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SINAIS FEMINISTAS NA ARTE SUL-AFRICANA: SEGREDO, PROTESTO E MEMÓRIALAURA CASTRO2018-12-22O posicionamento social da mulher, a luta pela igualdade de direitos, a consciência ambiental, o activismo pacifista, o protesto político e a afirmação cultural das práticas artísticas no feminino diluem-se hoje em propostas individuais e grupos de artistas, em acções efémeras e peças duradouras, longe já da procura de definições essencialistas da arte feminista ou da conceptualização própria de momentos pioneiros. Em contexto pós-colonial, o feminismo abriu-se à demonstração da construção social, cultural e, também política do género.
Uma conferência sobre arte feminista organizada pela South African Research Chair in South African Art and Visual Culture, da University of Johannesburg, em Novembro, foi a oportunidade para encontrar e ouvir artistas sul-africanas falar sobre a sua obra. A conferência visava trabalhos feministas icónicos, tendo reunido comunicações oriundas de Portugal, México, Rússia, Estados Unidos da América, Inglaterra e África do Sul, sobre artistas e obras situadas entre os anos 70 e a actualidade. Foi possível testemunhar a familiaridade de artistas com actuação em contextos distantes, mas aproximados pelo espírito do tempo. Da apresentação de projectos artísticos na primeira pessoa, salientaria duas artistas contemporâneas: Usha Seejarim e Senzeni Marasela, ambas a trabalhar em Joanesburgo, a primeira, descendente de família indiana e residente na cidade, e a segunda residente no Soweto. Mas, ainda antes de comentar as suas propostas, gostaria de referir uma visita ao reputado centro de criação, edição e distribuição de gravura – o Artist Prof Studio (APS) [1] – que permitiu, através da observação do trabalho de muito jovens artistas, confirmar o que, na obra daquelas já consagradas figuras, se evidencia. No trabalho, ainda embrionário, de monitoras e estudantes do APS (como Heidi Mielke, Precious Mahapa ou Maromena Malakoane), espreitam já sinais que caracterizam uma parte assinalável da arte sul-africana contemporânea que sintetizaria em três eixos: - Uma arte do segredo envolvida nos processos de esconder, revelar e reconhecer. Estes três eixos perpetuam-se num ciclo dinâmico de espera e acontecimento, de pausa e acção, de interiorização e comunicação. É neste precário e frágil equilíbrio que nascem e se desenvolvem inúmeros projectos artísticos, sejam aqueles enraizados em episódios de natureza biográfica que abordam o mundo conhecido e os problemas experienciados, sejam aqueles fundados em questões sociais e políticas, numa perspectiva menos biográfica, mas igualmente situada. Intimismo e exposição pública são, portanto, os agentes transformadores do campo artístico, algo que não pode deixar de recordar o contexto sul-africano pós-apartheid, bem como as actividades da Truth and Reconciliation Commission da segunda metade dos anos 90 e as audições públicas das vítimas e dos carrascos do regime segregacionista. Usha Seejarim (1974) [2] ocupa dois estúdios, um dos quais na Bag Factory [3], estrutura cultural instalada numa antiga fábrica, numa das zonas que, antes de ser desmembrada pela política de segregação racial, era uma área multicultural onde diferentes comunidades viviam e trabalhavam. A sua actividade é indissociável de uma leitura de género transversal às dimensões social, racial e de classe. A artista aproveita objectos do quotidiano, instrumentos de trabalho doméstico imediatamente conotáveis com as repetitivas tarefas tradicionalmente e culturalmente cometidas às mulheres. Vassouras e mopas, ferros de engomar e molas de roupa, servem para o fabrico de objectos escultóricos a que atribui, quase invariavelmente, títulos irónicos contaminados pela crítica social e política, e recuperam, igualmente de modo irónico, os formatos modernistas do ready-made e do objet trouvé. Tais referências, inevitáveis no quadro da tradição ocidental, não são incompatíveis – antes pelo contrário – com o questionamento de género e o sentido classista e racial, o que resulta em trabalhos coerentes e unos em que forma e problemática se articulam de modo singular. Plenos de alusões à trajectória modernista, os seus objectos valem pelas interrogações e pela instigação que despertam. Nas séries temáticas que tem desenvolvido, proliferam meios distintos, abertos a uma pluralidade de leituras, em o mesmo tópico é tratado em desenhos, gravuras ou esculturas, mediante uma utilização engenhosa das suas potencialidades plásticas e uma riqueza semântica e metafórica do seu mundo de sugestões. O caso concreto de utilização de vassouras esclarece a sua abordagem: se a utilização das vassouras gera esculturas e os pelos da vassoura servem para desenhar, também é o objecto vassoura – inevitavelmente usado pela empregada negra – que recorda a figura da bruxa e, ao mesmo tempo, a de uma mulher com poder. Retrato de uma expectativa gorada, marcada pela incansável repetição, o trabalho de Usha Seejarim sobre o universo feminino é igualmente um retrato da sociedade sul-africana em que os objectos remetem sistematicamente para a raça e/ou a classe. A artista afirma que foi interessante perceber as conotações racistas e classistas dos instrumentos de limpeza, uma vez que a esfregona é conotada com a empregada negra e a mopa com a mulher branca. Inscritos num contexto doméstico e familiar, os objectos que utiliza remetem, finalmente, para o gesto e o seu manuseamento. Talvez por isso, paira sobre a sua obra um desejo performativo que nunca se cumpre, sinal, também, de uma espera. Diante de cada projecto o espectador evolui da surpresa para um sorriso benevolente e, finalmente, para um reconhecimento amargo do estado de coisas. A sua iconografia e as incontáveis ressonâncias simbólicas corporizam um trânsito entre estatutos, que é menos o da passagem do estado de objecto vulgar a objecto artístico, do que o das circulações e das exclusões de que a história da África do Sul oferece inúmeros exemplos. A deslocação, o despojamento e o apagamento de comunidades e de identidades, ou a sua reabilitação, e a devolução da sua voz, são a outra face da transformação dos objectos que Usha Seejarim elege. De Senzeni Marasela (1977) [4], os desenhos, as aguarelas, os bordados e os panos cosidos com tintas e linhas de cor vermelha, alguns de grande formato, evocam tecnologias artesanais femininas e histórias de mulheres africanas anónimas ou tornadas célebres, por vezes, por razões sinistras e comportamentos humilhantes relacionadas com o racismo e o género. Tais meios, com a fotografia e o vídeo, constituem diários de conversas imaginárias, gestos de reparação artística e rituais de expiação.
Senzeni Marasela – Waiting for Gebane, 2017, bordado sobre tecido.
Nos seus projectos reúne-se, com o seu nome próprio, a Theodorah, nome da sua mãe, e a uma figura raptada no século XIX para ser exposta em Inglaterra como aberração e curiosidade anatómica e tribal, Sarah Baartman que ficaria conhecida como a “Hottentot Venus”. Noutros projectos assume o nome de Theodorah como seu alter-ego. Depois de Theodorah comes to Johannesburg, projecto de 2003, Waiting, Searching for Gebane, que desenvolve desde 2013 e que deverá terminar em 2019, é um extraordinário projecto que aborda a espera enquanto estado crónico na sociedade sul-africana, a espera que protagonizaram as mulheres separadas dos seus maridos pela procura de trabalho, pela prisão e pelo exílio, a espera de que Winnie Mandela se tornou ícone. Ao encarnar a figura de Theodorah enverga um traje de mulher casada que nunca despe, de que nunca se alheia, transformando a sua vida numa performance perpétua [5]. No início da performance ofereceu todo o seu vestuário e adereços e passou a usar exclusivamente esses vestidos. Trata-se, nomeadamente, de peças usadas por outras mulheres que lhe têm sido enviadas, encontrando-se muito próxima de reunir 150 exemplares, cada um com a sua história, uma história que carrega, exibe e conta uma e outra vez, permanentemente. Assim se expõe, no seu quotidiano, a críticas, incompreensões, paternalismos e exclusões que encara num sentido de resistência e missão. A exposição pública ocorre igualmente na sua conta no Twitter. Os vestidos são cicatrizes de uma condição expectante, reveladas para debater questões da sociedade sul-africana. De contornos muito diferentes, a prática das duas artistas evidencia a vitalidade da arte sul-africana de sentido feminista e o modo como em tempos pós-coloniais se lida com o segredo, o protesto e a memória.
Laura Castro
Notas [1] O Artist Prof Studio surgiu em 1991, por iniciativa de uma artista recém-regressada de Boston – Kim Berman que trazia a ideia de um centro de impressão de excelência – e de Nhlanhla Xaba – que contribuiu com um conhecimento invejável do meio e o engajamento comunitário. O centro, que ocupa desde há alguns anos, o espaço de uma antiga estação de autocarros em Newtown, é uma organização apoiada por fundos governamentais e pela National Lotteries Comission, tendo cerca de 50% do seu financiamento assegurado pelas vendas de trabalhos produzidos. Tem uma estrutura de formação (de nível profissional) que acolhe presentemente cerca de 80 alunos que, para lá das actividades dentro de portas, desenvolve acções de rua, de vocação social e comunitária.
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