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A CORAÇÃO VALENTE NADA É IMPOSSÍVELVICTOR PINTO DA FONSECA2018-03-08 Durante anos não encontrei intuição na poderosa obsessão de Gordon Matta-Clark em cortar casas ao meio e cerrar edifícios, aliada ao rigor geométrico! Realmente, não percebia a obra performativa do Gordon Matta-Clark: primeiro, porque todos os edifícios cortados desapareceram; segundo, porque a "lived performance" de Gordon requeria ser experienciada, requer vivência para ser percepcionada previamente... A experiência da arte é o poder de observar e pensar ao mesmo tempo: "ver" De forma que a minha percepção objectiva da obra do Gordon Matta-Clark era demasiado ténue para aceder à essência íntima da obra e poder ser apelidada de conhecimento (intuitivo)! Da obra de Gordon Matta-Clark restam os registos fotográficos e os filmes, que são objectos interessantes, em parte porque Gordon foi pioneiro a cortar e montar os negativos - o que torna as fotografias mais dinâmicas, menos aborrecidas, como se fossem evocar a experiência directa das obras -, mas não representam (em comparação com os cortes nos edifícios) a relevância dos edifícios cerrados - não elevam a obra a um estado de percepção objectiva. Servem de documentação, mas não têm o poder das intersecções no espaço. Essa foi a sua obra autêntica e desapareceu décadas atrás! Como escreve Walter Benjamim no seu ensaio sobre o surrealismo, "Com efeito não nos adianta nada sublinhar o lado enigmático dos enigmas; pelo contrário, só penetramos no mistério se o encontrarmos no quotidiano". O enigma da obra performativa de Gordon Matta-Clark parecia não ter solução para mim: não havia maneira de penetrar no mistério da lived-performance! No entanto, não me sentia um "perfeito" estranho: reconhecia o escultor criador de lugares potentes, que não foi à escola de Belas Artes, antes estudou arquitectura, o livre pensador - difícil de compreender desde uma única perspectiva -, capaz de influenciar com uma energia incrível um grupo de amigos (que colaboraram ao seu lado nos projectos) protagonistas da "Anarquitectura" realizada por Gordon. O mesmo Gordon que foi capaz de negar os limites do mundo da arte, que tinha um interesse sociológico e afectavam-no as circunstâncias sociais das cidades contemporâneas (realizou múltiplas acções nesse sentido, como abrir um restaurante com comida barata). Tudo estava correcto, tudo excepto o facto de ser conceito e mais conceito: um saber discursivo como uma burocracia racional, não mais do que a abstração, no plano da razão (o saber discursivo dominante na tradição académica com a sua visão racional tem a ver com o conceito, é incapaz de intuir). A intuição, assenta em emoções, não em construção racional! Apercebia-me que o meu intelecto não encontrava o ponto de contacto, o conhecimento intuitivo imediato (sensível), da obra do Gordon Matta-Clark. Não realizava a emoção, não retirava prazer das esculturas. Não reconhecia sentimento físico - relação íntima entre a concepção e a execução da obra - capaz de influenciar o meu pensamento a intuir, e sem o qual a obra de arte não tem interesse! Albert Einstein, disse "The intuitive mind is a sacred gift and the rational mind is a faithful servant. We have created a society that honors the servent and has forgotten the gift". Só penetrei no mistério da natureza da obra do Gordon Matta-Clark no dia em que a Laurie Anderson, como numa revelação, me chamou a atenção para o facto da realização artística do Gordon ser indissociável da vida - ter uma evidente correspondência entre a arte e a vida -, na medida que representa o êxtase (o poder mágico) que une a vida com a arte: "O Gordon era um minimalista e avançaram-se muitas teorias acerca da razão que o levava a cortar casas ao meio, embora nenhuma delas mencionasse o divórcio dos pais - Gordon e o seu irmão gémeo Sebastián nasceram em 1943 e os pais já estavam separados no final de 1942: o pai, o pintor surrealista Roberto Matta abandonou-os antes de nascerem -, nem o que acontecera quando um dia o seu irmão gémeo (a quem permaneceu profundamente ligado toda a vida) se suicidara saltando da janela de Gordon", in Coração de Cão, um filme de Laurie Anderson. Fez-se-me luz (percepção pessoal)! A emblemática Splitting uma casa abandonada dos subúrbios cerrada pela metade - é uma manifestação autobiográfica de Gordon; toma por referência a ideia clássica da casa enquanto versão biográfica sobre a família. Splitting tem uma função reveladora: mostra-nos o que, de outro modo, seria invisível, o desgosto no seu aspecto objectivo de um ponto de vista novo. Splitting, tem assim um significado autoreferencial profundo - o movimento e o ruído de cortar uma casa e calcular o tempo até que a casa se parta e um dos lados caia, constitui uma ruptura -, evoca a separação, a pena e a tristeza que a mera palavra "separação" implica. Splitting é a escultura dotada de sentimento de tristeza; uma separação é sempre triste; independentemente das pessoas afectadas, há uma certa tristeza no mero facto de separação, que retira as pessoas da sua segurança! A emoção é ainda o mais importante, ou não? Splitting, representa a analogia entre a arte e a vida - o sentimento físico na obra performativa de Gordon, não apenas um conceito de Anarquitectura ou um princípio construído! Por outro lado, Gordon havia descoberto o carácter místico do pensamento budista tibetano: "Quando Gordon adoeceu, decidiu fazer da sua morte um acontecimento social e convidou uma data de amigos para irem ao hospital, só lhe restavam 24 horas de vida, o tempo que o seu organismo levaria a deixar de funcionar. Decidiu passar este tempo a ler para os amigos. Quando morreu, estavam dois lamas à sua cabeceira e quando Gordon parou de respirar, eles começaram a gritar-lhe aos ouvidos. Os tibetanos acreditam que a audição é o último sentido a desligar. Depois do coração e do cérebro pararem e dos olhos ficarem escuros, o martelo dos ouvidos continua a funcionar. E então, eles gritaram-lhe instruções do livro tibetano dos mortos, que também se chama "A grande libertação pela escuta", e gritaram, "Gordon estás morto! Agora estás morto" e depois disseram: estás a ver duas luzes, uma está perto, a outra está longe. Não vás para a que está perto, vai para a que está longe. E assim por diante..."., in Coração de Cão, um filme de Laurie Anderson. A descoberta das ciências ocultas e da alquimia - a biblioteca de Gordon estava cheia de livros de alquimia, segundo Jane Crawford, mulher do artista - explica a metafísica e o modelo de transcendência que a obra de Gordon Matta-Clark propõe! A "Anarquitectura" é uma vista sobre outro mundo sem quaisquer especificidades, é um espaço de abstração - que por sua vez significava uma crítica da sociedade de consumo e o questionamento (questionava o individualismo, o egoísmo, a vaidade, a inveja). A igreja romana proíbe investigações no oculto (e no seu secreto poder), mas o ocultismo - o saber oculto ancestral do budismo tibetano e a sua conotação acentuadamente mágica -, a sua visão da essência do mundo ou da natureza profunda da realidade, admite-as, pois toda a ciência é consentida. No entanto, a metafísica da obra não excede o âmbito da experiência criativa. A Gordon Matta-Clark interessava investigar zonas ocultas (que nunca vemos), que não entram na nossa vida! A noção de fazer luz sobre a escuridão que reina no interior dos edifícios em ruínas, nas entranhas das cidades, olhar para o interior, ver o que não se vê - entrar na essência das nossas vidas -, com uma obra que deve tanto aos princípios da arte como aos da cientificidade! A estética e a metafísica estão intimamente ligadas, Schopenhauer Gordon era um artista diferente dos outros artistas conceptuais da época de 70, que tratavam de explicar e interpretar a sua arte (nova) citando filósofos segundo argumentos conceptuais matizados, como se tivessem investido toda a sua carreira no pressuposto que a arte é uma matéria definitivamente não intuitiva: Gordon era um artista diferente: converte a arquitectura numa experiência artística (estética), um híbrido de arte e arquitectura (as duas coisas não vão separadas), com a qual experimentou o conhecimento intuitivo em detrimento do conceptual (racional). Em resultado, o espectador passava de imediato da dimensão racional -transmissão de ideias - à da percepção sensível relacionada com a vida, em que os aspectos intelectuais associados à natureza conceptual das artes plásticas, já não dominam a obra de arte! Certo é que obras de Gordon são convincentes porque oferecem múltiplas dimensões: emocional, conceptual, crítica, política, que se interpenetram: revelam um modo de reagir às circunstancias sociais (à situação política), através de uma nova consciência prática do papel da arte na sua relação com o processo social mas também poética e clarificadora à arquitectura. O plano final da sua obra Office Baroque - uma intervenção com significado sociológico das mais importantes realizadas por Gordon no último período de trabalho do artista -, são duas formas semicirculares precisas (inspiradas em bases para copos de cerveja), que se sobrepõem e, que na sua interação, criam a silhueta de um barco. Tanto estas como outras geometrias adicionais, cortaram-se com uma variação rítmica ao longo de seis andares do edifício - como se de uma fuga de Bach composta por temas e variações -, em homenagem ao grande pintor flamengo do Barroco, Pedro Pablo Rubens, cuja casa se encontrava cerca. O título da obra era uma fusão das ideias do barroco sobre o tema central e as variações e o ocorrido com os escritórios das empresas que haviam "ido à falência" em Antuérpia. Já mostrei que a minha arte não é só sentimento físico (ou percepção); mas tem de ter sentimento físico, senão não tem interesse, Joseph Beuys A glória de Gordon é o reconhecimento do artista criador, da paixão, da energia e do mistério, que privilegia a arte pela arte - o que importa é ser, ser corajoso, desafiador -, trabalhando intuitivamente e organicamente. A sua escultura não é estática, antes tem uma ideia muito crítica da sociedade de consumo, com um significado político de justiça social (orgânico), desde uma perspectiva inconformista. As suas obras performativas têm uma qualidade poética e evocam experiências e memórias humanas pessoais e universais. Gordon preconizou a contracultura do final dos anos 60, o exemplo perfeito da "experimentação artística", do sujeito empírico (investigar e experimentar sem limites) em direcção à liberdade! É claro que tudo isto era demasiado subtil para que pudesse ser entendido deste modo pelos contemporâneos.
Victor Pinto da Fonseca
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