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THEIR HISTORY HAS BEEN FORGOTTEN BOTH BY SILENCE AND OBSCURITY - ARTE E GÉNERO EM DISCUSSÃO EM LISBOANATáLIA VILARINHO2014-11-11
Lisboa acolheu no final do passado mês de Outubro o primeiro congresso internacional “Arte e Género?”, que recebeu 44 investigadores de 11 países, num total de 48 instituições representadas e também participações independentes. Esteve em discussão a arte, o género, o feminismo, as mulheres artistas e tudo aquilo que constitui as ténues fronteiras do queer. Participaram novos conferencistas, mas também personalidades internacionais como Nancy Heller e Camille Morineau. À curadora francesa, responsável pela histórica exposição “elles@centrepompidou”, coube a honra de encerrar um congresso que teria muito a ganhar com uma discussão mais aprofundada das ideias que veio apresentar. Camille Morineau veio a Lisboa falar da sua experiência no planeamento e organização de uma exposição que, em Paris, mostrou o trabalho de mais de 300 artistas do sexo feminino, mas também da necessidade de criação de novas categorias na arte contemporânea. “Elles@centrepompidou” teve mais de 2,5 milhões de visitantes, cerca de um acréscimo de 21% relativamente à exposição permanente do Centro Pompidou. Demorou cerca de dois anos a montar, ocupou no total 800 metros quadrados distribuídos por dois pisos e esteve patente durante dois anos. Não era suposto ter estado em cena tanto tempo, mas o enorme sucesso junto do público ditou que fosse prolongada. Para organizar “elles@centrepompidou”, Camille Morineau teve de superar não só a incógnita de não saber como seria recebida a exposição mas também o choque inicial quando verbalizou a ideia de organizar uma mostra de mulheres artistas. Para o conseguir, sentiu necessidade de a afastar de uma intenção feminista - em entrevista à Artecapital, explicou que o feminismo não era na altura (será agora?) um conceito fácil em França e que a forma mais eficaz de apresentar o projecto foi caracterizá-lo como uma exposição de “mulheres artistas na diversidade da sua produção artística” com aquilo que estava disponível na colecção do Centro Pompidou. A luz verde para avançar incluiu a necessária aquisição de obras, visto que a percentagem de mulheres artistas presentes na colecção antes de “elles” era apenas entre 12% a 15%. A curadora francesa mostrou fotografias de algumas obras expostas, como “Portrait Grandeur Nature”, de Agnés Thurnauer, ou “Barbed Hulla”, de Sigalit Landau e focou a organização das salas expositivas: quando falou de “Eccentric Abstraction”, evocando Lucy Lippard, afirmou a necessidade de se pensar, hoje, em novas categorias de arte. Para Morineau, sempre que se juntam artistas africanas ou do Médio-Oriente na narrativa da história da arte “mudam-se por completo categorias, movimentos, ligações” e não existem actualmente ferramentas para as reorganizar. Houve tempo para oferecer uma visão da obra de Niki de Saint Phalle, cuja retrospectiva Morineau assina no Grand Palais, e apresentar um projecto pessoal: AWARE (Archives of Women Artists, Research and Exhibitions) nasceu na sequência da exposição no Centro Pompidou e tem como objectivo quebrar as barreiras que alimentam o desconhecimento que Morineau considera ainda existir no que toca ao trabalho das mulheres artistas. Contra as barreiras geográficas, contra o silêncio e contra a obscuridade, AWARE será um site mas também uma plataforma de conversas em torno do tema. O projecto foi muito bem recebido pelos presentes, tendo suscitado elogios da parte de Nancy Heller. Heller, historiadora norte-americana, autora de “Women Artists: An Illustrated History” e professora na University of Arts, em Filadélfia, percorreu na sua comunicação 43 anos de mulheres artistas, arte feminina e arte ligada ao género. Foi em 1971 que Linda Nochlin abriu o debate com a questão: "Why Have There Been No Great Women Artists?”, uma interrogação abordada inúmeras vezes ao longo dos três dias do congresso. Caracterizando “arte feminista” como “arte feita por homens e mulheres que suportam a igualdade entre pessoas”, começou por abordar as iniciativas das Guerrilla Girls, apoiadas em dados estatísticos e o “Dinner Party” de 1979, de Judith Chicago. Esta peça, uma mesa em forma de triângulo, evoca o nome de 1038 mulheres (entre personalidades históricas e mitológicas): 999 nomes estão dispostos pelo chão, enquanto as restantes 39 têm lugares “reservados” na enorme mesa de refeições. Numa comunicação que passou pelos avanços e recuos dos direitos das mulheres nas várias áreas da sociedade, Nancy Heller focou também aquelas que para ela foram as exposições mais importantes de arte feita por mulheres: “Woman Artists 1550-1950”, de 1977, com apoio curatorial de Linda Nochlin e “Seductive Subversion: Women Pop Artists, 1958-1968”, de 2010, com curadoria de Catherine Morris. Estranhamente, para a norte-americana, ficou de fora qualquer menção a “elles@centrepompidou”, talvez pela importância por si atribuída ao feminismo como um “método curatorial”. Classificando o género como algo muito mais complexo do que apenas uma realidade binária de homens e mulheres, Nancy Heller apresentou a fotografia de Lynda Benglis que em 1974 figurou nas páginas centrais do número de Novembro da revista Artforum, onde a artista segura entre as suas pernas um dildo, nunca evocação de David de Miguel Ângelo e de uma história completamente dominada por homens. E foi neste aspecto que se sentiu que faltou algo neste congresso. Na sessão de inauguração, Emília Ferreira, da organização do evento, afirmava que o ponto de interrogação no título do congresso significava uma “abertura a novas formas de abordagem” da questão, mas raras vezes o género foi discutido como algo fora do mesmo binarismo homem-mulher que Nancy Heller recusara. As excepções surgiram principalmente no segundo dia. Sónia Pina, doutoranda em Comunicação e Artes, apresentou um trabalho baseado num conceito de “performing-for-the-monitor”, mostrando obras de Ernesto de Sousa, Elisabete Mileu, Joan Jonas ou Martha Rosler. Em foco, o género pensado como cruzamento de novos corpos e novos imaginários. Alguns artistas apontados, como Heather Cassils e Zackary Drucker, foram aprofundados pela comunicação de Ruth Rosengarten, artista, historiadora de arte e curadora independente, responsável pela exposição “Entre Memória e Arquivo”, que esteve patente no Museu Berardo até Janeiro deste ano. Rosengarten apresentou em “O nosso meio de ter um mundo? Corporização e género na fotografia contemporânea”, modos de abordagem do corpo à margem do que é aquilo que nos é apresentado como norma. O corpo como campo de questionamento da natureza e da cultura, como matéria de uma “intersecção entre os estudos de género e a teoria queer”. A historiadora iniciou a comunicação com uma fotografia do projecto “Switcheroo” de Hannah Pesut e avançou para Ernst Rhys e Zackary Drucker, um casal transgender, de artistas, e a sua série “Relationship” (2008-13). Foi abordada a artista indiana Tejal Shah, autora da série “What are you?”, trabalho sobre género de 2006 e os auto-retratos de Catherine Opie, nos quais a artista norte-americana desafia aquilo que se pode ou não ver, o que se pode ou não mostrar: “Self Portrait/Cutting (1993)”, “Self Portrait/Pervert (1994)” e “Self Portrait/Nursing (2004)”. Ficaram nomes como Elinor Carucci, Ana Casas Broda, Heather Cassils e Eleanor Antin, entre outros. Ruth Rosengarten citou Judith Butler ao abordar a questão do género muito para além do masculino e do feminino e ficou a sensação de que houve muito pouco tempo para uma comunicação que teria dado por si, matéria de reflexão para muito mais. Falou-se pouco de género. Para além de Sónia Pina e Ruth Rosengarten, houve Maria José Palla e Maria José Justino. Palla, da Universidade Nova de Lisboa, falara no dia anterior da obra de Sarah Pucill, ao apresentar o vídeo “You be Mother”, em que a artista inglesa evoca uma estética surrealista, com uma mesa, chávenas e bules de chá em cujas faces são reflectidos fragmentos de rosto. Maria José Justino, directora da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, utilizou o corpo e a descentralização como peças chave para a análise à obra de três artistas: o trabalho em torno do sofrimento das mulheres chinesas da ceramista Maria Cheung, a reversibilidade de "A Casa é o Corpo", de Lygia Clark e a escravidão negra vista por Rosana Paulino. A noção do corpo escravo, do outro, como aquele que pode ser transgredido e torcido fez parte da comunicação de Ana Paula Simioni, da Universidade de São Paulo. Em análise a obra de Anitta Malfatti e Tarsila do Amaral, artistas brasileiras das primeiras décadas do séc. XX - a primeira utilizou o corpo da mulher do Pará e a segunda o da negra escrava da propriedade para transgredir as regras. O corpo dos outros, não os seus próprios. As mulheres artistas estiveram claramente em foco neste congresso, principalmente as portuguesas. Raquel Henriques da Silva estabeleceu um caminho entre Vieira da Silva e Paula Rego, traçando pontos em comum na vida das pintoras, duas mulheres muito presentes na história de arte portuguesa embora com uma vivência fora do território nacional. Foram motivo de análise Ofélia Marques, Julieta Ferrão, Maria Beatriz, Aurora Jardim Aranha e Salette Tavares, cuja exposição no Centro de Arte Moderna Camille Morineau mencionou, ao referenciar “Words at Work”, uma das salas de “elles@centrepompidou”. De salientar neste congresso a multiplicidade de temas focados. Desde os Scopitone, percursores dos actuais telediscos, passando pelo animé japonês, Yoko Ono, Flannery O’Connor, Arte Pop e Feminismo em Espanha nos anos 60 e 70, entre outros. Estiveram presentes muitos participantes jovens, o que foi apontado por Emília Ferreira como uma nítida vontade de “dar voz a quem está a começar”, mas também muitos internacionais, o que para Sandra Leandro, também da comissão organizadora, se figurou como uma “tentativa de vencer os obstáculos da distância e preencher alguns buracos negros gerados pelo esquecimento”. Foram três dias de discussão de temáticas ligadas à arte e ao género, mas onde as questões de género foram pouco debatidas. Faltaram mais artistas masculinos e mais multiplicidade de género. Ficou a vontade de ouvir durante mais tempo Ruth Rosengarten e Camille Morineau, mas também a vontade de presenciar a segunda edição internacional deste congresso, que Emília Ferreira apontou para daqui a três anos. Lá estaremos.
Natália Vilarinho
Notas [1] Frase, relativa a mulheres artistas, proferida por Camille Morineau na sua comunicação “Como promover mulheres artistas do século XX no século XXI? De exposições a web sites” |