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COREOGRAFAR ALÉM DO SUJEITO. A CRISE DA MATÉRIA EM THE ARTIFICIAL NATURE SERIES, DE METTE INGVARTSENALEXANDRA BALONA2017-03-28
Como alternativa, e evitando a categorização, sugerimos três linhagens teóricas, tentaculares e permeáveis entre si para reflectir sobre algumas destas singularidades coreográficas: hibridismo, matéria e comum. Neste sentido, tendo como foco a retrospectiva The Artificial Nature Series da coreógrafa e performer dinamarquesa Mette Ingvartsen, patente no Hebbel Am Ufer (HAU), em Berlim, no passado mês de Fevereiro, e que se fundamenta na premissa de coreografar matéria não humana e naturezas artificiais, propomos alicerçar esta reflexão em algumas das crises que a informam, nomeadamente a da matéria. Em The Artificial Nature Series, coreografia surge como tecnologia expandida em diversos formatos, ora tangentes à instalação, ao excluir performers humanos em palco, como é o caso de Evaporated Landscapes (2009), ora coreografia enquanto prática-discursiva (neste caso, próxima da lecture-performance), como em Speculations (2011) que, através das ferramentas descritivas e especulativas, apela à imaginação do espectador, no sentido de criar uma performance não só situada e imersiva, como virtual e imaginada. Como referimos, coreografar matéria não humana, em detrimento de coreografar corpos humanos em movimento (uma das premissas ontológicas da dança na sua acepção mais corrente), funda-se na consciencialização ética perante diversas crises, não somente política, social e económica, como sobretudo, crise ecológica e ambiental sem precedentes. Numa época em que a acção humana se revela já a maior força transformadora do planeta Terra, cientistas e geólogos propõem a designação de Antropoceno para a era geológica vigente, em substituição de Haloceno. Um termo que, não sendo consensual, tem vindo a ser disputado por outros conceitos, como o de Capitalocene, Chthulucene (Haraway, 2016), Novo Regime Climático (Latour, 2015), entre outros. A par da referida viragem ética no paradigma das artes performativas, testemunhamos uma série de outros discursos anti-antropocêntricos e materialistas que têm adquirido protagonismo no campo filosófico ocidental, desde o início deste século, nomeadamente, vital materialism (exemplificado na obra de Jane Bennett, cuja epígrafe abre esta reflexão), posthumanism, anti-humanism, speculative realism, new materialism, new realism, object oriented ontology, entre outros. As suas proposições não são consensuais e por vezes até contraditórias, todavia, podemos afirmar que, de um modo geral, dão seguimento à crítica anti-humanismo do século XX, propondo ontologias materialistas, na esteira de Espinosa, Whitehead, Deleuze, entre outros. Como excurso, propomos algumas observações sobre crise, os seus discursos e normalização, bem como as contaminações na esfera artística e curatorial.
A palavra crise está na ordem do dia. Uma palavra exausta pela fadiga do uso, e que nos vai deixando em suspenso na eminência de respostas, que podem ser as mais diversas. Desde um optimismo negligente, com a crença de que tudo se resolverá por si, à “paralisia”, como nota Stengers, “dada a diferença desproporcionada entre aquilo de que somos capazes e o que deveria ser feito” (Stengers, 2015: 22), à indignação e revolta ou, como sugere Haraway, criando ligações improváveis e conecções criativas no sentido de aprendermos a viver e a morrer bem uns com os outros: “(…) make kin in lines of inventive connection as a practice of learning to live and die well with each other in a thick present. Our task is to make trouble, to stir up potent response to devastating events, as well as to settle troubled waters and rebuild quiet places.” (Haraway, 2016: 14) Desde o início do século XXI, a palavra crise tem pontuado os mais diversos discursos, do económico ao político, do social ao ecológico, do cultural ao artístico, despoletada por eventos irredutíveis: desde o 11 de Setembro que acarretava em si já diversas camadas de crise (política, ideológica, económica, neocolonial) e que fraccionou a ecologia mundial em outras tantas; ao crash financeiro do subprime em 2008 que expôs a irresponsável desregulação dos mercados financeiros mundiais e a dependência política dos Estados individuais das instituições financeiras, dos interesses económicos e das grandes multinacionais; à dramática crise ecológica numa era que vive há já algumas décadas um novo regime climático; à intolerável crise humanitária dos refugiados, à guerra na Síria e ao conflito internacional contra o auto-proclamado Estado islâmico; ao crescimento dos populismos e das políticas de extrema-direita na Europa e no mundo (de que o sucesso da geringonça portuguesa parece ser uma excepção); à nova era Trump na política americana e mundial que, como se observa, entrou já em processo de agravamento e escalada das mais diversas crises, entre outros. Crise assume, porém, diversos modos discursivos. Como nos demonstrou Agamben, crise é uma das vagas noções não jurídicas que tem sido usada, não só para aplicar medidas de segurança não regulamentares aquando e após os decretados “Estados de Excepção” como, em vários casos, para justificar medidas políticas que prolongam a austeridade económica. Na sua origem, a palavra crisis é a tradução latina da palavra grega krisis cuja raíz etimológica reside no verso grego crino. Segundo Agamben, para além de este ser um “termo jurídico para designar o julgamento num tribunal”, possui outras tradições semânticas: “um termo médico que se referia ao momento em que o médico deveria decidir se o paciente poderia sobreviver ou não” e um termo teológico, no qual “crisis seria o momento em que Cristo se pronunciaria no dia do Julgamento Final”. A diferença entre o uso contemporâneo da palavra crise e a sua história semântica é temporal, como referiu Agamben, deixando de ser um momento isolado no tempo para coincidir hoje “com o curso cronológico do tempo, de forma a que, não somente em economia e política, mas em todos os aspectos da vida social, crise coincide com normalidade e torna-se, deste modo, um instrumento de governação” (Agamben, 2013a). Assim, não se trata somente de um meio governativo de perpetuar “estados de excepção” (veja-se o prolongamento desse decreto em França após os ataques terroristas), como é também usado pelo próprio capitalismo e mercados económicos (de que os Estados se encontram, em certa medida, politicamente reféns) para, com a justificação de que não existe alternativa, proceder à predação dos mais variados direitos: o desmantelamento do Estado Social e a desregulação do mercado de trabalho que impedem de projectar um futuro com estabilidade, a capitalização da esfera privada, da subjetividade e da experiência, a promoção do individualismo e competitividade, com o consequente desgaste da esfera pública e social. Um capitalismo neoliberal global que capta todas as oportunidades, materiais e imateriais, no sentido de uma maior acumulação para benefício de um grupo restrito. Se uma classe média se reduz ou extingue em alguns países de economia débil, ela surge noutras economias emergentes em novas geografias. Assim, o sistema mantém o seu motor que se sustém na imposição da necessidade de crescimento económico e de consumo, sustentado na grande narrativa do progresso científico e tecnológico, e na exploração e exaustão dos recursos, não só naturais como humanos. Para além das referidas crises, como sublinham Cvedjic e Vujanovic [1], há outra menos debatida e que caminha em paralelo com “a crise da democracia, a crise financeira, a crise ambiental, a crise da educação, etc.”, e que se trata da “crise do imaginário social” (Cvedjic, Vujanovic, 2017: 1). Parece consensual que para experimentar alternativas ao neoliberalismo capitalista e reverter a catástrofe ecológica e social que se antevê, será necessário fazê-lo em conjunto, pensando e ensaiando estratégias em comum. Por esse motivo, como refere Esposito, nunca foi tão necessário e urgente pensar hoje a questão de comunidade, já que vivemos numa época que reúne “o fracasso de todos os comunismos com a miséria dos novos individualismos” (Esposito, cit. in Cvedjic, Vujanovic, 2017:1). Cvedjic e Vujanovic tentam traçar as causas que condicionam este “imaginário social”, porque se o real socialismo falhou, será importante aprender com as suas falhas sem, no entanto, nos resignarmos ao individualismo neoliberal que aliena a esfera pública e social na promoção da competitividade. E prosseguem com a seguinte hipótese: The problem lies in the inability to recognize that the pre-individual heritage (language, habits, sensations, history) and the transindividual horizon (the capacity to produce together) form the generic base on which the individual can prosper. Social consciousness of the pre-individual and transindividual enriches the generic base, in which there is more abundance and multiplicity to share and distribute among the many than the image of scarcity and austerity might suggest to an individual who must struggle to obtain his or her share.” (Cvedjic, Vujanovic: 2017:3). Seguindo esta linha de pensamento, mas incluindo nesta alteridade do transindividual a matéria não-humana que perfaz o planeta Terra, lembramos como Isabelle Stengers, no seu livro In Catastrophic Times. Resisting the Coming Barbarism (2015), refere que esta não será uma crise passageira se não existir uma mobilização colectiva no sentido de aprendermos novos modos de “compor com” esta força que é o planeta Terra. Um planeta que não se trata de uma entidade concreta que os cientistas podem resumir num conjunto de teorias, leis físicas e ou procedimentos regulares, na presunção domínio antropocêntrico da ciência sobre tudo o que é externo ao humano. No seguimento de Lovelock e Margulis, que na década de setenta baptizaram o planeta Terra de Gaia, Stengers recupera este nome para uma entidade que nos transcende e que nos ignora, que é indiferente a nós, humanos, e que se manifesta independentemente do nosso suposto domínio intelectual, científico e tecnológico (como podemos testemunhar em eventos como tsunamis, furações, aquecimento global, etc.). Daí o apelo de Stengers da necessidade de aprendermos a “compor com” Gaia e com a sua intrusão: “Naming Gaia is naming a question, but emphatically not defining the terms of the answer, as such a definition would give us, us again, always us, the first and last word. Learning to compose will need many names, not a global one, the voices of many peoples, knowledges, and earthly practices. It belongs to a process of multifold creation, the terrible difficulty of which it would be foolish and dangerous to underestimate but which it would be suicidal to think of as impossible. There will be no response other than the barbaric if we do not learn to couple together multiple, divergent struggles and engagements in this process of creation, as hesitant and stammering as it may be.” (Stengers, 2015: 50) Para além de Gaia, este termo de origem transcendental e mitológica, outros conceitos como Antropoceno ou Capitaloceno têm pontuado o debate não só nas arenas científicas, ecológicas e académicas, como também começam a integrar o léxico do público geral mais interessado, e têm informado práticas artísticas, curatoriais e editoriais. [2] Formulado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, o conceito Antropoceno parte da premissa de que a acção humana é a maior força de transformação da biosfera e das condições geológicas no planeta Terra, o que motivou propor esta nova terminologia em substituição a Holoceno (que nomeava a anterior era geológica). Embora não sendo consensual, este termo contribuiu para sublinhar que a catástrofe climática que se avizinha não se trata de uma fábula, tendo promovido uma alteração de ordem no binómio humanidade-natureza. Hoje, homem e o social são considerados menos como forças de supremacia sobre a natureza, e mais como parte integrante e dependente dela. Capitaloceno é outro dos termos alternativos a Antropoceno e propõe o capitalismo como “um modo de organizar a natureza – como um ecologia-mundial capitalista, multi-espécie e situada” (Moore, 2016: 29), ou seja, que reúne capital, poder e natureza, e terá sido usado por diversos autores, nomeadamente Haraway (2015), entre outros.
Coreografar além do sujeito: Hibridismo, Matéria, Comum Desde a última década é notório não só um redireccionamento ético nas artes performativas, como também uma intensificação ou um regresso ao palco de corpos (híbridos) em movimentos (híbridos), subjectividades não humanas naturais e artificiais, perante a consciência de um mundo global mais-do-que-humano. Na sua publicação mais recente intitulada Singularities. Dance in the age of performance (2015), André Lepecki destaca, precisamente, algumas categorias onde insere propostas coreográficas recentes e que confirmam algumas destas observações: “Moving as some thing”, “In the dark”, “Limitrophies of the human: mostruous nature, thingly life and the wild animal”, “The body as archive...”, ou “(...) the dancer as worker of history” (Lepecki, 2015). Como alternativa, propomos três linhagens teóricas porosas entre si para ensaiar ligações e, na senda de Haraway, estabelecer relações e redes de conexão entre singularidades coreográficas através dos conceitos hibridismo, matéria e comum. A linhagem hibridismo contamina todas as outras já que convoca o descentramento que permite abrir espaços (híbridos) entre as dualidades. Contudo, trazemos aqui este conceito com foco no sujeito humano e sua hibridez constituinte. Um posicionamento anti-antropocêntrico que contempla a relação da animalidade humana com a não humana, com a química, a biologia, a tecnologia, o queerness, a vivência cultural, histórica e de memória de cada subjectividade nómada. Como exemplo, poderíamos referir a obra de Marlene Monteiro Freitas, ou o trabalho Abecedarium Bestiarium. Portraits of affinities in animal metaphors (2012) de Antonia Baehr, ou Nameless Natures (2015) de Joana von Mayer Trindade, que foca a hibridez do sujeito, das relações que estabelece com o outro, a matéria e o lugar, entre muitos outros. A linhagem matéria desloca o foco do coreográfico para materialidades, entidades orgânicas e inorgânicas além do sujeito humano, e para o questionamento das grandes narrativas modernas entre sujeito-objecto, humano e natureza. Alicerça-se, como referimos, nos debates recentes que apelam a uma consciencialização ética e ecológica no contexto contemporâneo de Antropoceno e Capitaloceno. Partilhando estas preocupações poderíamos citar, em tom de exemplo, obras como Oblivion (2015), de Sarah Vanhee, um ensaio sobre o consumismo e a acumulação de objectos e detritos; Low Pieces de Xavier Le Roy onde o corpo dos performers incorpora, com uma simplicidade minimal, matérias, entidades e paisagens naturais (animais, vegetais e inanimadas); SHARK * The Celestial Emporium of Benevolent Knowledge (2015), de Catarina Miranda e Jonathan Saldanha, uma sátira sobre a violência da insustentabilidade ecológica, social e política decorrente do capitalismo neoliberal; as recentes propostas de Vera Mantero, como o projecto Uma Horta em cada esquina (2013-14), em colaboração com o arquitecto Rui Santos e a coreógrafa Elisabete Francisca, ou a sua coreografia O Limpo e o Sujo (2016). E ainda, de regresso ao foco deste texto, analisaremos através desta lente as obras que compõem The Artificial Nature Series (2009-2015), de Mette Ingvartsen. Interdependente também da noção de hibridismo e de matéria está a linhagem que nomeamos de comum e que se ancora na relação do sujeito com o Outro, sendo que este Outro se prevê não só singular plural, como natural artificial, real e utópico. Reitera-se subjectividade (humana) como sendo não estanque em si mesma, ou seja, constituindo-se num permanente processo relacional os as mais variadas entidades, seres, sistemas, conexões e matérias. Como exemplo de artistas que testam estas questões e experimentam “modos de fazer em comum”, sublinhamos a investigação metodológica de João Fiadeiro, denominada Composição em Tempo Real (CTR), e o trabalho colaborativo que desenvolveu posteriormente com a antropóloga Fernanda Eugénio no And_Lab (CTR e Etnografia enquanto Performance). Podemos citar ainda as peças De Repente Fica Tudo Preto de Gente, de Marcelo Evelin, e propostas que, recorrendo ao arquivo e à investigação histórica, testam o coreográfico como uma tecnologia que promove as relações entre diversas subjectividades individuais, históricas e culturais. Referimo-nos, nomeadamente, a obras de João dos Santos Martins, como le sacre du printemps (2013), 2013 ou continued project (2015), 2015, a peças como A Mary Wigman Dance Evening (2009), de Fabian Barba, 20 Dancers for the XX century (2012) de Boris Charmatz, ou Monumento 0: Haunted by wars (1913-2013) de Eszter Salamon, entre outras.
Coreografar a (crise) da Matéria: The Artificial Nature Series No passado mês de Fevereiro, no HAU em Berlim, teve lugar a reposição de três peças da coreógrafa Mette Ingvartsen que integram a série The Artificial Nature Series: Evaporated Landscapes (2009), The Artificial Nature Project (2011) e a última intitulada Speculations (2011). A outra peça que compõe esta série intitula-se The Light Forest (2010) e trata-se de uma proposta site-specific nos bosques em redor de Salzburg, que explora as qualidades sensoriais e simbólicas da paisagem noturna, iluminada pontualmente pela instalação de focos de luz, num percurso íngreme que implica o espectador física e emocionalmente. Estas obras não foram pensadas desde o início como uma série, contudo, Speculations que encerra o ciclo, veio confirmar um interesse comum que perpassa as restantes: a premissa de coreografar matéria não humana, natural ou artificial, real ou utópica, excluindo por completo a presença de performers humanos, como é o caso da primeira, reduzindo a sua presença como acontece na segunda, e propondo na última, o discurso como ferramenta performativo-especulativa, activada em conjunto com a imaginação situada de cada espectador. Podemos ver aproximações, nesta série, ao posicionamento ético-político que a teórica Jane Bennett sublinha no seu livro Vibrant Matter: A Political Ecology of Things (2010), ao propor uma "ontologia positiva da matéria (...), que expande os conceitos de agenciamento, acção e liberdade”, e na destabilização dos binários “vida/matéria, (...) vontade/determinação, e orgânico/inorgânico” no sentido de “induzir nos corpos humanos uma abertura estético-afectiva para com materialidades vitais” (Bennett, 2010: viii). Mette Ingvartsen explicitamente referiu a sua motivação em coreografar matéria e não coisas com formas e funções definidas, objectos que mais directamente convocamos na dialética sujeito-objecto, cuja destabilização lhe interessava testar. Assim, Evaporated Landscapes (2009) [3] expande o formato da coreografia para a instalação visual e sonora de matéria efémera em movimento, evocativa de paisagens naturais ou utópicas, com foco nos elementos água e fogo. Com duas plateias colocadas sobre o palco, uma em frente à outra em total escuridão, o evento decorre no centro destas. À entrada, o público depara-se no palco com algumas pequenas elevações de espuma iluminadas que nos remetem para gelo. A performance visual prossegue, sempre acompanhada por instalação sonora que é vital para a sinestesia e inserção do espectador, transportado para paisagens naturais líquidas e evaporáveis, reconhecíveis ou utópicas. Na extremidade do palco, uma máquina de vapor de água, operada um agente quase invisível, lança e simula a movimentação de fluídos que associamos ao correr de água, inundando todo o palco. Prestes do final da performance, o cenário muda radicalmente, e a luz branca dá lugar à cor vermelha acompanhada com o som de crepitar do fogo, simulando outra paisagem reconhecível. Trata-se de uma performance contemplativa que ao tentar simular e convocar matéria não humana para o palco, em detrimento da figura humana, opera uma (re)distribuição política do sensível (Rancière, 2004), porventura tanto mais eficaz ao dispor as duas plateias uma em frente à outra, colocando o espectador em claro confronto ético consigo e com o outro, na sua posição deslocada e complacente perante o que acaba de ser evocado (a crise climática). The Artificial Nature Project (2011) trata-se de uma proposta coreográfica mais frágil, tanto nas suas premissas, como no resultado. Mantém a intenção de coreografar matéria e de simular fenómenos naturais, mas fá-lo com recurso a um só material abstracto: confettis prateados que inundam o palco e que refletem os diversos efeitos de luz e de manipulação pelos performers, conduzindo o espectador à leitura de eventos naturais, como a movimentação de água, geisers, explosão de lava, fogo, tempestade, entre outros. Reitera o descentramento da figura humana sem, contudo, a excluir na totalidade, dado que os performers têm um papel activo na manipulação do material, embora se mantenham tão imperceptíveis quanto possível (figurino escuro e face oculta). Subverte-se novamente o protocolo teatral da visibilidade ao apresentar a peça em quase total escuridão, exceptuando as luzes que iluminam o material. A fragilidade desta proposta reside, por um lado, no facto de não escapar a manipulação do material pelos performers, o que convoca uma vez mais a supremacia da acção humana sobre a matéria (e a natureza), mesmo nos momentos em que simula o quanto a matéria pode ser indomável. Por outro lado, muito embora se trate também de uma proposta contemplativa, não possui a intensidade poética de Evaporated Landscapes, nem a potencialidade ético-política. Apresenta, todavia, um dado que contribui a seu favor. Frequentemente desvalorizamos os modos de produção e de distribuição das obras de arte enquanto opções éticas: esta, sendo uma performance feita com um só material, muito leve e pequeno, é de fácil transporte e circulação, o que reduz a sua pegada ecológica no mercado de apresentação e distribuição da arte. Speculations (2011), uma performance-prático-discursiva e a última peça desta série será, porventura, a mais estimulante, com repercussões no formato do seu trabalho seguinte, a coreografia 69 Positions (2014), da série Red Pieces. Esta peça não só expande o coreográfico para o formato de lecture-performance, como destabiliza uma série de protocolos de recepção convencional em dança e coreografia. O público entra directamente para o palco por uma porta lateral, é cumprimentado e (des)mobilizado pela artista, desconstruindo a posição convencional de plateia. Em seguida, Ingvartsen inicia a descrição de um espaço, como se tratasse do espaço onde nos encontramos, mas que rapidamente nos damos conta não ser. Através do discurso oral, e usando sempre os tempos verbais no presente do indicativo, Mette Ingvartsen subverte o discurso descritivo com o especulativo (ou story telling), transportando o público para uma experiência que funde a imaginação situada de cada espectador, com a descrição do aqui e do agora, e com o que vemos acontecer. Não se trata de uma proposta participativa, muito embora Ingvartsen interpele directamente o espectador a ter um papel activo física e mentalmente. Podemos distinguir três partes em Speculations. Num primeiro momento, a artista começa por relatar duas performances históricas, como se estivessem a ocorrer naquele preciso espaço e momento, sendo uma delas, a performance de Yves Klein Anthropometrie de l’époque bleu (Paris, 1960). Num segundo momento, o público é convidado a sentar-se numa bancada a sala passa a completa escuridão. A artista descreve uma paisagem desolada, que o público vai imaginando progressivamente como um cenário pós-catástrofe natural, semelhante a algumas imagens mediatizadas de que guardamos registo do tsunami que ocorreu no Japão, em 2011. Dessa paisagem, e após a progressiva (re)iluminação do espaço, Ingvartsen prossegue a descrição de um outro acontecimento. Trata-se do relato minucioso da última cena de um filme [4], quando a protagonista feminina testemunha/imagina a explosão de uma casa e de todo o seu conteúdo. Uma crítica ao consumo e ao capitalismo que expõe como os objectos e as coisas que ocupamos e que nos ocupam são redutíveis a matéria, que na explosão é transformada em micro-pedaços indiscriminados. No último momento desta performance, findo o discurso, a artista com a ajuda de um colaborador, oferece ao espectador uma última imagem performativa da matéria. A mesma matéria que tinha sido usada em The Artifical Nature Project era de novo ali convocada e manipulada com as mesmas máquinas de movimento de ar, elevando e movendo os confettis prateados como se por acção do vento ou de uma tempestade. Recuperam-se também as imagens virtuais que cada espectador construiu sobre a explosão dos objectos e a sua redução a matéria na descrição do filme. Deste modo, Speculations encerra The Artificial Nature Series com uma reflexão circular sobre a matéria que, como propõe Haraway, propõe ligações mesmo que estranhas e inesperadas, “making kin in oddkin” (Haraway, 2016). Uma “sympoiesis” como forma de imaginar modos de fazer-com, em vez de uma autopoiesis, ou como adverte Stengers, um modo de agir que nos irá implicar a “compor com” Gaia, essa força que é a Terra.
Ser-em-relação-com o mundo No último volume da série Homo Sacer (1995-2014), o livro intitulado L’uso dei corpi [O uso dos corpos], publicado em 2014, o filósofo italiano Giorgio Agamben prossegue a sua investigação arqueológica sobre a política ocidental, uma “máquina ontológica e biopolítica” (Agamben, 2014: 259). Não será este o momento para dissecar as suas proposições, todavia, destacamos uma breve parte desse estudo que visa repensar hoje modos de agir no político, ao propor uma ontologia relacional: um modo de ver o humano não como agente antropocêntrico sobre o mundo, agindo e dispondo da natureza, dos seus recursos, e dos mais variados seres e entidades, mas constituindo-se em permanente processo relacional, como parte integrante de tudo o que o rodeia. Como todas as investigações agambenianas, na senda de Foucault, esta trata-se de uma escavação arqueológica e parte de uma das diversas divisões aristotélicas de que somos herdeiros [5] para pensar o trabalho do homem. Ergon é a palavra grega para trabalho humano, que Aristóteles dividiu em duas categorias: energeia (ser-em-acção) e dynamis (potencialidade). Contudo, nos antigos e primeiros escritos aristotélicos, a palavra energeia não constava da divisão, mas sim, a palavra grega chresis, que significa uso e que não tinha o sentido utilitário que hoje lhe atribuímos. Este sentido utilitário, segundo Agamben, terá sido adquirido durante a modernidade, tendo já o escolasticismo medieval introduzido um conceito instrumental para a actividade humana [6]. Chresis, a palavra uso em grego antigo, ou Chrestai, usar algo significava “dar-se a esse algo”, expressava “a relação que temos com nós mesmos, o afecto que recebemos quando estamos em contacto com uma certa entidade” (Agamben, 2014: 53, minha tradução) [7]. Nesta senda, Agamben propõe recuperar este conceito de uso-enquanto-relação, não só como actividade humana, mas como fundamento para outra modalidade ético-política de estar no mundo, reiterando que “ético é o sujeito que se constitui a si próprio nesse uso” (idem). Esse uso-relação, idealmente, conformará uma forma-de-vida, não estanque, mas que se vai constituindo em permanente processo relacional. Assim, se o sujeito não existe previamente mas vai se constituindo através das relações com o que o rodeia, uma forma-de-vida não é algo externo que se adquire (uma capacidade) mas é algo que se habita. Mette Ingvartsen serviu-se do coreográfico para expor a potencialidade inalienável da matéria. Contudo, matéria e natureza não são externas mas constituintes do sujeito, aquele que com os mais diversos “outros” terá de aprender a compor novos modos de existência.
Alexandra Balona
[1] Bojana Cvedjic e Ana Vujanovic, teóricas e investigadoras na área das artes performativas, de nacionalidade ex-Juguslava (hoje, será correcto dizer de nacionalidade sérvia), experienciaram a condição política e social de viver entre o bloco de Leste comunista e o capitalismo ocidental, no âmbito de um sistema político socialista que se designava não oficialmente por “non-aligned”.
Agamben, Giorgio (2013a), For a theory of destituent power, Public lecture in Athens, 16.11.2013, Invitation and organization by Nicos Poulantzas Institute and SYRIZA Youth in www.chronomag.eu, consultado 18-03-17. Agamben, Giorgio (2013b), Notas pessoais seminário European Graduated School (EGS), não publicado.
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