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ARTE A INCORPORAR O SISTEMA: O CORPO COMO MÁQUINA, GADGET E CAPITALDIOGO DA CRUZ2016-05-25
Parte da população humana corre o risco de perder competências sensitivas perante o mundo material que a rodeia.[1] A falta de textura dos móveis de construção em massa, das paredes de muitos apartamentos e dos touchscreens que tanto acaricia está a privá-la de estímulos sensoriais essenciais para criar um vocabulário corpóreo rico. As estradas são suaves, as viagens fazem-se com pouca turbulência e as escadas rolam automaticamente. Neste contexto, a matéria e o corpo são ainda necessários, mas preferencialmente lisos e regulares para evitar qualquer inconveniência. Para a vantagem de muitos, estamos a ser privados de experiências físicas, e consequentemente a dar cada vez mais valor à nossa presença não material (quer online quer em capital). Para inconveniência de outra grande parte da população, este luxo ilusionista é alimentado pela exploração desmesurada de trabalho físico de muitos, que nunca terão o prazer de se iludirem num mundo virtual, estando presos ao ofício material. Perante esta situação parece-me pertinente trazer alguns exemplos de como artistas criaram propostas para um diálogo entre o corpo e os novos sistemas que o confrontam. Sinto que elas apontam a problemática da nossa relação com a máquina, muito evidente com a revolução industrial, mas infelizmente acalmada nos dias de hoje com as possibilidades virtuais da revolução tecnológica. De facto, o nosso corpo é uma máquina, e nele está a origem de todas as máquinas criadas por humanos. Essa relação é explícita na obra de Etienne-Jules Marey (1830-1904), um cientista também considerado artista, que dedicou muitos anos ao estudo do nosso sistema locomotor para o ajudar na construção de máquinas. O inventor da cronofotografia, que proporcionou a descoberta do cinema, dedicou a sua vida a fotografar o corpo humano e o animal em acção, criando fotografias tão valiosas do ponto de vista científico como artístico. [2] O seu trabalho criou uma revolução na percepção de tempo e movimento dos seus contemporâneos ao captar instantes de certas acções que seriam impossíveis de observar a olho nu. Com a representação fragmentada do movimento do corpo humano, Marey trouxe a possibilidade da representação da passagem do tempo numa imagem estática, mostrando também a complexidade da locomoção animal e como esses conhecimentos podem ser aplicados à engenharia mecânica. Tal como já acontecera no Renascimento, e com mais convicção no Iluminismo, o corpo animal, em especial o humano, era o exemplo da máquina perfeita e insubstituível. Contudo, com a revolução industrial, em particular com a máquina a alterar, sistematizar e cronometrar as acções do homem, o ideal mecânico, que fora criado pelo próprio humano, vem impor-se à forma como o corpo é usado. Quando as Tiller Girls, um grupo de dançarinas muito popular no início do século XX, tentou assumir movimentos mecânicos nas suas danças e os futuristas trouxeram os engenhos e sons fabris para a sua arte, o humano acabou por ser condicionado pela sua própria criação. Esta problemática foi até retratada como comédia com Modern Times do Charlie Chaplin. O corpo do trabalhador fabril tem de se acomodar aos desejos da máquina, para além dos do seu chefe é claro, mostrando o ridículo da frustração do trabalhador ao tentar assumir um ritmo industrial. A mecanização do corpo provocou uma mecanização da vida e das relações entre pessoas. O corpo da mulher foi nesta altura submetido a uma enorme objectivação e desconstrução. Numas das obras emblemáticas do Marcel Duchamp, La mariée mise à nu par ses célibataires, même (A noiva despida por seus celibatários, mesmo) o corpo feminino, e o sistema reprodutivo, é transformado em complexos e redutores engenhos sexuais, que produzem tanto prazer como vida de uma forma semelhante a uma fábrica. Esta obra, também referenciada como ‘O Grande Vidro’ (Le Grand Verre), projecta uma complexa e violenta máquina de amor, onde o corpo parece não existir. Registos como o do Duchamp são ricos e válidos na medida que mostram a problemática da aplicação destes ideais industriais na nossa vida, quer no campo cultural, quer no sexual. Já nos anos 70 e 80 este corpo robótico foi acolhido e celebrado com uma leveza e espectacularidade diferente. Desde os Star Wars ao RoboCop, a ideia do corpo-máquina não está apenas presente, ela acaba por ser popular e atractiva para muitos. Os Kraftwerk tornaram o ser robot em algo cool e vanguardista. Com esta banda, e muitas outras claro, tornou-se evidente como a música electrónica tem efeitos no nosso corpo biológico, e de como facilmente nos moldamos a sonoridades inexistentes no mundo dito natural. A partir dos anos 90 a tecnologia vai dando passos para mais próximo do nosso corpo. Os objectos criados para nos ajudar nas tarefas diárias, principalmente os ditos multi-usos, vão-se tornado essenciais e variados. Quase todas as nossas actividades corpóreas começaram a ter a ajuda de utensílios criados para tornar a nossa vida mais fácil. Neste tema, o trabalho desenvolvido por Kawakami Kenji surge como um fantástico e irónico retrato desta dependência. Kenji criou objectos a que chama Chindōgu, que são invenções para resposta a problemas diários, mas que, ou criam mais problemas ao utilizador para cumprir a sua função, ou tornam-se embaraçosos para quem os usa. [3] Estes objectos são tão absurdos como geniais, e constituem uma crítica honesta da dificuldade do nosso corpo em se adaptar às situações a que está exposto, criticando a criação de gadgets considerados ‘práticos’. A impossibilidade da presença do corpo para representar alguns dos sistemas da contemporaneidade parece ser um sintoma da ausência de referentes corpóreos nestes mesmos. Ao nível da Arte Contemporânea, e o sistema que é o seu mercado, a mercadoria artística não deve conter o corpo, para evitar inconveniências. Andrea Fraser, uma artista conhecida pelo seu trabalho em critica institucional, explorou essa mesma inconveniência com a sua peça Untitled (2003). Este vídeo de 60 minutos, é a gravação do encontro sexual da artista com um coleccionador privado num quarto de hotel. Este pagara 20.000 dólares para fazer parte do trabalho da artista, que viera a ser produzido em cinco cópias, uma para o coleccionador, outra para a artista e três exemplares para exposição. Esta obra, extremamente polémica como se podia prever, originou uma discussão acesa na definição desta mesma como feminista, anti-feminista ou mesmo pós-feminista. Contudo, pretendo aqui mostrar de como Untitled (2003) trata de certa forma a posição (ou a impossibilidade) do corpo no mercado da arte. Fraser propôs elevar o seu próprio corpo, ao mais alto nível de intimidade, a produto da sua prática artística. Pela situação extrema criada nesta performance é obvio o constrangimento em imaginar algo literalmente corpóreo tornar-se num produto para ser comercializado e coleccionado. O corpo da artista, mesmo que presente, é anulado para dar lugar a um trabalho artístico, de um determinado valor estético e comercial. Com este conjunto de exemplos, não tenciono obter nenhuma generalização ou conclusão, mas sim apontar casos em que a relação entre o corpo e o sistema em que este se insere foi problematizada de uma forma produtiva que proporciona uma discussão. Quero também mostrar como a prática artística pode ser uma resposta para criar consciência não só das possibilidades mas também das impossibilidades do mundo em que vivemos, neste caso da impossibilidade de um corpo representativo do sistema actual. Primeiro mecanizado, depois idealizado e finalmente apagado e comercializado, o corpo parece perder-se por entre uma colecção de dados e cosmética, sistema de saúde e moda, higiene e etiqueta, pelo menos para a parte da população que se pode dar ao luxo de tal renúncia.
Notas [1] P. Virilio, The Information Bomb. London: Verso, 2005.
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