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CINZAS DE UMA VIDA ARDENTEAISHWARYA KUMAR2024-10-21
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No último ano, como investigadora, tenho vindo a explorar as várias articulações da experiência de um encontro. O encontro ou in-in, contra-oposição em latim, existe em nítido contraste com o seu emprego na investigação artística contemporânea, aquela que presta atenção à ecologia da experiência da arte e critica o projeto divisivo da Modernidade. E é aqui, dentro desta espiral do antes e do além – da experiência da prática artística como uma série de encontros intencionais contínuos – que situo o ano de conhecimento de Diane Giraud. Encontrei-me com Giraud pela primeira vez durante a sua exposição como artista residente nos Estúdios Pada em dezembro de 2023. Instalada na extremidade dos espaços do estúdio, uma peça visual – que então parecia impulsionar o expressionismo abstrato – da sua série Wonder Esquisse, suspensa no teto, notificou-me pela primeira vez da presença da artista. Nenhuma das suas obras era totalmente acessível se mantivéssemos a cabeça direita e andássemos nos locais visualmente mais acessíveis. Giraud também não o era. Como eu estava apenas a começar a brincar com a complexidade dos encontros, que para mim ainda eram uma experiência no aqui e agora, não previ que o ano seguinte, ao conhecê-la e ao seu trabalho, alteraria retroativamente a progressão do tempo e do espaço e me levaria de volta a momentos anteriores ao nosso encontro.
SOBRE A TECHNE Diane Giraud, de herança multicultural, com formação na University of the Arts London em Design de Moda e na Université Paris X Nanterre em Direito Empresarial, formou-se como designer de moda sob a orientação de alfaiates de Savile Row, tendo trabalhado nos ateliers de alta-costura de designers como Alexander McQueen e prestado consultoria a várias empresas startup – é uma artista multidisciplinar autodidata. Atualmente sediada em Lisboa, tem colaborado e mostrado o seu trabalho na Culturgest, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, nos Estúdios PADA e no Museu do Teatro Romano de Lisboa, com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa, da assessora cultural Dr.ª Catarina Vaz Pinto, do Ministério da Cultura e da Fundação Gulbenkian. A história de Giraud com os materiais ou a materialidade dos materiais atesta a qualidade interdisciplinar do seu trabalho – invocando a sua compreensão da técnica e da prática. Convida o público a uma exploração tátil, cinestésica e filosófica com o trabalho (pinturas, instalações, performances, situações), do espaço em que entram, do eu e das experiências relativas à condição humana. Confessadamente, como leitora precoce de uma constelação de livros ecléticos, desde a ficção científica do século XX até à literatura francesa e partes da antologia La Comédie Humaine de Balzac, a sua relação com o pavor existencial, a tragédia e a comédia da existência humana, sugere a influência da filosofia francesa dos séculos XIX e XX nas suas obras. Ao mesmo tempo, revelando taticamente a cacofonia cultural – francesa, vietnamita e grega – que é, a sua prática manteve-se fiel aos espaços intermédios – as questões relativas às perspetivas que resistem aos dualismos. Escusado será dizer que a tarefa aqui é resistir a atirar Diane para o nebuloso discurso da ‘cidadania global’ ou a traçar contornos fixos em torno do seu trabalho. A tarefa, enganadoramente despretensiosa, é revelar como a precisão da sua habilidade liga multidões de uma forma a que vale a pena prestar atenção. E assim, volto-me para as questões relativas à técnica e à prática de fazer desta artista-artesã que foge à objetividade acentuada assumida nas formas. Enquanto a ouço falar, seguindo a sua variedade de pensamentos durante as várias vezes em que nos encontrámos em cafés, inaugurações ou celebrações, ou através das notas de voz que, por esta altura, posso assumir que começam com “Heyy Aishwarya…”, reparo numa parte do icebergue que retrata um compromisso rigoroso com o valor inerente à perceção visual – resistindo à influência do dogmatismo linguístico – que levita em torno de questões relativas à realidade. Ao revisitar constantemente os temas, mas também os materiais com os quais Giraud pensa sobre os temas, não só é a sua técnica como a de um escultor – um processo de encontrar a forma para sempre num horizonte – mas também se assemelha à prática dos filósofos para alguns dos quais a repetição é uma disciplina – uma recursividade incorporada com uma diferença. Este movimento em direção a um horizonte, que no caso de Diane é um horizonte de liminaridade, tem levado a criações e recriações que contemplam o valor latente e potencial dos materiais e das questões. Sentada n’A Padaria Portuguesa da Graça, no dia 10 de outubro, pedi à Diane que me ajudasse a compreender este processo. Depois observei como ela conseguiu, com uma atenção forense, transmitir a sua intenção e a sua prática que opera através da exploração da interioridade da condição humana – de processos, hábitos, conceitos e pensamentos, tão específicos dos seres humanos – diferentes dos restantes e particulares do eu, que transcendem temporalidades individuais e culturalmente específicas sem sugerir superioridade em relação a outras espécies – “Construímos sistemas complicados que nos separam, mas é sempre a mesma coisa”. Queimar papel, revisitar temas, reformular ideias, tudo isso parece ser o desejo de se livrar desses sistemas. Enquanto me dá a conhecer uma constelação de referências da moda, da arte contemporânea, da literatura, do cinema independente e dos estudos culturais, pergunto porque é que o que emerge destas influências é não-referencial, e Giraud exclama: “Não estou a tentar esconder-me, mas também não quero formatar a tua maneira de pensar. Estou a tentar construir uma relação contigo”. Por isso, deixa o artista falar contigo, da forma que ele sabe. Integrada no processo de conversação está a noção de tempo, um elemento que é incorporado no tema e na forma como Giraud coreografa a exposição. Como testemunhado na declaração curatorial da série A Private History: Fragments (2015-2016), apresentada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que é “uma série de experimentações que levaram à utilização de processos meticulosos, incluindo a gravação e o empréstimo da técnica de colocação de folha de ouro para aplicar papéis queimados e cinzas, peça por peça, nas telas”, o tempo torna-se um ator crítico na realização da série. Para além da natureza óbvia do tempo no processo, Giraud examina a sua relação e identidade em diferentes momentos da sua vida, o que, juntamente com os materiais com que trabalha, é experimentado – “A artista optou por queimar alguns livros da sua própria coleção, incluindo romances literários e antologias, ensaios de direito comercial e ciências políticas, bem como revistas de moda. Através de tentativas, a artista desenvolveu uma compreensão da textura, cor e tamanho dos fragmentos que queria obter. Nalgumas telas, os restos das peças originais, embora pouco reconhecíveis, surgem em fragmentos de palavras ou imagens. Nunca completos, são deixados para os espectadores descobrirem e vaguearem nestas existências invisíveis, justapondo metáforas de vida e morte numa tentativa de demonstrar que tudo é tudo” (Giraud). Repetição. Treino. Precisão. Visual. Não-verbal. Revisão. Devaneio. As peças desta série demonstram tudo o que disse até agora. Por isso, passo à presença da visualidade intercalada com o texto. Giraud reitera a presença de longa data do material e da materialidade dos livros na sua vida – desde a infância até à licenciatura em Direito – da qual o seu trabalho artístico parece emular um afastamento ritualístico. Mas, em vez de um gesto emancipatório de renunciar a tudo, ela joga com o próprio material dos livros, a materialidade do que eles transmitem, a disciplina gramatical da correção, e liberta-se do peso das palavras. Não só queimou alguns dos seus livros no processo de fabrico do material que contribuiria para as suas obras visuais, como a que se vê acima, mas a intenção de deixar vestígios dos livros alude a um desejo de querer revelar o que colocou sob o escrutínio – o valor assumido das línguas faladas, ou antes, aquilo em direção ao qual está e tem vindo a caminhar – o valor inerente ao trabalho visual. O processo de queimar os livros reúne o devaneio do(s) objeto(s) – do que foi e do que poderia ser – mostrando o seu método experimental de lidar com a relação com ambos, recusando assim a estabilidade que ambos oferecem, se objetivados. Tento, mais uma vez, compreender a razão que a leva a se interrogar sobre o valor das palavras. Tendo sido criada num universo feito de linguagem, Giraud interroga-se sobre a sua capacidade de enganar. Ao mesmo tempo, reflete sobre o peso que as palavras acumulam ao longo do tempo, conferindo-lhes um valor prescritivo. Não querendo antecipar o que o público pensa quando se depara com a sua arte, Giraud evita fazer referência ao que o público encontra e ao que informou o seu processo de criação. Procurando e convidando o público a meditar sobre o que ela está a dizer, e esperando que ele dê um passo em frente e continue a conversa. Esta extensão da parte de Giraud para falar com o público, mas também como uma expetativa instalada nos espectadores, concilia-se com a experiência que tive com o seu trabalho no último ano. O seu trabalho tornou-se um local de encontros momentâneos através dos quais passam ideias, materiais, espetadores e relações, sempre entre o que era e o que poderia ser – de liminaridade.
SOBRE A PRÁTICA Pensa-se frequentemente em liminaridade em relação à prática das artes performativas (também uma forma explorada por Giraud), mas experimentá-la em peças visuais, que tradicionalmente prometem permanência (pelo menos relativamente) e lucidez, é um feito de Giraud que tenho vindo a apreciar nos últimos meses. Já com A Arte Da Conversação, instalada na Galeria Fernando Santos em 2015 – uma instalação participativa com instruções textuais deixadas ao critério dos espetadores para entrarem nestes espaços com cortinas e executarem ou ignorarem a ação escrita no chão em frente de cada cubículo com cortinas – Giraud começou a misturar a experiência da arte visual e da performance como intervenções, onde o encontro do seu trabalho com o público interrompia a normalidade dos espaços da galeria, convertendo-os de espetadores em atores à medida que respondiam em tempo real à performance que o seu trabalho coreografava – apesar da sua ausência. Em 2018, Giraud co-fundou In Limen com o seu irmão Pierre Giraud para construir experiências participativas em contextos específicos ao local. Tendo captado a sensação de isolamento e desconexão já instalada pela condição digital, reafirmada através do isolamento forçado durante a COVID-19 em 2020, o espetro da necessidade de abordar a ligação e a interação impulsionou as criações da prática. A série, concebida como 5 longas edições, foi imaginada em torno de MEMÓRIA: Estaremos a herdar as histórias pessoais dos nossos Antepassados?, MORTE: Porquê a Tristeza perante a Morte?, NORMALIDADE: Haverá um imperativo saudável para definir a Normalidade?, INTIMIDADE: Como a Sociedade do Digital afetou irreversivelmente a interação humana genuína?, CONSCIÊNCIA: Irá a Inteligência Artificial derrotar a noção de Humanidade? Com o prémio e o apoio da Dr.ª Catarina Vaz Pinto, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Câmara Municipal de Lisboa, da EGEAC, dos Estúdios PADA e do Ministério da Cultura de Portugal, In Limen apresentou o seu trabalho da primeira edição de 2019 Sobre a memória: Estaremos a herdar as histórias pessoais dos nossos antepassados? no Teatro Romano – Local arqueológico e Museu de Lisboa. Datado do século I, tendo submergido, tal como grande parte de Lisboa durante o terramoto de 1755, e tendo sido escavado desde a década de 1960, o Teatro Romano pareceu propício às questões de Giraud em torno da memória – o que é recordado, o que se escolhe recordar e como se recorda. O espetáculo começa na fila dos bilhetes, onde é entregue ao público um envelope que só será aberto numa fase posterior da experiência. A partir daí, Giraud estende o palco ao público, convidando-o a entrar no mesmo no final do ato pelos artistas – mudando intencionalmente o papel do público, que de outra forma seria de turista no local, para ingredientes ativos da conversa. Desenvolvendo ainda mais a prática de convites e extensões, Giraud criou This is Not a Magritte Performance Edition #1 no MONO, Lisboa (2020), This is Not a Magritte Performance Edition #2 nos PADA Studios (2020), e This is Not a Magritte Performance Edition #3 na Culturgest (2023) que faz parte de uma série separada LES ÉDITIONS COURTES. Concebida como experiências de quarenta e cinco minutos a uma hora (ART EXPERIENCE), a série é dividida de forma semelhante, em que o primeiro ato pretende abrir emocionalmente os convidados através da dança, de uma peça de arte ou de uma instalação visual, e é seguido pelo segundo ato em que Giraud e as suas obras criam conversas significativas “possibilitadas por um protocolo recreativo sobre um tema selecionado”. Embora estes atos não estejam explicitamente presentes nas suas obras visuais, Giraud vê a sua prática através de In Limen e das suas instalações como A Private History: Fragments, mas também Splendid Stories of Disorder (II), 2015- 2017 no Hub Criativo do Beato em 2017, e Fragments D’un Discours Poétique, 2015 apresentado durante um live salon na Underdogs Gallery em 2015, como catalisadores generativos para o seu desejo de forjar novas formas de conversar:
Quando a divisão parece prevalecer na sociedade.
No dia 14 de outubro, visitei, pela primeira vez, o atelier de Giraud. Enquanto levantava e pousava as várias iterações do seu trabalho, ao mesmo tempo que a ouvia explicar as razões da sua trajetória, apercebi-me da pertinência de ter marcado esta visita no final de escrever sobre o seu trabalho. Uma hora depois da visita, virei-me para a ver andar de um lado para o outro enquanto falava do seu regresso recursivo à condição humana do desejo de liberdade. Observá-la a olhar para o chão enquanto caminhava e falava mostrou, pela primeira vez, o seu devaneio pelo visual e experiencial – o impulso e o desejo de permanecer com tópicos perenemente críticos, que por vezes se tornam atuais. Analisar o seu trabalho através deste gesto de ritmo lança alguma luz sobre a crítica da necessidade e do papel da arte nas condições atuais, imbuídas de crises de vários graus. Para Giraud, a desconexão do eu e dos outros através de sofisticados projetos digitais, linguísticos e formais contribui largamente para a destruição da relacionalidade. A sua prática, que à primeira vista poderia ser colocada nas artes visuais, nas artes performativas, na arte social ou noutras, situa-se, de facto, nos espaços intermédios. É nestes espaços liminares que o público é puxado para universos que são construídos com variáveis de humano e mais-do-que-humano, como uma forma de fazer arte que mostra um mundo em chamas, ao mesmo tempo que forja novas ligações através da experiência partilhada da brasa. Mais uma vez, parece que a prática artística de Giraud – de prever e lidar com as consequências do encontro – desta vez vivido a uma escala global – procura manter o seu efeito para todos aqueles que talvez ainda tenham sido atingidos pelo primeiro impacto. A prática do devaneio sobre a forma como os seres humanos constroem relações está profundamente presente no seu trabalho. Parece-me fundamental voltar a esta questão enquanto se encontram algumas conclusões para este estudo da prática de Giraud. Tendo ultrapassado o que considero ser uma agenda altamente aborrecida, antropocêntrica e positivista encontrada nas metáforas da fénix nascente, o trabalho de Giraud, de facto, aborda a morte que ela facilita – a das palavras, do isolamento, da certeza e da realidade. Através de uma experimentação disciplinada e pormenorizada de materiais, experiências e conceitos, o seu trabalho pode ser lido, ao longo do tempo, como um argumento a favor de práticas meditativas – mostrando, como ela exige ao público, que se preste atenção a uma prática que fundamente o processo de devir.
Aishwarya Kumar
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Diane Giraud, retrato. © Pascal Montary
Diane Giraud
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Notas às legendas das imagens
Imagens 10. e 11. Splendid Stories of Disorder: Paisagem sonora "Time Does Not Exist" (29’19’’) produzida em colaboração com Aurélien Rivière. Imagens 15. 16. e 17. This Is Not A Magritte Performance, Edição 2: Performance vocal acústica com as artistas Mariana B. Camacho e Sara Rodrigues + Conversas com o público. Imagens 18. e 20. This Is Not A Magritte Performance, Edição 3: Com a bailarina/coreógrafa Filipa Peraltinha. Paisagem sonora produzida em colaboração com Aurélien Rivière.
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