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CARLOS AMORALES, A SUA LINGUAGEM-PADRÃO E O CRUEL MUNDO DE HOJENUNO LOURENÇO2020-01-21
A razão pelo qual o Stedelijk Museum de Amesterdão é um grande museu, não se restringe à quantidade de exposições que proporciona, mas ao facto de conseguir apresentar ao mesmo tempo duas exposições de enorme relevo, lado a lado no mesmo piso: “Chagall, Picasso, Mondrian and others: migrant artists in Paris” e uma exposição de Carlos Amorales com várias obras suas muito recentes. Se considerarmos a contemporaneidade a partir da Revolução Francesa, este é um verdadeiro museu contemporâneo no sentido mais lato da palavra, porque nos dá uma aula prática do que foi o modernismo em pintura, e logo a seguir, como contraponto, apresenta-nos um espelho da arte e do mundo atual. Passa-se de um lado ao outro do primeiro piso, como se atravessássemos a máquina do tempo a partir da exploração do potencial do mundo através do seu esventramento, ambiguidades e transformação.
Importantes trabalhos são apresentados na exposição de Carlos Amorales, que variam entre a exploração ativa do som, como em “We´ll see how all reverberates”, na qual os visitantes intervêm na peça tocando nos vários pratos de bateria dispostos em diversas alturas de uma grande sala; e a sua absorção passiva, como em “Psicofonias”, peça onde em três enormes ecrãs, pontinhos brancos sobre fundo preto reproduzem sons ao atingir a parte inferior de cada um deles. É, no entanto, nas questões da identidade, da violência e na busca de uma linguagem padrão própria que a obra do artista mais se destaca.
Vertical Earthquake, 2010, aço e grafite na parede, Coleção MUDAM Luxembourg-Musée d´Art Moderne Grand-Duc Jean, Coleção De Bruin-Heijn, Coleção B.J. van Egteren, Inge & Philip van den Hurk.
Da violência externa, “Vertical earthquake” mais que simbolizar o terramoto que ocorreu em 1985 na Cidade do México, e a incompetência do governo da altura no processo de reconstrução, sugere através de uma régua, as linhas representativas das brechas da urbe mexicana na direção de uma nova ordem, mas, que surge naturalmente do lodo social como instinto de sobrevivência da população. Não menos grave, é a violência interna que nos leva a vomitar e a vociferar frustrações pessoais, preconceitos e desejos recônditos de poder via redes sociais, de forma discreta e até mascarada de moral superior. “(…) Go to hell eat shit and fuck yourself idiot. You you you are a fuck joke me cago en ti y en tu familia pinche puta mentirosa te odio what is love if nothing is love if nothing but a fuckin shitty joke (…)” é uma amostra do ódio que empesta o mundo neste momento. A obra “Learn to fuck yourself”, criada neste passado ano de 2019, apresenta-se nas quatro paredes de uma grande sala do Stedelijk Museum, totalmente preenchidas com este tipo de textos e envoltos por uma iconografia medieval, já por si retratando cenas de injúria. Como se isto não bastasse, a banda desenhada “The tongue of the dead” espelha a violência em carne viva e esquartejada, como consequência da guerra do governo mexicano contra os cartéis da droga em 2006. A obra demonstra como uma guerra bem-intencionada provocou homicídios tão ou mais atrozes que o problema já existente.
Learn to fuck yourself, 2019, guache na parede, cortesia do artista e Kurimanzutto, Cidade do México/Nova Iorque.
Desde 1996 até mais ou menos 2009, o artista desenvolveu um projeto sobre a sua identidade. Este projeto começou desde já pelo seu apelido, Amorales, que ao combinar os apelidos dos seus pais, denuncia o quanto de amoral têm as nossas identidades. Depois, desenvolveu uma máscara de licra e vinil, tipo “tartaruga-ninja”, e a seguir emitiu um certificado que permitia outras pessoas usarem temporariamente a sua identidade. Participou de partidas de wrestling, pondo a sua identidade Amorales combatendo contra a identidade Amorales e fez um vídeo “Amorales interim” filmando-se, a marrar consigo próprio como se de um baile de touros se tratasse. Ambas as iniciativas leva-nos a pensar no quão volátil é a identidade de alguém. Se o mundo é impermanente, não tem sentido falar de uma identidade individual fixa, porque, os seres humanos são forçados a acompanhar essa mesma impermanência quer queiram, quer não. A identidade coletiva surge através da encenação de um mito Inuit, que fala sobre o pai de um caçador de focas, morto pelos Europeus depois de fazerem trocas comerciais. Mas, estes últimos não deixaram de ser atormentados pelo “Eye-me-not”, porque ele continuou a viver invisível aos seus carrascos depois de um feitiço. Carlos Amorales resolveu tratar o cenário e os fatos deste registo em vídeo, conjugando a estética de Malevich à identidade tribal e multiplicando semelhantes recortes e colagens feitos de cartolina de cores vivas. A hiperbolização da identidade individual chega com a orgia de Narciso. Em painéis de tecido, preenchendo um grande salão do museu, foram bordadas várias figuras em posições sexuais, isoladas e justapostas, de várias cores e tons e com palavras escritas como “Gossipclub”, “Extravaganza”, etc. Este trabalho, também do findo ano de 2019, explora a clonagem da insatisfação sexual que resulta não numa heroicização do eu, mas, na desilusão das expressões, no princípio da decadência das partes do corpo e no pender desengonçado da carne. Temos aqui tema e variações do prazer narcísico, enchendo um enorme salão do museu, onde o sexo não é sinónimo de emancipação, mas uma vertigem para o mais redutor em nós. Carlos Amorales tem, para além destes trabalhos, outras obras assentes numa busca de módulos e padrões pessoais que aplica a vários suportes e reusa, criando obras novas. A reutilização de uma etiqueta com uma silhueta de pássaro para evitar que os pássaros batam nos vidros, “Dark mirror” é a materialização desse emblema numa enorme escultura de resina, mas, estilhaçada. Este reflexo dos estilhaços do mundo é recriado em “Life in the folds” onde o próprio estilhaço se torna numa linguagem de inúmeras variedades do mesmo padrão, ora decompostas, ora arredondadas, furadas, aguçadas, prolongadas, alteradas ligeiramente e claro, repetidas criando um ritmo próprio. “Black cloud” é o resumo e a saturação do potencial de um padrão. Várias pequenas salas interiores são ocupadas por dobras de papéis pretos sugerindo uma invasão de borboletas pretas ou traças. Esta obra é o paradigma do “fácil” em arte contemporânea. A ideia da multiplicação ou do aumento de tamanho de algo concreto reconhecível por todos, conquista de imediato o olhar do público.
Black Cloud (detalhe), 2007, papel, coleção de Diane e Bruce Halle.
Esta é a arte assente no efeito imediato e não na causa, como aumentar um galo de Barcelos, à la Joana Vasconcelos, ou um urso de goma, como o que foi projetado para uma rotunda de Boadilla del Monte (Madrid), por dEmo. Trata-se de uma arte até um pouco patética, que apenas serve para mimar os egos. É tanto assim que uma moça muito loira tirou uma selfie numa das salas das traças, tão egocentricamente inebriada, que nem viu o olhar dos restantes visitantes. A prova real desta característica na arte contemporânea assenta no facto deste mesmo trabalho de Carlos Amorales se ter tornado viral! A obra “Black cloud aftermath” é um registo a tinta da china, das historietas que se desenrolaram desde a primeira apresentação das traças de “Black cloud” em 2007: uma marca de roupas conhecida decidiu decorar o interior da loja com o tema, celebridades apareceram nas passadeiras vermelhas com vestidos do mesmo motivo e logo se sucederam as roupas de prêt-à-porter.
Black Cloud Aftermath, 2007-2016, tinta-da-china sobre papel, cortesia do artista e kurimanzutoo, Cidade do México/Nova Iorque.
Por isto se percebe o título da exposição “The factory”, à imagem das ideias de Andy Wharlol. Sobre o ponto de vista da antropologia social, é interessante saber que o comportamento humano tende frequentemente para o fácil, e para a apropriação do que possa proporcionar prestígio rápido. Do ponto de vista estético, é pobre, porque não desenvolve qualquer enriquecimento emocional nem estimula o questionamento intelectual. A Pop Art fez sentido no seu tempo por ter captado o potencial socio-estético das massas, tornando-o numa novidade, em algo original. No séc. XXI, apenas reforça a ideia de que se alimentam os Narcissos deste mundo. Patente até ao próximo dia 17 de maio em Amesterdão, a exposição deste artista mexicano nascido em 1970 apresenta-nos, na verdade, o perfil do mundo de hoje. Take it or leave it, nem sequer é uma opção. É mesmo take it, porque não podemos fugir da violência, do egocentrismo, da superficialidade, das eternas perguntas “Quem sou eu? Quem são os outros?”, dos padrões repetidos até à exaustão para consumo de uns e para encher os cofres de outros. Esta é a matéria dos nossos dias, com a qual temos de trabalhar na arte e cultura, de modo a garantir a nossa sobrevivência. Estou certo de que iremos transformar isto tudo surpreendentemente, por mais ou menos luz de néon posta num emblema de Amorales – “Peep show”! Este mexicano é amoralmente contemporâneo porque aponta um futuro de corpos exaustos, cabeças vazias, vidas que já são morte, pessoas que nem tempo terão para questionar a sua própria identidade. Mas, como em “Vertical earthquake”, uma nova ordem social surgirá de forma orgânica.
Nuno Lourenço |