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UMA COR DE ROSA DIFERENTE - DE KEYEZUA À RELAÇÃO ENTRE ARTE E GÉNERO EM ANGOLA



ADRIANO MIXINGE

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"Imbamba ya muhatu/Coisas de mulher" é o título da exposição de duas artistas, a angolana Keyezua e a nigeriana Wura-Natasha Ogunji, com curadoria de Suzana Sousa que esteve, durante todo o passado mês de Outubro, no Camões/Centro Cultural Português, em Luanda.

Desfrutar da vernissage e entender a exposição foi, para mim, um prazer exigente. Para além das cinco obras expostas, uma obra subtil, em forma de performance da artista, acabou sendo a sexta peça da exposição: a artista fez-se notar logo à chegada, pela sua atitude, pelos os seus gestos, pela sua maneira de vestir, pelo seu penteado e por ter um guarda-costas que se manteve sempre atrás dela.

Mas, foi ouvir Keyezua a proferir, na abertura, umas palavras pedindo aos espectadores que não temessem perguntar-lhe sobre os detalhes das obras expostas para nos darmos conta que não era só pela aparência que a artista ia ficar.

Vamos por partes: cheguei cedo ao lugar da mostra, estavam duas pessoas à espera mesmo na porta. De repente, a curadora saiu, no mesmo momento em que um homem alto e forte (o cúmplice da performance de Keyezua) aproximou-se para perguntar se era mesmo ali o lugar da vernissage.

O que encontramos dentro do Instituto Camões, era a primeira vez que acontecia: a principal sala de exposições está toda pintada e tem um élan côr de rosa que se reflete nos tectos em branco como se fosse e estivéssemos, segundo a curadora Suzana Sousa, num quarto de mulher.

"Pink is the new black" foi a primeira coisa que pensei, enquanto ia entrando e reparei que, na outra sala, mesmo ao lado, ainda está patente a exposição "Out of box" de fotografias de Bruno Fonseca.

À entrada entregaram-nos um folheto em que aparece uma pequena introdução, a sinopse dos vídeos e a descrição dos principais temas que as obras tratam. No entanto, chamou-nos imediatamente a atenção o perfil da artista angolana que aparece no último páragrafo do folheto, em que lemos o que Keyezua, artista angolana licenciada pela Real Academia de Artes em Haia, Holanda, pensa:

"Desde pequena fui a criança desobediente em casa, mudando as coisas para mostrar os meus sentimentos de forma a provocar reacções. É algo que não desapareceu com os anos, cresceu em mim e tornei-me alguém que interage com questões humanas expondo-as para criar espaços de debate ou para uma segunda opinião da minha audiência. A minha arte entre o expressionismo, surrealismo e pan-africanismo. Gosto de definir-me como contadora de histórias".

Assim, entrei na sala da exposição ansioso em saber que histórias iria ver e já sob o fascínio de uma côr de rosa intensa e poderosa, desde muito cedo, reparei que é dentro de oito caixas - quatro écrans de televisão e quatro caixas de madeira - que estão colocadas as histórias que, nunca melhor dito, vimos contar.

No núcleo e centro da exposição está uma figura de mulher com os seios de fora, na obra "Shoshana" da artista angolana Keyezua, reivindicando, como bem o disse a curadora Suzana Sousa na vernissage, "o corpo como instrumento político". Mas, isso não é tudo: nesta mesma obra, unidos num tenso jogo de significantes, estão as colagens das mulheres com rostro de bouquet de rosa, os seios de fora e essas mãos, no lugar dos ventres, como se algo ou alguém estivesse a orar, o leitmotiv que expressa com uma certa ironia a concepção de partes sagradas do corpo e, também, o acto de pedir piedade tão caro aos mártires cristãos e aqueles que são injustamente humilhados.

Numa outra obra, que faz lembrar o trabalho da keniana Ingrid Mwangi e que se intitula "Hair is power" (O cabelo é poder) ou, como Keyezua chamou "O cabelo é cultura", nos treze minutos que ela demora, aparece uma mulher com braços fortes e axilas bem afeitadas, a fazer uma trança de mão, sobre as quais cose papéis de qualquer coisa que poderia ser uma biblia ou um diccionário.

Entretanto, durante a vernissage, vestido todo de negro, o homem grandulhão (o guarda-costas, cúmplice e, talvez, actor) esteve sempre por trás de Keyezua, protegendo o corpo dela, origem das obras de arte, e a artista foi falando com os espectadores o tempo todo, ouvindo o que eles tinham para dizer. Apercebendo-nos daquela mostra de poder, perguntamos à artista porque é que ela andava com guarda-costas? Ela disse-nos literalmente: "eu tenho guarda-costas porque sou a Keyezua".

O que queria significar com o gesto dela é que a mulher e a artista também podem ter poder e, portanto, simplesmente podiam ser poderosas sem necessidade de dar mais qualquer explicação.

Entretanto, “Imbamba ya muhatu/Coisa de mulher” é uma exposição colectiva e porconseguinte, Keyezua expõe com a artista nigeriana Wura-Natasha Ogunji. Mas, quem é Wura-Natasha Ogunji? Como podemos ler no folheto da exposição - e transcrevo:

"Wura-Natasha Ogunji" é conhecida pelos seus videos em que usa o seu próprio corpo para explorar noções de movimento e de impressão em água, terra e ar. A sua mais recente série de performances intitulada "Mo gbo mo branch/I heard and branched myself into the party" explora a presença da mulher no espaço público em Lagos, Nigéria.

Ogunji já foi congratulada com uma série de prémios, incluindo o John Simon Guggenheim Memorial Foundation Fellowship (2012), apoios do Idea Fund, Houston (2010) e do Pollock-Krasner Foundation (2005).

Ogunji já apresentou o seu trabalho no Centro de Arte Contemporânea (Lagos), The Menil Collection (Houston) e a Fundação Pulitzer para as Artes (St. Louis). Licenciou-se em Antropologia pela Stanford University e Fotografia pela San Jose State University. Ela vive entre Austin e Lagos".

Na exposição “Imbamba ya muhatu/Coisas de mulher” estão três video-performances de Wura-Natasha Ogunji: “The epic crossings of an Ife head” (A épica travessia de uma cabeça de Ifé), “Belongings” (Travessias) e “Will I still carry water when I am a dead woman?”(Eu ainda carregarei água quando for uma mulher morta?) e tratam sobre três problemáticas do passado, do presente e do futuro dos africanos, nomeadamente, o trauma do tráfico de escravos através de “uma cabeça de Ifé que busca os seus descendentes nas Américas”, a emigração de africanos por “terra, mar e ar” e a presença da mulher em espaços públicos.

Enfim, apesar de serem apenas seis obras, quem esteve na vernissage terá dado conta que, qualquer coisa diferente está a acontecer no "mundo" da arte angolana e africana contemporâneas: um grupo de mulheres vem reivindicando igualdade e poder.

Sabendo que estamos muito longe da igualdade de géneros e que não acedem ao poder facilmente, as artistas e a curadora estão mais interessadas, porventura, em subverter os padrões existentes, acabando por estremecer os cimentos de um sistema artístico local, onde pouco ou nada parecia acontecer tendo artistas (mulheres) na vanguarda.

O facto das angolanas se terem unido à nigeriana (ou vice-versa) não é de somenos importância: a origem africana da cultura angolana e a relação dos artistas angolanos com outros artistas africanos constitui um dos atractivos da exposição e um estimulo a outras iniciativas semelhantes, uma coisa pouco frequente entre nós.

Numa interessante colaboração artística, desligadas de qualquer organização política de mulheres, provenientes de países diferentes, as artistas e a curadora abordam o problema dos direitos da mulher para além da noção superficial de decoro e do "politicamente correcto".

Sempre com uma postura feminista consciente e reflexiva, interpelando drasticamente os códigos de masculinidade imperantes, elas questionam a hegemonia daquele género para exaltar a liberdade individual, esfarelar a falsa dicotomia entre a côr de rosa e o significado único, com um discurso artístico e museográfico coerentes.

Como resultado, dá para ver que com "Imbamba ya muhatu/Coisas de mulheres", Keyezua e Wura-Natasha Ogunji criam novas relações e significados que põem no avesso (tentam rebentar) as noções de identidade, de "sexo débil" e de submissão, contestam a subalternização das mulheres artistas.

Entretanto, ainda está por fazer um estudo rigoroso sobre a relação entre arte moderna e contemporânea e género em Angola. Sentimos a falta da sistematização do lugar e importância das artistas, curadoras e críticas de arte que tenham trabalhado em prol do desenvolvimento das artes. Temos que admitir que este vazio tem provocado que tenhamos muita dificuldade em calibrar a importância das artistas no domínio das artes plásticas, já seja pelo menosprezo do mainstream que é, sobretudo, masculino, ou também pela fraca qualidade de um bom punhado de artistas, a maior parte das quais nunca conseguiu uma projecção internacional.

Uma série de nomes vêm à memória: Denise Toussaint, Helena Justino, Gabriela Veloso, Ema Brandão, Maria Angélica Taquelim, Maria Manta, Maria Santa Godinho, Marilia Duarte, Ana de Sousa, Marinete Borges e Susana Rebocho, a maior parte delas sem que se conheça realmente a dimensão da obra artística; mas, também, Filomena Coquenão, Dilia Fraguito, Marcela Costa, Laly Salvador, Isabel Baptista, Maria Belmira, Zizi Ferreira, Kiana, Yana Van-Dúnem, Patricia Cardoso, Fineza Teta até chegar à Keyezua, só para citar alguns exemplos, formam parte de um mundo pouco estudado e, portanto, desconhecido.

 


Adriano Mixinge
Historiador e Crítico de Arte