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MISE EN FRICHEA OCUPAçãO DO BALDIO E A CONSTITUIçãO DO ESPAçO ATíPICOAIDA CASTRO2007-11-02“Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, (...). Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios. (...), os refugiados de Ersília vêem o intricado de fios estendidos e de postes que se ergue na planície. Isto ainda é a cidade de Ersília, e eles não são nada. Reedificam Ersília noutro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante que desejariam mais complicada e ao mesmo tempo mais regular que a outra. Depois abandonam-na e levam ainda para mais longe tanto a si próprios como as suas casas (....)” Italo Calvino, Cidades Invisíveis O que se traz para este texto é um breve caso de estudo que apresenta um modelo, uma hipótese de política cultural, com tudo o que pode conter de utopia e de falibilidade na sua possível aplicação ao actual contexto português. Esta participação quer arriscar, quer denunciar, quer espicaçar os interessados e os potenciais agentes, quer apoiar um trabalho já longo e permanente, mas também quer abrir uma brecha nesse discurso dito “independente”, “informal”, “não-institucional”, localizado em várias frentes. Para que o ânimo não encontre o fim da linha, e também numa tentativa de reorganizar interesses, deixa-se aqui um espaço-testemunho que sai da discussão trivialmente assente nos binómios in/out ou on/off e outras nomenclaturas já esgotadas na sua fetichização que entretanto proliferaram. Vamos sabendo de projectos, pelas suas manifestações, que não querem debater (n)os lugares tradicionais da arte, porque já não centram essas problemáticas em si mesmos, mas noutras como o fazer transbordando os limites demasiado ditados que jogam a neutralidade cultural. Nesta direcção, este caso apresenta uma linha de trabalho colectivo numa constituição que parte do baldio. 1. La Friche La Belle de Mai (1) é um lugar na cidade de Marselha, sul de França. Como a cidade de Calvino, aqui teceram teias de relações sucessivamente protagonizadas quer por artistas, produtores culturais, projectos colectivos, editoras, como por exposições, concertos, rádio, peças de teatro e dança, públicos, etc. Desde 1992, nas infra-estruturas da falecida “Manufacture des Tabacs” (2) do quarteirão industrial La Belle de Mai, a associação “Système Friche Théâtre”, hoje dirigida por Philippe Foulquié, promove la culture vivante. Este formato não é uma novidade, os espaços baldios e as ruínas industriais testemunhos da deterioração económica e social têm sido ocupados desde os anos 70 (3) por projectos emergentes de cariz cultural, social e político que proporcionam a re-territorialização e o retorno ao espaço real como reposta à tirania do tempo real, virtual e mundial. Este pensamento de Paulo Virilio esclarece precisamente a estratégia de interpelar a cidade. Da necessidade de colocar um corpo num território quando a opção principal é trabalhar a permanência artística: l’artist, la ville, sa ville três palavras que sobrepostas definem um dos princípios do sítio. Inserido num movimento “artfactories” (4) apresenta uma solução e mutação da política cultural — neste caso de Marselha, as instalações de “La Friche” foram cedidas pela câmara à associação que gere o espaço de pesquisa e experimentação dedicado à criação contemporânea. Na conciliação de produtores artísticos e artistas residentes ou convidados assegura-se a permanência artística na cidade, garantindo como compromisso um dispositivo de acolhimento e de trabalho. Ateliês pessoais, salas de teatro e exposições, cantina, produtoras de multimédia e cinema estão organizados num espaço que não esconde ruínas, e acopladas juntam-se novas soluções arquitectónicas que proporcionam a mestiçagem. Da arquitectura, da arte, da cultura, dos públicos. Com programação mensal que compreende as propostas dos agentes e dos residentes, e com a edição de um jornal semestral que debate e apresenta os acontecimentos em reflexões teóricas, “La Friche La Belle de Mai” completa, sem a arrogância de querer substituir, os lugares da cultura. 2. Entre o squat e o phalanstère, La Friche apresenta uma solução que não deixa de ser paradoxal, por um lado assegura um espaço “livre” onde a coabitação e o reencontro são premissas - basta pensar que cada interveniente age individualmente e se debate numa programação geral do sítio -, e por outro lado enclausura uma série de apoios estatais e privados que vêm da aplicação de uma política pós-descentralizada: ora de uma necessidade de desenvolvimento pela cultura, ora de uma atracção fatal por aquilo que zumbe e faz ruído. Em 2001 o relatório "Friches, laboratoires, fabriques, squats, projets pluridisciplinaires...: une nouvelle époque de l'action culturelle” (5) produzido por Fabrice Lextrait, antigo administrador de La Friche, foi apresentado publicamente por Michel Duffour (6), na altura secretário do Estado do Património e da Descentralização Cultural. Dividido em dois volumes, o relatório reúne numa primeira parte estudos de caso situados por toda a França, e numa segunda parte analisa fundamentos dos projectos, assim como problemáticas nas ligações entre práticas artísticas e o público. Ou seja, ao mesmo tempo que informatiza e localiza estes sítios antes invisíveis para uma entidade como o Estado, denuncia formas organizativas e seus agentes. Apesar da proposta feita a F. Lextrait alertar que a ideia não será a de institucionalizar esses espaços mas a de resolver uma política cultural que lhes sirva de apoio (7), estamos perante uma clivagem. Estes projectos têm como fundamento perfis incertos e provisórios. Mesmo que sejam economicamente apoiados devem manter essa dinâmica “não-racional” por ser exactamente aí que diferem de qualquer carácter estanque e institucional. Há um espaço-agente, sem dúvida, mas se este não nomadizar, acabará por gerar demasiadas regras, e assim falível de se tornar ele próprio outra clausura. No caso do La Friche a associação SFT lida com a burocracia, enquanto os “frichistes” convivem entre si sem essas conformidades, portanto mais livres e autónomos. O que se faz ali cruza trabalhos, por exemplo o colectivo e editora “le Dernier cri” (8) ilustrou a capa do último jornal, cruza públicos e cruza práticas artísticas com públicos. Estes acarretam todas as problemáticas que implicam relações, e isso é sempre mediado por quem está no sítio. Só que estar neste sítio não é imposto, não implica estar moldado a uma forma, ele próprio é uma brecha na cidade. O empírico revela-se liberto tanto a nível de trabalho como para quem é visitante. Por isso é um espaço a reconsiderar. A verdade é que alguém terá que lidar com o reverso da moeda, a não ser que se exija menos e se trabalhe em ambientes mais precários. 3. Os riscos que se colocam ao entregar o relatório, gesto que levou à reunião de todos os agentes implicados na redefinição da política cultural e a um colóquio realizado no La Friche em Fevereiro de 2002 com o nome “Nouveaux territoires de l’art/new arts arenas” (9), são, entre os apontados, a absorção institucional que origina uma capacidade de ser escutado, e a possibilidade de domesticação. E sendo assim interpelam-se dúvidas: qual será a via mais adequada para os projectos que se territorializam ao redor da instituição? A disseminação ou a constituição de territórios colectivos independentes? Será a disseminação de territórios colectivos independentes? Ou a independência será uma falácia? A autonomia será indispensável, e, de resto, terá que se insistir nas deficiências auditivas para que se mantenha o fôlego dos projectos, para não se cair em propostas relacionais, e manter algum antagonismo. E, principalmente, nestas outras arenas possibilitar a relação viva com a alteridade, e a liberdade de criar em função de tensões afectivas que reúnem os colectivos, e assim direccionar o dispositivo artístico para a conexão progressiva às práticas sociais e políticas. A dimensão micropolítica revelar-se-á pertinente—mantendo a dimensão crítica e interventiva para que se defina uma política própria da arte—excluindo posições militantemente pedagógicas, ou temas de engajamento político, que muitas das vezes utilizam os seus meios como exercícios de denunciação e de “despertar consciência”, na medida em que se revelam mais perversos ao revelar faces visíveis da estratégia de dominação. O que se convoca para o terreno é, citando Suely Rolnik, a experiência destas estratégias nos corpos vibrantes, a face invisível, inconsciente, micropolítica, que interfere nos processos de subjectivação (10). Aida Castro NOTAS (1) Sítio: www.lafriche.org/ (2) Mais informação sobre a fábrica: www.lafriche.org/friche/zdyn1/rubrique.php3?id_rubrique=104 (3) Exemplos anteriores aqui: Berlim, www.ufafabrik.de/intro.php; Amesterdão, www.melkweg.nl/; Bruxelas, www.halles.be/ (4) Ver o site de pesquisa Artfactories: www.artfactories.net/ (5) O relatório está disponível aqui: www.culture.gouv.fr/culture/actualites/rapports/lextrait/lextrait.htm (6) Comunicado: www.culture.gouv.fr/culture/actualites/conferen/duffour-2001/lextrait.htm (7) Consultar a proposta formal a F. Lextrait na introdução do primeiro volume do relatório: “Face à la très grand diversité des approches, l’objectifs de cette mission est d’appréhender et de rendre plus explicites les fondements communs de ces initiatives singulières, leurs déterminants artistiques, économiques, éthiques et politiques ainsi que leurs modes d’organisation. Il s’agite en effet de construire une approche raisonné afin que les services du ministère de la Culture puissent les repérer, les écouter et les accompagner sans pour autant les institutionnalise, les enfermer dans des catégories ou créer un nouveaux label”, ao qual F. Lextrait respondeu no segundo volume: “Fondements communs?” (8) www.lederniercri.org/ (9) www.lafriche.org/nta/index1.html (10) In, “La memoire du cops contamine le musée”, Multitudes, 28, 2007. |