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MEGA GALERIAS AO SERVIÇO DE UM MEGA MERCADO: O PARADIGMA DA OSTENTAÇÃO MUSEOLÓGICASÉRGIO PARREIRA2019-09-03
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Foi talvez em Maio de 2017, ao visitar a exposição do Felix Gonzalez-Torres na David Zwirner em Nova Iorque, que finalmente interiorizei o fenómeno das Mega Galerias enquanto concorrentes diretas daquele que consideramos ser o Museu tradicional. O edifício da David Zwirner Gallery localizado no número 537 Oeste (West) da vigésima rua, desenrola-se majestosamente por cinco andares que totalizam cerca de dois mil e oitocentos metros quadrados. Este espaço acolheu com alguma tranquilidade e subtileza a retrospetiva de um artista cuja obra se caracterizou pelo cruzamento de técnicas tao díspares como são a escultura, impressão digital, fotografia, instalação, vídeo e performance. A galeria, em conjunto com – à data – a recém-encerrada Andrea Rosen Gallery (anterior representante da obra/espólio de Felix Gonzalez Torres), reuniram a partir de coleções privadas e públicas (Museus) mais de 20 obras que em dois andares do edifício ocuparam cerca de dez salas, desenhando uma história singular da narrativa plástica do artista. Explorando a singularidade e generosidade deste espaço com arquitetura da autoria de Annabelle Selldorf (Selldorf Architects), o espetador experienciava os desafios do complexo entendimento da noção do público e do privado, da construção estética, das contradições e multiplicidades da perceção de uma obra de arte. É certamente notável que o espaço entendido como comercial de uma galeria de arte, em consequência da evolução do mercado e infindas razões outras (porventura igualmente associadas a este), se consiga elevar à categoria mais desafiadora da apresentação e exposição de objetos de arte – o potencial educacional ao serviço da compreensão da evolução humana. Cerca de um ano mais tarde, em Julho de 2018, fui à Pace Gallery situada no número 510 Oeste da vigésima-quinta rua ver a exposição do Fred Wilson, intitulada Afro Kismet. Este espaço da Pace tem cerca de mil metros quadrados, um pé direito majestoso, género industrial, arquitetonicamente despojado e sóbrio, e com inúmeras claraboias e entradas de luz. A renovação foi realizada em 2012 com a autoria do gabinete de arquitetura HS2 Arquitecture, que cinco anos antes, recuperara um espaço adjacente também este pertencente à galeria. A exposição de Fred Wilson: Afro Kismet, com o trabalho mais recente do artista e que tinha sido produzido para a 15º Bienal de Istambul, predisponha-se a uma leitura particularmente museológica dos objetos, em parte devido às escolhas espaciais do artista, à estética dos objetos escultóricos, e também à apropriação e reutilização de artefactos. Em Afro Kismet, Fred Wilson explanou um imaginário individual histórico de Istambul enquanto cidade cultural e historicamente integrante de um triângulo composto ainda por Cairo e Veneza. Tomando este conceito como ponto de partida, o artista utiliza materiais nobres mais clássicos, desde painéis pintados de azulejos, vidros luminescentes, inscrições em papel de caligrafias árabes, pinturas orientais, que articulou com objetos ditos mais contemporâneos como é o exemplo dos candelabros ou os desenhos que emolduram os limites/rodapés das extremidades superiores das paredes das galerias. O que faz com que esta exposição facilmente transite para um universo clássico museológico são primeiramente as escolhas deliberadas que o artista fez nesse sentido, através da cor das paredes da galeria, o posicionamento e exposição de objetos em plintos com vitrines, as molduras rococós douradas das pinturas, a outros detalhes que livremente associamos a contextos tradicionais do museu clássico e “artes antigas”. Claro que neste exemplo o artista contemporâneo explora um universo clássico - não obstante - uma vez mais, a dimensão espacial de pavilhão/salão e as “galerias” espaçosas e imponentes, facultam este catapultar involuntário. Não fosse a dimensão megalómana deste espaço permanente de “programação” da Pace Gallery em Manhattan, num distrito de galerias comerciais em Chelsea, a presença deste singular projeto, inicialmente desenhado e apresentado numa exposição bienal, não teria lugar ou enquadramento possível num perímetro citadino a não ser num museu tradicional.
Pace Gallery 540 West 25th Street, New York | Fotografia: Thomas Loof, cortesia Pace Gallery.
A 14 de Setembro deste ano (2019) a Pace Gallery abre o seu mais recente “Quartel-General” em Chelsea/Nova Iorque: um novo edifício com oito andares, desenhado por Bonetti/Kozerski Architecture, que abre a temporada, que por ora se prevê de dois anos, de inaugurações de Mega Galerias de renome. A Pace inaugura este edifício com mais de sete mil metros quadrados no número 540 West da vigésima-quinta rua, com uma exposição de esculturas de Alexander Calder, um novíssimo desenho panorâmico composto por vinte e quatro painéis de David Hockney, que se prevê ocupar/cobrir na totalidade a superfície da parede de um dos pisos, uma exposição de biomórficas pinturas abstratas de um dos mais jovens artistas da galeria Loie Hollowell, e por fim a apresentação das esculturas-candelabros de Fred Wilson. A par do espaço expositivo, interior e exterior, este edifício terá ainda disponível ao público uma biblioteca de pesquisa dedicada à arte, espaços para arquivo e armazenamento de obras, uma zona de restauração, e por fim, no sétimo andar do edifício, uma área exclusivamente dedicada à performance-art, intitulada LIVE, que acolherá também quatro vezes por ano concertos ao vivo. Para esta nova faceta das artes performáticas, a Pace contratou um curador permanente Mark Beasley, anteriormente curador de media e performance no Hirshhorn Museum and Sculprture Garden em Washington DC. Adicionalmente a este programa, a Pace acaba de lançar PaceX, um projeto dedicado a comissionar intervenções que cruzam/unem Arte e Tecnologia, liderado por Christy MacLear, a desenrolar-se em espaços e calendário ainda a determinar. Esta programação que acabo de descrever encaixaria perfeitamente num qualquer perfil de um Museu de Arte Contemporânea Internacional em que as temporadas se anunciam com uma diversidade de exposições individuais, projetos especiais por artistas convidados, programas paralelos de artes performáticas, e muito mais. Os arquitetos deste novo edifício da Pace em Nova Iorque, que mais que duplica os metros quadrados que a galeria já tem disponíveis na cidade, tiveram como ponto primordial de foco questionar e simultaneamente demonstrar como se deverá encarar a galeria de arte no século XXI: Como resposta, o projeto determina a reavaliação dos conceitos precedentes e redefine o paradigma em termos de construção e desenho. Se pegarmos em alguns exemplos comparativos, o Met Breuer em Upper East Side, que acolheu anteriormente o Whitney Museum of American Art em Nova Iorque, este novo espaço da Pace fica apenas aquém por uns meros novecentos metros quadrados. Já este ano, também a galeria David Zwirner comunicou que em 2021 abrirá um novo espaço em Chelsea na vigésima-primeira rua, com mais de quatro mil e seiscentos metros quadrados dedicados unicamente a exposição. Curiosamente, também devido à proximidade, esta nova galeria vai ter uma dimensão semelhante ao novo Whitney Museum of American Art, poucos quarteirões mais abaixo e com cerca de 5.800 metros quadrados de exposição. A questão que eventualmente se levanta a este ponto, sem que esta tenha um caráter positivo ou negativo, mas apenas de indagação e análise, e concordando que a dimensão deixou de ser critério ou argumento, é talvez tentar apreender: o que mudou no mercado da arte? Quais serão hoje as razões que nos fizeram alcançar o momento da musealização das Galerias Comerciais de Arte. O público/audiência que “consome” arte aumentou exponencialmente nos últimos dois anos. A massificação de eventos, como são as feiras de arte, geraram novas categorias de audiência, talvez mais despreocupadas, espontâneas, eventualmente menos especializadas, mas concomitantemente curiosas e espertadas. Numa era em que a comunicação se produz mais do que nunca em tempo real através de redes sociais (Arts Friendly) como o Instagram ou o Twitter, o registo e difusão de imagens assume outras funções, simultaneamente, como será o caso de promocional ou marketing, sejam os comunicadores da esfera individual/pessoal ou empresarial/comercial/pública. Estes fatores fomentaram uma modernizada perspetiva e entendimento do que anteriormente se interpretava como um espaço maioritariamente elitista. Em 2018, o mercado mundial da arte manteve um crescimento cementado de cerca de 6%, o que representa mais de dezasseis biliões de dólares de um total de sessenta e oito biliões de dólares em vendas (Números Art Basel & UBS Art Market Report 2019). Os declarados millennials (milenares) representam hoje quase 50% dos colecionadores/compradores ativos de arte. Estes fatores contribuem seguramente para a redefinição estratégica das grandes galerias de arte. Se há cerca de cinco anos atrás o público se questionava ser ou não pertence do espaço da galeria comercial - que se caracterizava maioritariamente como um ponto exclusivo para o visitante/colecionador com poder de aquisição - hoje estes espaços estão categoricamente a afirmar-se como amigos de qualquer público, redefinindo o paradigma de exclusividade para acessibilidade. Os “pesos-pesados” da arte contemporânea, Pace, David Zwirner, Hauser & Wirth, e Gagosian, ao redesenharem as suas novas casas pré-definem o significado de galeria colocando a ênfase não só na comercialização e mostra de arte contemporânea, mas na capacidade de prover um serviço mais completo, incluindo necessidades básicas mais abrangentes como é a restauração ou mesmo o acesso a casas-de-banho. A galeria comercial de arte, apesar de todas estas mudanças - hipoteticamente evoluções - não descura, no entanto, o seu principal objetivo, que é indiscutivelmente a comercialização de obras arte. A estratégia de acessibilidade e proximidade, resultante de um mercado saudável e com um crescimento solidificado, não só ambiciona providenciar um serviço otimizado aos clientes atuais, como vislumbra conquistar uma clientela que até hoje se poderia sentir particularmente excluída ou dissociada do grupo. Na realidade, o colecionador de arte - por defetividade – sempre ambicionou possuir obras de arte dignas de museu, e o que estas Mega Galerias lhes vêm proporcionar com este novo formato é precisamente isso, um espaço digno e melhorado em que as obras de arte contemporânea, temporariamente acessíveis às massas, são expostas à semelhança e com a dignidade presenteada por um “qualquer museu”. Estes novos espaços comerciais de arte, que atualmente nomeamos de Mega, são seguramente uma evolução em resposta à procura e robustez deste mercado, onde a comercialização de objetos multimilionários se tornou corriqueira e menos esporádica. O que eventualmente não iremos saber com tanta celeridade é se a intenção dos Mega galeristas tende a aproximar-se mais do caráter distintivo do serviço público, exclusivo até hoje, aos Museus. Indiscutível será dizer que à semelhança do que acontece hoje em qualquer Museu, as Mega galerias passam a ser um destino cultural versus local en passant, onde tradicionalmente entrávamos para apreciar alguns trabalhos de um só artista. A ambição destes bilionários da arte, e nas palavras de Marc Glimcher (Presidente e CEO da Pace Gallery), é que as futuras galerias de arte sejam uma espécie de local de congregação, à semelhança “das igrejas”.
Sérgio Parreira |