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UPLOAD: BEUYS' MYTHOLOGY (WHO'S AFRAID OF FAT, FELT AND DEAD HARES?)- PARTE IPEDRO CABRAL SANTO E NUNO ESTEVES DA SILVA2020-06-09
[esta é a primeira parte do artigo "Upload: Beuys' Mythology (Who's Afraid of Fat, Felt and Dead Hares?)", as restantes partes podem ser acedidas aqui: Parte 2, Parte 3]
“ Heal like with like – similia similibus curantur – in the homeopathic sense. The main intention was to indicate a new beginning…. or simply a revolutionary act. This was my first public Fluxus appearance.” Joseph Beuys [1]
Aportar/explorar uma das mais enigmáticas figuras de proa diretamente implicadas com o caldo cultural oriundo do singular contexto pós-Segunda Guerra Mundial, Joseph Beuys, não se afigura, de todo, como uma tarefa fácil. Personalidade muito potenciada pela sua peculiar pose e pela sua exclusiva indumentária, transmigrada e apoiada em centenas de aparições em eventos, da qual se desprendia um ar misterioso e enigmático, é certo que parte desta árdua empreitada se revê nas suas ações e, sobretudo, no seu discurso clínico e acético sobre aquilo que a Arte deveria e não deveria ser. Afinal para que serve esta poderosa Imagem que a Arte consegue disponibilizar – perguntava uma e outra vez Joseph Beuys? Uma capacidade/ferramenta francamente invulgar, capaz de nos levar invariavelmente, e apesar de já ter passado algum tempo sobre a atividade do artista, aos interstícios de uma fascinante e revigorante aventura. O frutuoso e profícuo legado que nos deixou dificilmente deixará de continuar a busca por um renovado, novo e enigmático lugar, onde as imagens visuais artísticas continuam grávidas de novidade. Beyus é um aparente reflexo da Segunda Guerra Mundial. Pelo menos, é esse o traço comum aos discursos dos seus mais convincentes detratores e defensores. Para os primeiros – o principal dos quais é, no seu texto de 1980, o seu compatriota Benjamin Buchloh – Beuys permanece, na sua obra e na construção da sua mitologia pessoal, um cripto-fascista, e o seu principal objetivo é negar, através de um simbolismo nebuloso, o seu envolvimento pessoal, mesmo que indireto, no holocausto [2]. Isto é agravado pelo ecletismo, e logo historicismo, da sua reapropriação das vanguardas do período anterior à guerra, cujo verdadeiro sentido histórico Beuys não compreende. Para os seus mais eficazes defensores, que não se confundem com os seus múltiplos acólitos, a obra de Beuys é, pelo contrário, não só o projeto de uma arte política, como, mais concretamente, um projeto de luto pelo holocausto. É esta a perspetiva de Gene Ray, que reconstrói o simbolismo das referências ao holocausto na obra de Beuys, assim como as escassas declarações suas que as confirmam [3]. De um ponto de vista teórico, Ray apoia a sua perspetiva em Adorno, quando este defende, na sequência do holocausto, uma «apresentação negativa», de que Beckett é o modelo [4]. Em 1998, em resposta a Ray e moderando bastante a sua posição, Buchloh foca-se especificamente em Adorno, e também em Benjamin, defendendo que estes excluem precisamente o que ele identifica em Beuys: as formas tradicionais de representação. Formas simbólicas, míticas e, no limite, religiosas [5]. Para Buchloh, o corte de Adorno apenas confirma aquele que já vigorava desde os formalistas russos, e tinha, significativamente, sido reatualizado – de um modo, para Buchloh, atenuado – por Clement Greenberg[6]. Esse corte estabelecia, de acordo com o modelo iluminista, a igualdade entre o artista e o público, com base numa comunidade subjetiva que excluía automaticamente o autoritarismo da posição simbólica – ou seja, excluía a obra de Beuys [7]. Estes dois exemplos mostram-nos até que ponto a receção de Beuys está de facto ligada às consequências da guerra. Mas mostram-nos também como a leitura dessas consequências pode ser extremamente seletiva. Por razões, sem dúvida, estratégicas, Ray e Buchloh centram os seus argumentos em torno da herança das vanguardas – quem, e em que condições, tem o poder de a reivindicar? – e deixam largamente de parte a dimensão mais explicitamente política de Beuys. As razões estratégicas de cada um são sem dúvida diferentes, e o desequilíbrio de poder evidente: Ray procura, através de um trabalho paciente, estabelecer um discurso alternativo à posição dominante de Buchloh. Situa-se para isso no terreno onde a sua argumentação pode ser mais forte – o holocausto. Quanto a Buchloh, por um lado, limita-se a ridicularizar as propostas do artista como fruto de pura ignorância e ingenuidade políticas [8]. Por outro, acusa-o simplesmente de inépcia estética. E é essa inépcia, resultando da não compreensão do interdito histórico sobre o simbolismo, que para ele desqualifica politicamente Beuys [9]. No entanto, a limpeza e a assertividade com que Buchloh aplica este argumento acabam por revelar a fragilidade em que este assenta, abrindo uma outra linha de argumentação, porventura mais profícua para a compreensão da obra do artista. Apesar de alemão, Buchloh integra-se naquela geração de críticos americanos que, a partir de meados da década de setenta, contestou o formalismo de Clement Greenberg, tendo em conta influências europeias que faziam retornar em força uma leitura politizada. Mas é possível perguntar, a partir de textos como os que Buchloh dedica a Beuys, até que ponto a influência de Greenberg não continua a ser decisiva. E até que ponto é que um certo prolongamento da ortodoxia greenberguiana não se faz apoiando-se numa leitura estranhamente acrítica de Adorno e Benjamin: Buchloh insiste na unidade da linguagem artística como fundamento de uma comunidade estética intersubjetiva, que a América soube preservar. Na Alemanha, pelo contrário, essa unidade tinha sido destruída pelo nazismo, o holocausto e a guerra. Reconhecendo que isto criou condições fundamentalmente diferentes na Alemanha e na América, Buchloh vê no entanto as condições americanas como «condições padrão», nas quais deve assentar o julgamento, e as condições alemãs como mero acidente [10]. Ora parece-nos que, numa leitura correta de Benjamin e Adorno, o ponto de vista destes é precisamente o contrário: o modernismo já é, desde o início, fragmentação, ou consciência de uma fragmentação que é inerente à própria existência material; e, essa fragmentação, o próprio holocausto só a confirma e radicaliza [11]. Permanecendo no domínio da imagem, podemos invocar, em apoio desta perspetiva, Jonathan Crary, que em Techniques of the Observer faz uma genealogia da imagem moderna, apoiando-se precisamente em Adorno e Benjamin, além de Michel Foucault [12]. De acordo com Crary, com o fim da transparência da imagem clássica, a imagem moderna fica numa posição de descentramento e instabilidade. Essa instabilidade é, por um lado, tanto o sintoma como a oportunidade para o desenvolvimento de múltiplas tecnologias de governo, que visam a otimização do rendimento, a gestão, dos corpos nos quais se localiza a visão. E, por outro lado, essa instabilidade é também o lugar de uma resistência permanente, da qual as práticas artísticas são frequentemente exemplo, tornando-se inerentemente, e abertamente, politizadas. É nessa perspetiva que podemos entender a obra de Beuys, em confronto com um paradigma americano que, na sua reapropriação das vanguardas artísticas, limita radicalmente o seu alcance. Por um lado, reduzindo-as a um dos seus aspetos, o formalismo, e ignorando outros, como a corporalidade, a elementaridade, a agressividade. Por outro lado, colocando-as numa perspetiva de progressiva purificação e racionalização, ignora frontalmente a dimensão de resistência contida na modernidade, que deve ser entendida como principal conteúdo das vanguardas: essa dimensão de resistência implica, pelo contrário, a reapropriação daquilo que é desqualificado, de acordo com contingências estratégicas imanentes a cada momento histórico [13]. Isto exclui necessariamente a reconstituição de uma metafísica, o que parece ser a preocupação de Buchloh. Há, no entanto, que estabelecer uma distinção: são hoje possíveis dois usos da metafísica. O primeiro é o uso dos elementos de uma linguagem metafísica, na perspetiva da desconstrução derridiana ou do pensamento fraco de Vattimo [14]. Esse é o uso não substancial, que apenas considera que a linguagem disponível provém fundamentalmente da tradição metafísica, e a partir daí procura um processo de ultrapassagem, de cura, de convalescença. O outro uso, pelo contrário, é substancial, e surge necessariamente ligado a um forte centro de poder: ele pertence à cultura dos vencedores, que Benjamin refere nas Teses sobre a Filosofia da História [15]. E ele é sempre, na modernidade, como mostrou Foucault, uma metafísica humanizada, um humanismo: como tal, não se apresenta como metafísica, mas como aquilo que há de mais racional, científico, inquestionável [16]. Vamos então voltar-nos para a cultura dos vencedores. A América. Mas, também, a nova Alemanha.
Pedro Cabral Santo
Nuno Esteves da Silva
Notas [1] Ver Joseph Beuys e Carin Kuoni, «Joseph Beuys in America: Energy Plan for the Western Man», p. 128. [2] Ver Benjamin Buchloh, «Beuys: The Twilight of the Idol. Preliminary Notes for a Critique» (Artforum, 5: 18 (1980): pp. 35-43; reimpresso em Gene Ray (ed.), Joseph Beuys: Mapping the Legacy. New York: Distributed Art Publishers, 2001, pp. 199-212. Faremos sempre referência a esta reimpressão). Benjamin Buchloh publicou este artigo, em Janeiro de 1980, na sequência da retrospectiva de 1979 no Guggenheim. A October publicaria, também em 1980, e com um tom igualmente desfavorável, um diálogo entre Buchloh, Rosalind Krauss e Annette Michelson, intitulado «Beuys at the Guggenheim» (October, 12 (1980): pp. 3-21). Para uma leitura crítica, e refutação, dos argumentos filosóficos de Buchloh, ver Timothy O’Leary, «Fat, Felt and Fascism» (Literature & Aesthetics, 6 (1996), pp. 91-105). [3] Gene Ray, cuja tese de doutoramento, concluída em 1997, abordava as relações entre a obra de Beuys e o holocausto, editou em 2001 o livro Joseph Beuys: Mapping the Legacy, que resulta da conferência homónima realizada em 1998 no John and Mable Ringling Museum of Art, em Saratosa. O artigo de Ray nesse volume, «Joseph Beuys and the After-Auschwitz Sublime» (pp. 55-74), apresenta o seu ponto de vista. O mesmo volume inclui a resposta de Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again» (pp. 75-89), que reconhece o trabalho de Ray como um ponto de viragem, enquanto reafirma a sua posição de fundo. Para um artigo mais recente de Ray, que integra o caso de Beuys no contexto da recepção do holocausto na arte europeia, ver «On the Mattering of Silence and Avowal: Joseph Beuys’ Plight and Negative Presentation in Post-1945 Visual Art» (The Nordic Journal of Aesthetics, 24: 49-50 (2015): pp. 8-38). [4] Ver Gene Ray «Joseph Beuys and the After-Auschwitz Sublime», pp. 64-74; e «On the Mattering of Silence and Avowal: Joseph Beuys’ Plight and Negative Presentation in Post-1945 Visual Art», pp. 10-17. [5] Ver Benjamin Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again», pp. 87-89. [6] Ver Benjamin Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again», p. 80. [7] Ver Benjamin Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again», pp. 80-81. [8] Ver Benjamin Buchloh, «Beuys: The Twilight of the Idol. Preliminary Notes for a Critique», p. 201. [9] Ver Benjamin Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again», p. 89. [10] Ver Benjamin Buchloh, «Reconsidering Joseph Beuys: Once Again», p. 89. [11] Parece-nos ser este o sentido de toda a analise da modernidade como alegoria, em Benjamin, e do conceito de «apresentação negativa», em Adorno. Ver Walter Benjamin, The Origin of German Tragic Drama (London: Verso, 1998), e The Arcades Project (Harvard: Harvard University Press, 1999); e Theodor W. Adorno, Negative Dialectics (London and New York: Routledge, 2004), pp. 361-408. Ver também a nossa análise do conceito de alegoria, em «Apropriação na Imagem Visual Artística: Marcel Duchamp, Art & Language e Andy Warhol». [12] Crary segue, nomeadamente, Michel Foucault, Les Mots et les Choses: Une archéologie des Sciences Humaines (Paris: Gallimard, 1966), e Surveiller et Punir: Naissance de la Prison (Paris: Gallimard, 1975). [13] Este tema atravessa as obras de Benjamin e Adorno: ver, em particular, Walter Benjamin, «On the Concept of History» (in Selected Writings. Harvard: Harvard University Press, 2003, vol. 4, pp. 389-400). [14] Sobre este problema, em Derrida, ver Max Deutscher, «”Il N’y A Pas de Hors-Texte” – Once More» (Symposium: Canadian Journal of Continental Philosophy, 18: 2 (2014), pp. 98-124); e, em Vattimo, ver Gianni Vattimo, «Dialectics, Difference, Weak Thought» (in Gianni Vattimo, e Pier Aldo Rovatti (eds.), Weak Thought. New York: Sunny Press, 2012, pp. 39-50). [15] Ver Walter Benjamin, «On the Concept of History», pp. 391-392. [16] Ver Roberto Nigro, «From Kant's Anthropology to the Critique of the Anthropological Question: Foucault's Introduction in Context» (in Michel Foucault, Introduction to Kant’s Anthropology. Los Angeles: Semiotext(e), 2008, pp. 127-139). |