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UPLOAD: BEUYS' MYTHOLOGY (WHO'S AFRAID OF FAT, FELT AND DEAD HARES?) - PARTE IVPEDRO CABRAL SANTO E NUNO ESTEVES DA SILVA2020-08-14
[esta é a quarta parte do artigo "Upload: Beuys' Mythology (Who's Afraid of Fat, Felt and Dead Hares?)", as restantes partes podem ser acedidas aqui: Parte 1, Parte 2, Parte 3]
As duas performances que Beuys apresenta, em 2 e 3 de Fevereiro de 1963, no Festum Fluxorum organizado por Maciunas e pelo próprio Beuys na Düsseldorf Kunstakademie, não poderiam diferir mais. Komposition für zwei Musikanten seguia o modelo da Fluxus, consistindo simplesmente na ação de um brinquedo de corda, constituído por dois músicos, tocando tambor e pratos – Beuys deu corda ao brinquedo e depositou-o no palco. Sibirische Symphonie 1. Satz, pelo contrário, rompe com a ortodoxia da Fluxus, introduzindo, simultaneamente, elementos já característicos da obra posterior de Beuys. Beuys tocou fragmentos de Erik Satie num piano que tinha preparado para funcionar simbolicamente como uma bateria elétrica, através de dois terminais de barro, por sua vez ligados por cabos de cobre a uma lebre morta pendurada num quadro negro. Levantando-se várias vezes, entre a execução dos fragmentos musicais, para escrever a giz no quadro, Beuys terminou a performance retirando o coração da lebre e pendurando-o igualmente no quadro [1]. Der Chef/The Chief (Fluxus Gesang), performance realizada pelo artista a 30 de Agosto de 1964, em Copenhagen, e na galeria René Block, em Berlim, a 1 de Dezembro de 1964, confirma e prolonga esta rutura. Durante as nove horas de duração da performance, Beuys permaneceu, absolutamente imóvel, embrulhado num rolo de feltro, em cujas extremidades se posicionavam lebres mortas. Uma vareta de cobre emergia de um rolo de feltro menor. O rodapé e os cantos da galeria estavam barrados com banha, e uma acumulação de cabelo e unhas espalhava-se pelo chão. Envolvido no rolo de feltro, Beuys ia comunicando com o exterior, emitindo sons semelhantes aos de um veado macho através de um microfone [2]. Através dessas performances, consegue alterar profundamente a direção em que se desenvolvia a produção da Fluxus. A performance deixa de ser um acontecimento pontual, semântica e emocionalmente neutro, para ganhar duração, estrutura e densidade emocional e simbólica. Há que distinguir aqui dois aspetos: em primeiro lugar, duração e estrutura eram uma característica tanto da produção de Cage como dos primeiros happenings, e continuava a ser uma tendência ativa no interior da Fluxus, mas que Maciunas tentava ativamente suprimir, favorecendo o estilo pontual de Brecht [3]. Beuys partilha essa tendência mais expansiva com Allan Kaprow, Dick Higgins, Wolf Vostell e Nam June Paik [4]. No entanto, é o segundo aspecto, a densidade emocional e simbólica, que o coloca num lugar à parte. E é precisamente esse o elemento que constitui a base da grande resistência que foi oferecida ao seu trabalho. Esse elemento rompia, de um modo muito explícito, com uma genealogia do formalismo americano, que se estendia tanto pela performance, como pela pop, e pelos seus prolongamentos europeus. E marca, assim, o ponto a partir do qual se desenvolve uma nova modalidade da imagem visual, hoje bem presente no panorama artístico. Uma importante característica distintiva desta nova modalidade da imagem, e que se manifesta já em Joseph Beuys, é a forma como se relaciona com a dimensão política e com a questão do espaço público. Enquanto que, na formulação tradicional do espaço público, de Kant a Jürgen Habermas (e Benjamin Buchloh), a ênfase é colocada na estrutura, na racionalidade, na normatividade, no respeito pelos limites, a nova formulação suspende os limites, ou seja, as estruturas de uma subjetividade estável, e coloca a ênfase numa dimensão afetiva, muito explicitamente estética. Isto provocou, e continua a provocar, a objeção de uma associação ao fascismo, sobretudo face ao aviso de Walter Benjamin no final de Das Kunstwerk im Zeitalter Seiner Technischen Reproduzierbarkeit [5]. Mas essa objeção, quando absolutizada, perde toda a pertinência, reduzindo-se a um mero straw man [6]. Por outro lado, se analisarmos as condições do desenvolvimento de uma cultura de vanguarda na Alemanha do pós-guerra, encontramos, efetivamente, uma experiência de suspensão da normatividade, a experiência do Stunde Null – a «hora zero» – como devastação absoluta, e suspensão de toda a cultura e humanidade. Esta experiência – que deve ser posta em paralelo com o que Giorgio Agamben chama «estado de exceção» [7] – opõe-se à experiência vulgar do Stunde Null como desculpabilização, e constitui-se antes como um prolongamento indefinido da devastação, que abre paradoxalmente uma nova forma de espaço público desestruturado que liberta novas possibilidades de invenção [8]. Era este novo espaço público que caracterizava os ambientes onde se deu a recepção de John Cage, e depois o desenvolvimento da Fluxus, na Alemanha: em particular os Ferienkursen em Darmstadt e o atelier de Mary Bauermeister em Colónia [9]. Foi nesse contexto que se desenvolveu o trabalho de Nam June Paik, que era aluno de Karlheinz Stockhausen em Colónia e conheceu Cage em Darmstadt, em 1958, quando este lecionava aí pela primeira vez [10]. A primeira performance de Paik, Hommage à John Cage: Music for Tape and Piano, na Galerie 22, em Düsseldorf, a 13 de Novembro de 1959 – performance à qual Beuys assistiu [11] – não só era um objeto formalmente complexo, na tradição direta de Cage, como incluía, significativamente, um aviso contra a «trivialidade e estupidez» do Wirtschaftswunder [12]. Aviso cuja proveniência só pode ser localizada nos meios intelectuais alemães, em particular Darmstadt, onde Theodor Adorno ensinava regularmente desde 1950, exercendo, mas também sofrendo, grande influência. O conceito de «apresentação negativa», que como já vimos é apontado por Gene Ray como caracterizando a tematização do holocausto por Beuys, é de facto desenvolvido por Adorno não só como resposta ao holocausto, mas, também, como a resposta ao Stunde Null, tal como era presenciado em Darmstadt [13]. Os Ferienkursen, iniciados logo em 1946, ainda sob a ocupação americana, podem assim ser o modelo do novo espaço público que caracteriza o trabalho de Beuys, e possibilita simultaneamente a receção da Fluxus. Mas, por outro lado, estabelecia as condições para um absoluto choque ideológico com a América. Se Darmstadt recebeu Cage, e a Fluxus, no final da década de cinquenta e início da década de sessenta, as diferenças rapidamente se tornaram evidentes: o anti-elitismo e antieuropeísmo da Fluxus não podiam estar mais em contraste com o híper-elitismo sem concessões de Darmstadt. Estabeleceu-se assim uma «rota de colisão» entre América e Europa, e o trabalho de Beuys como um dos pontos dessa colisão. Mas, apesar de tudo, o fascínio mútuo inevitavelmente continuou. Por um lado, a América, talvez paradoxalmente, é o outro nome do novo, da revolução. Por outro, a América é o acesso a um público, e a meios, muito para além do que era possível na Europa e na Alemanha. No entanto, Beuys recusava-se a visitar a América, como protesto contra a guerra no Vietnam. Mas quando René Block inaugurou, em Maio de 1974, a sucursal da sua Galeria em Nova Iorque, surgiu a possibilidade de aí encenar um poderoso comentário ao imperialismo americano: o resultado foi uma enorme performance intitulada Coyote: I Like America and America Likes Me, que consistia em permanecer, durante três dias, fechado dentro da galeria, juntamente com um coyote [14]. Esta performance/ação, que podia ser vista pelo público através de uma rede [15], constituía-se assim como um período de convivência, ou mesmo de cativeiro, com um animal feroz, selvagem. Apesar de se encontrar em evidente limitação de movimentos e perto de um animal selvagem, isso não implicava que o artista não trouxesse consigo a cultura e a civilização: assim, enquanto que o coiote tinha, no fundo da galeria, a sua palha, Beuys dispunha, além da sua habitual indumentária, de duas grandes mantas de feltro, uma bengala, um par de luvas castanhas, cigarros, uma lanterna, um triângulo, percutido ocasionalmente pelo artista, um gravador, que emitia, quando acionado, o som de uma turbina, e cinquenta números do Wall Street Journal, atualizados diariamente, e nos quais o coiote foi urinando e defecando [16]. Neste ambiente, Beuys e o coyote vão realizar, apesar de tudo, uma progressiva e estudada aproximação, acabando por conviver amigavelmente. No último dia do evento, parte tal como tinha chegado, embrulhado em feltro, numa ambulância que o leva da Galeria ao Aeroporto John F. Kennedy, onde embarca com destino à Alemanha [17]. Este trabalho, em particular, foi de uma enorme força simbólica. Beuys tinha simulado na galeria uma zona de iminente estado de guerra, de confronto entre o homem civilizado e o mundo “selvagem”: sobretudo o palco de uma suspensão e possível redistribuição de barreiras normativas. O coyote – que representa a América – assumia-se desta forma como um mensageiro do outro lado do mundo, aquele a que não temos acesso, mas que está presente, e no final, torna possível identificar a forma de se tolerar o aparente intolerável, a impossível convivência, construindo uma ponte entre mundos diferentes, dispares. Desse ponto de vista, esta performance constitui-se como modelo da nova modalidade da imagem proposta por Beuys, que colocava como horizonte a transformação da própria subjetividade: um exemplo de um eventual uso de elementos metafísicos, visando a sua desconstrução e ultrapassagem. Postura determinante para que outra vez a Imagem Visual Artística se transformasse, gerando um regime discursivo influente, especialmente junto dos jovens artistas, e que se tem perpetuado até aos nossos dias. As propostas artísticas de Joseph Beuys não podem ser dissociadas do contexto geral que lhes presidiu. Contudo, não deixa de ser verdade que foi através da radicalização das suas ações, e da forma como lutou por elas, que se possibilitou a instauração de um novo modo de ver. Para ele, tratava-se da defesa de princípios de grande nobreza e elevação, que no seu entender deveriam pautar a atividade humana em geral, e a artística em particular: a importância de um artista e do seu trabalho media-se pelo seu grau de autoconhecimento, pelo trabalho sobre as próprias limitações, e a determinação em o expor. Apesar de questionáveis – e efetivamente questionadas – essas poderosas premissas foram fundamentais para a adesão dos artistas mais jovens, e para a constituição de um frutuoso legado. As suas ideias mantêm-se assim ativas, num contexto de intensa problematização, tal como uma visita a qualquer escola ou academia permite constatar. Em termos puramente artísticos, o trabalho de Beuys pode assemelhar-se a uma espécie de peregrinação religiosa, com o seu estoicismo e a sua recusa em vacilar, mudar de rumo – atitude que foi responsável pela transmissão da mensagem de que a Arte não é algo de negociável; ao invés, deve ser, acima de tudo, a busca de uma pureza interior. Mas, como em tudo, a postura que adotou foi também causadora de alguma incompreensão. Ao apresentar-se publicamente, em termos mediáticos, com tiques típicos de uma «super estrela», evidenciados inclusive na indumentária, que se mantinha inalterável – com as botas e o colete sempre em destaque, a par do famoso chapéu. Beuys exibia sempre, quer fosse na preparação ou na apresentação de uma peça escultórica, numa performance ou num discurso improvisado, esta indumentária, como se fosse um uniforme militar, uma pura imagem de marca [18]. Esta aparente desarmonia talvez seja apenas a confirmação de que entre discurso e atitude se interpõe o factor humano, do qual aliás a Imagem Visual Artística depende inteiramente. Como pode a exigência ética e espiritual da postura de Beuys confrontar-se com uma incontornável determinação cultural e fisiológica? A resposta que deu não poderia ser mais determinada culturalmente, por milénios da história humana: o artista deve incorporar aquela personagem excecional – simultaneamente à parte e no centro da sociedade – que se manifesta tanto no Xamã das estepes asiáticas como na super estrela com os seus tiques [19]. E talvez seja essa a verdadeira natureza da imagem artística: um mero reflexo – investido de importância – daquilo que nos esforçamos por revelar como humano. O que se nos revela ainda nas palavras de Andy Wharol: «A América gosta mais dele do que ele pensa».
Pedro Cabral Santo Nuno Esteves da Silva
::: Notas [1] Ver Antje von Graevenitz, «Beuys Alchemical Credo: The Presence of Nature as an Emblem and Epiphany for the Creative Man» (in Æsa Sigurjónsdóttir, e Ólafur Páll Jónsson (eds.), Art, Ethics and Environment: A Free Inquiry Into the Vulgarly Received Notion of Nature. Newcastle: Cambridge Scholars Press, 2006, pp. 45-55), pp. 50-51; e Joan Rothfuss, «Joseph Beuys: Echoes in America», p. 41.
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Bibliografia ADORNO, Theodor W. – Negative Dialectics. London and New York: Routledge, 2004. |