dispositivo de perceção visual estar organizado em múltiplos canais, transmitindo informação distinta ao córtex, e caracterizados por distintas resoluções espaciais. Em particular, de acordo com Neitz e Neitz, o canal que transmite a informação sobre os matizes cromáticos é caracterizado por uma baixa resolução espacial, em contraste com outros canais que se caracterizam por uma alta resolução espacial, como é o caso dos canais que transmitem informação sobre a perceção fina do espaço, ou mesmo sobre texturas. O facto de o canal que transmite informação sobre os matizes cromáticos ser caracterizado por uma baixa resolução espacial implica uma sensibilidade a baixas frequências espaciais. Assim, as «grades de assimilação cromática» de Kolås vão corresponder, quando o espetador se coloca a uma distância adequada das imagens, a uma baixa frequência espacial na retina, frequência que vai ativar a perceção dos matizes cromáticos. Este fenómeno torna-se muito mais compreensível a partir do modelo da perceção cromática proposto por Neitz e Neitz, que implica, como vimos, uma via neuronal especializada na perceção de matizes cromáticos, e caracterizada por uma baixa resolução, enquanto que o modelo de De Valois e de Valois seria obrigado a remeter a explicação para uma especulação sobre mecanismos de processamento da informação ocorrendo no córtex. Na verdade, Kolås, que também é um cientista, cujo trabalho se desenvolve na área dos algoritmos para otimização de imagens digitais [12], parece produzir o seu trabalho artístico em relação com os problemas de processamento da imagem digital. Todavia, estes problemas são de facto paralelos àqueles que a neurociência se coloca, sendo a imagem digital obrigada, como qualquer outra tecnologia da imagem, a corresponder às determinações fisiológicas. Mas não é exatamente aí que o trabalho do artista produz o seu sentido. As suas imagens são, antes de mais, extremamente banais, representando grupos de pessoas, aparentemente estudantes, em situações quotidianas indistintas. Por outro lado, apesar de a ilusão produzida ser evidente, parece não haver a intenção de que esta seja perfeita mas, pelo contrário, de que o espetador tenha a possibilidade de exercer um certo controlo sobre a mesma – ou, pelo menos, é por aí que parece passar a sua eficácia. O efeito é um pouco como que a exposição de um mecanismo da perceção visual e da produção técnica de imagens pictóricas, exposição que arrasta consigo um questionamento da «verdade» das imagens – questionamento que será corrente para a filosofia, mas é estranho ao olhar sobre as imagens num mundo no qual estão permanentemente presentes. Temos, assim, uma manifestação muito direta da instabilidade da imagem – situada tanto na sua própria natureza enquanto objeto técnico, como na natureza dos mecanismos percetivos. Ora, como já vimos, essa instabilidade da imagem pode ser entendida como um traço distintivo da arte moderna. A novidade introduzida por Kolås parece ser que essa instabilidade se torna interpelante a um nível muito direto e básico – mesmo para um público muito vasto e formalmente impreparado. Mas pode um sublinhar crítico da instabilidade da imagem encontrar a sua contrapartida num público coerente? Este problema, contido na própria experiência histórica da modernidade, parece exacerbado pelo autor em questão. Não será a instabilidade da imagem equívoca? Não será a essa equivocidade, e ao prazer que daí retira, enquanto reforço do simbólico, que o público adere?
[1] Ver Brian P. Schmidt, Maureen Neitz, e Jay Neitz, «Neurobiological Hypothesis of Color Appearance and Hue Perception».
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