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Miguel von Hafe Pérez


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MIGUEL VON HAFE PÉREZ


Crítico e curador, Miguel von Hafe Pérez assinou diversos projectos de comissariado nacionais e internacionais, e foi responsável pela área de Artes Plásticas, Arquitectura e Cidade do Porto 2001, Capital Europeia da Cultura. Actualmente é responsável pelo projecto de arquivo sobre arte contemporânea em Portugal intitulado Anamnese, para a Fundação Ilídio Pinho. Nas vésperas do lançamento da edição livro deste projecto, falou à ARTECAPITAL desta e de outras acções desencadeadas pela Fundação Ilídio Pinho, nomeadamente da recente criação de uma colecção de arte contemporânea. Ao longo desta entrevista, houve ainda oportunidade de saber o que pensa sobre os acontecimentos e as tendências que marcam a actual cena artística nacional, a sua opinião sobre a internacionalização da arte portuguesa e os aspectos mais relevantes da nova experiência enquanto político, no cargo de Vereador da Câmara Municipal do Porto.

Por Sandra Vieira Jürgens
Porto, 26 de Junho de 2006


P: Como surge o projecto Anamnese?

R: O projecto surgiu por via de um convite que me foi feito em 2002, no sentido de adaptar um projecto pré-existente na Fundação Ilídio Pinho que já tinha sido alvo de uma candidatura aceite pelo POC para a criação de um catálogo digital de artistas portugueses. A ideia era criar algo semelhante a uma enciclopédia num formato que utilizasse as novas tecnologias, já que a Fundação tem como desígnio fundamental o cruzamento entre as novas tecnologias, o mundo empresarial e o mundo da cultura. Aceitei o convite na medida em que, de alguma forma, pudesse reformular o projecto para algo que me parecia mais interessante, já que esta vertente meramente biográfica e ilustrativa não traria uma mais-valia absoluta ao contexto. Isto aconteceu no ano a seguir ao Porto 2001, uma experiência muito activa de campo, interessando-me, assim, um certo recuo.
A minha experiência profissional dizia-me que a questão fundamental em Portugal tem a ver com uma absoluta falta de tempo, comum a todos os agentes do meio, para se trabalhar a nível da memória. Isso tem muito a ver com a perspectiva de que é sempre necessário começar de novo, solidificar programações e propostas (veja-se o que está a acontecer com o CCB, que está sempre a arrancar com novas direcções e administrações), sendo que as pessoas têm muito pouco tempo para tratar, a nível de arquivo e de memória crítica, aquilo que se vai fazendo. Por outro lado, também me pareceu que era importante para um público especializado e para o público em geral tornar mais acessíveis as fontes primordiais do conhecimento relativamente à arte contemporânea em Portugal.
Em termos de História de Arte, a nossa produção teórica, pelo menos a nível do grande público, é muito escassa; fica quase tudo nas gavetas dos mestrados e dos doutoramentos criados no âmbito da universidade. Em termos teóricos, há pouquíssimos autores com uma produção regular. A maior parte do exercício ensaístico e de crítica são produzidos no contexto dos próprios catálogos de exposição (que têm uma circulação muito restrita), assim como no meio muito efémero como são as publicações jornalísticas e periódicas que, como sabemos, também são materiais que se perdem muito rapidamente. Foi essencialmente por aí que quis estabelecer uma nova plataforma para o trabalho.


P: A plataforma digital de informação abarca o período de 1993 a 2003. Porquê essa periodização?

R: Criei uma ossatura conceptual para o projecto que iria trabalhar no âmbito de uma década. Como comecei o projecto em 2002 e apontou-se o ano de 2003 como fecho. Recuei uma década (o que claramente aponta para as nossas idiossincrasias culturais) para o ano de 1993, porque a nível pessoal foi um ano importante e a nível institucional também — foi o ano da exposição “Imagens para os anos 90” que, apesar de tudo, marcou uma certa viragem no panorama expositivo em Portugal, já que consignou definitivamente a entrada das gerações mais novas no sistema institucional o que levou a que a partir daí se multiplicassem exemplos desses.
Parecia-me muito importante resgatar essa memória, quer crítica e ensaísta, o que se concretiza com excertos de texto que acompanham cada um dos eventos seleccionados, quer em termos visuais e iconográficos. É absolutamente fundamental realçar esse esforço, já que, muitas vezes, não tendo as pessoas visto uma exposição e os catálogos não reproduzindo as obras no próprio local da exposição, essa memória perde-se com imensa facilidade.
A mim interessava-me — já que é um projecto que congrega e que pretende dar visibilidade aos artistas e às instituições — esse momento em que as instituições e os artistas se dão a ver, que é o da instalação das exposições. Isto também tem a ver com uma percepção relacionada com o meu trabalho institucional quando colaborei com a Fundação de Serralves: sabia que há um investimento muito forte por parte das instituições (quando o fazem bem, porque há instituições em Portugal que o fazem mal), nomeadamente quando se tiram fotografias às exposições para futura memória, mas que esse investimento não tinha reflexo no próprio âmbito das instituições. Nem Serralves, nem a Gulbenkian, nem o CCB, muito menos a Culturgest davam visibilidade a esses arquivos. Se quisermos saber qual era o ambiente numa exposição em Serralves, decorrida no ano de 1995, não há memória disso. Os próprios catálogos não reproduzem isso.
Penso que a “Anamnese” é uma ferramenta que se vai tornar absolutamente fundamental na criação dessa memória (que estava um pouco subterrânea) e para a compreensão de um meio que, apesar de tudo, nesses anos é extremamente activo.
A escolha do período em torno de 1993 não é despiciente a esse nível porque é um momento em que começam a aparecer instituições novas: abre o CCB, abre o Centro Português de Fotografia no Porto, a Culturgest e depois o Museu do Chiado, uma série de instituições que nesse período ajudaram a reconfigurar o meio.
Ao contrário daquilo a que os portugueses estão muito habituados — andarmos a queixarmo-nos uns com os outros —, a noção que tenho é que no meio artístico português, na sua relação com a população existente e com os níveis económicos gerais, o meio das artes visuais é, em termos culturais, um dos mais activos e mais privilegiados. Porque tem profissionais que, muitas vezes, sofrem muito, mas que têm tido um trabalho de relevo. Em termos institucionais, temos de assinalar, não estamos mal servidos, ao contrário do que muita gente diz. Os artistas portugueses têm tido oportunidades que me parecem importantes e que não são tão díspares das que outros países, nomeadamente do Sul da Europa, detêm.


P: Em que fase de desenvolvimento se encontra o projecto?

R: Nós tivemos uma consciência clara de que este ia ser um processo longo porque, numa primeira fase, tivemos de construir uma plataforma que nos permitisse, de forma articulada e fácil, que estes conteúdos fossem visíveis na Internet. A construção da ferramenta foi feita à medida para o projecto, o que durou muito tempo, mais de um ano e meio. Por outro lado, a própria estrutura de consulta do site foi intensamente reflectida e aí estou extremamente grato ao Miguel Carvalhais que dirigiu o respectivo design e os procedimentos de recolha de informação na base de dados que serve o projecto.
Entretanto, todo o trabalho ia sendo direccionado para a recolecção de material, para posterior edição. Ou seja, era muito importante ter uma ideia do panorama geral para, a partir daí, proceder à edição de conteúdos. Tentei coligir um maior número possível de dados, completar a matriz essencial com os eventos que tinham acontecido para, a partir daí, ir apurando os critérios editoriais. Porque, de início, não tinha, de facto, uma ideia muito clara de quão extensiva podia ser essa edição.
Os critérios são essencialmente de visibilidade e de alguma notoriedade pública. Estão inseridas na plataforma muitas exposições que não têm a ver com um critério crítico da minha parte (não há um juízo de valor sobre aquela exposição), mas que têm a ver com a relevância pública, com o facto de ser uma exposição daquela instituição ou de uma galeria que tenha gerado alguma visibilidade que permita editar conteúdos. Há exposições de artistas que podemos gostar muito que passaram desapercebidas e, aí, não crio conteúdos novos sobre esse evento, pois estou a trabalhar sobre o que existia a uma determinada data.
Conscientes de que este processo preparatório ia ser muito longo, criámos logo aquela versão inicial do site que está neste momento online que pretendia, por um lado, mapear um pouco o território dos artistas activos no contexto português (neste momento, estão cerca de trezentos artistas online, cada um com uma participação com dez trabalhos, escolhidos pelos próprios artistas ou em articulação connosco). Por outro lado, há uma outra secção designada “Um artista, uma peça, um autor” em que convido críticos estrangeiros a escreverem sobre um autor português. É um exercício muito próprio ao meio (à Internet) porque permite relações rápidas com esse contexto internacional e centraliza-se exclusivamente sobre um trabalho. São textos muito direccionados. É uma observação da qual sinto falta, mais próxima do objecto artístico e não tanto uma escrita contextual, mais à vol d’oiseau.
As entradas desta secção dão um sinal, obviamente pequeno, de que já existe um respeito alargado por parte da comunidade crítica internacional relativamente ao contexto português, onde há mais ligações entre críticos e artistas portugueses do que aquelas que, à partida, esperaríamos. Algumas foram, inclusivamente, geradas pela própria plataforma. Alguns contactos de críticos estrangeiros foram feitos no sentido de, eles próprios, irem à plataforma e procurarem informação dos artistas portugueses e, a partir de uma primeira selecção, dizerem que gostavam de x ou y, enquanto nós fornecemos mais material sobre esses artistas para as pessoas escreverem a partir daí. É um fenómeno curioso pois a plataforma pode gerar um conhecimento que, até aí, era bastante fragmentário da arte portuguesa.
Esse é o grande problema. Mesmo alguns dos críticos conhecedores do contexto português, que conhecem cinco ou seis artistas, são pessoas que já vieram a Portugal e que normalmente conhecem os nomes de maior visibilidade internacional. Mas a grande dificuldade é fazer as pessoas perceber o que é o meio português e qual é, de facto, o trabalho que esse meio tem vindo a produzir.
O feedback internacional que tenho aponta no sentido de surpresa absoluta pela quantidade — naturalmente não gostarão de cem artistas, como eu próprio não gosto — mas ficam surpresos pela quantidade e pela qualidade média daquilo que é apresentado. E mais surpresos ficarão, com certeza, quando perceberem que o meio português, a partir da década de noventa, gerou uma quantidade tão grande de eventos, nomeadamente de artistas internacionais no nosso contexto, o que é um facto absolutamente extraordinário comparativamente à década anterior. Com a actividade somada da Gulbenkian, de Serralves, do CCB, do Museu do Chiado, da Culturgest, de algumas galerias comerciais e de festivais como os Encontros de Fotografia de Coimbra e os Encontros da Imagem de Braga, o rol de autores que passou por Portugal, com exposições melhores ou piores, é assinalável.
Este facto é frequentemente esquecido, exactamente porque esses eventos acabam por ser subaproveitados na sua capacidade de gerar discurso e de gerar continuidades culturais mais profundas. Esse é um dos propósitos primordiais da Anamnese.


P: Que outras dimensões tem o projecto para além do site?

R: Outra dimensão do projecto, que terminámos recentemente, é a edição de um livro que corresponde a um desafio lançado aos artistas no sentido de responderem a um inquérito muito simples: através de três perguntas pedia-se que eles respondessem qual era a exposição individual mais significativa para eles, no período entre 1993 e 2003, a colectiva em que tenham participado e a nomeação de um artista terceiro que tenham visto em Portugal naquele período. Para mim o resultado deste inquérito é importante como uma espécie de cartografia global de eventos significativos que numa situação especular me devolve a imagem de um período que complementa, nesta caso particular, refina, a edição que eu próprio proponho na plataforma digital. Aqui a reprodução das vistas de exposição tem um peso ainda maior do que na plataforma digital e estou particularmente satisfeito com o produto final, cujo design foi assegurado pelo João Pedro Vasconcelos, autor com quem já tinha trabalhado anteriormente, responsável por edições no âmbito da Porto 2001 como os catálogos “A Experiência do Lugar” e “Mistura+confronto”.
A Anamnese também vai dar visibilidade aos eventos que os artistas portugueses realizaram no estrangeiro, campo absolutamente lacunar na nossa informação cultural. Infelizmente são os próprios artistas a dar essas notícias aos jornais e só muito fragmentariamente é que elas chegam a Portugal, o que tem a ver com a força do nosso meio jornalístico (que obviamente não consegue ter colaboradores em todas as partes do mundo como os meios de informação de países economicamente mais desenvolvidos mantêm).
Estive, por exemplo, nos últimos três anos a colaborar com o Centre d`Art Santa Mònica. Fiz exposições de portugueses lá e nunca saiu uma única linha na imprensa portuguesa, o que me parece absolutamente absurdo. Não sei se por falta de comunicação do prório centro Santa Mònica com Portugal, se por falta de interesse dos meios cá, mas não me parece normal que tratando-se uma instituição com relevância peninsular e europeia — onde expuseram artistas portugueses e um comissário português esteve, naquilo que me parece ser um caso único e inédito, a trabalhar em continuidade — esse facto não tenha tido qualquer eco cá. Por vezes, as pessoas ficam surpreendidas com esse género de coisas e é desmotivante para quem faz um esforço grande, nomeadamente, na internacionalização da arte portuguesa.


P: Quais são as outras áreas em que a Fundação está a investir em termos de arte contemporânea?

R: A Fundação está, neste momento, com um processo que visa a construção de uma sede. É um projecto do arquitecto Manuel Salgado que vai ficar numa zona perto da Universidade Católica, não muito longe de Serralves. É um edifício funcionalmente muito aberto, até porque Fundação não tem um programa tão claro como outras instituições, que são museus de Arte Contemporânea, da Ciência, etc. Como a Fundação tem este papel um pouco mais abrangente em que genericamente quer aliar a ciência, a tecnologia e a cultura, o programa acaba também por ser mais aberto.
Entretanto, a Fundação decidiu iniciar uma Colecção de Arte Contemporânea e para isso constituiu um Conselho, composto por Alcino Cardoso, mais ligado à área da gestão, mas que conhece bem o meio das artes plásticas, o escultor Alberto Carneiro e eu.
A nossa actuação pretende ter um papel que possa ser diferente de uma actuação de uma instituição com cariz público, que detém outro tipo de responsabilidades perante o meio, já que, enquanto instituição privada, podemos escolher o modelo de actuação. Este passará por uma tentativa de estar mais próximo dos artistas e de sentir que uma colecção não pode, ou não deve, ser única e exclusivamente espelho daquilo que o mercado tem para oferecer. É claro que a nossa intervenção no mercado vai ser regular e continuada — também sentimos que é importante apoiar o sistema nesse contexto — mas há muitas outras oportunidades, dada a flexibilidade institucional que nos norteia, de apoiar os artistas, sem nos querermos substituir ao IA (Instituto das Artes).
Há situações, quer no contexto das galerias, quer em intervenções institucionais e não só, em que os artistas precisam, por exemplo, de dinheiro para produzir trabalho e não conseguem auto-financiar-se. Aí, a Fundação pode ter um papel interessante, tendo sempre como pano de fundo a aquisição de obras. Só que, em vez de essa aquisição ser feita mediante um trabalho que já existe, pode prever situações em que se proceda a uma negociação entre a Fundação e o artista para que alguns dos trabalhos a serem produzidos fiquem para a Colecção.
Outra área que gostaríamos muito de privilegiar, muito negligenciada no contexto da Arte Contemporânea portuguesa, é a de edição de autores. Não se trata de livros sobre um autor — terreno que já tem vindo a ser coberto com alguma eficácia nos últimos tempos — mas estimular os autores a fazerem edições de artista, muito raras no nosso contexto. Nos anos 70, houve algumas experiências interessantes, onde o Alberto Carneiro, por exemplo, teve algum papel importante, Dessa geração penso que seria importante estimular artistas como a Ana Vieira, ou o José Barrias, a concretizarem projectos nessa área, tal como o poderiam fazer artistas da nova geração, alguns dos quais, creio, teriam a curiosidade e a capacidade suficientes para o concretizarem com eficácia e pertinência.
Muitas vezes, este tipo de intervenção acaba por funcionar quase como um apoio indirecto a instituições. Por exemplo, nós apoiámos uma exposição que o artista André Cepeda fez no Solar- Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde. O tipo de exposição que ele queria fazer — que era composta por dez imagens em caixa de luz — pressupunha um custo incomportável quer para o artista quer para a própria instituição. A partir do momento em que pagámos toda a produção dessa exposição estamos a beneficiar não só o artista como também indirectamente a instituição que fez uma exposição que, à partida, não poderia produzir sem apoio financeiro externo. E, para nós, também foi extremamente gratificante, pois chegámos a acordo com o artista, em que algumas das obras produzidas ficaram para a Fundação.


P: Qual vai ser o perfil da Colecção?
R: Estamos a trabalhar só com artistas portugueses. Não quer dizer que, de futuro, se venha a manter essa perspectiva mas, neste momento trabalhamos só com artistas portugueses, com obras criadas a partir de 2000 (porque simbolicamente coincide com o ano da constituição da Fundação), Trata-se de uma Colecção sem qualquer tipo de constrangimento geracional, que se quer aberta essencialmente a propostas de qualidade.

P: Qual vai ser o seu orçamento?

R: O orçamento poderá ascender a um milhão de Euros, verba que me parece mais do que adequada. Não é a verba que, quanto a mim, determina a própria qualidade da Colecção, nem nós temos pressa de esgotar a verba enquanto tal. O que importa é reflectir sobre o papel que a Colecção pode desempenhar no nosso contexto, com que tipo de consistência e eficácia é que se deve operar para que esta intervenção tenha um carácter distintivo.
Como é um caminho relativamente inédito no contexto (onde se mistura um pouco esta noção de compra, de apoio, entre outros), temos, por um lado, de ir percebendo quais são as nossas capacidades de gerar empatia no meio para que isto funcione como deve funcionar e, por outro lado, perceber se este programa eventualmente possa ainda vir a desdobrar-se noutras tipologias de intervenção.


P: Vai diferenciá-la, por exemplo, de outras Colecções que estão a ser constituídas?

R: Acho claramente que sim, porque, na maior parte dos casos, isto passará por uma escolha muito concreta e muito dialogada com os próprios artistas.


P: É um trabalho de comissariado?

R: Quase, sendo que a construção de uma colecção acaba quase sempre por ser também uma espécie de trabalho de comissariado. O que nos entusiasma mais é essa capacidade de intervir no meio de uma forma positiva e dessa intervenção resultar algo que satisfaça muito positivamente quer a Fundação, quer o artista e, como exemplifiquei anteriormente, determinadas instituições que não detenham recursos suficientes para cumprir os seus objectivos.


P: Que tipo de trabalhos têm sido adquiridos?

R: Cruzam várias gerações, desde trabalhos do Álvaro Lapa, do Ângelo de Sousa e do Noronha da Costa, passando por obras de Fernando Brito, Luís Palma, Paulo Catrica, André Gomes, Pedro Portugal, António Olaio e Avelino Sá da geração intermédia, até aos mais novos, como o André Cepeda, o Francisco Queirós, a Carla Filipe, o Pedro Barateiro e a Catarina Leitão entre outros...


P: O que pensa da Colecção Fundação Ellipse que teve a sua primeira apresentação no passado dia 23 de Junho no Centro de Artes de Alcoitão?

R: Há algo que me parece indiscutível, que é o facto de ser uma colecção importante. Fico satisfeito, pelo que li na entrevista na ArteCapital, que de alguma maneira tenha passado de uma vertente de menor visibilidade pública para uma mais abertamente virada para um serviço público em Portugal. Não posso deixar de me congratular com isso.
Faz-me, contudo, alguma impressão que a seu propósito se façam declarações tontas, como a que saiu num jornal no dia da apresentação da Colecção, em que um dos seus curadores, Manuel González, afirmava que “desde que o Peter Ludwig fez a sua colecção nos anos 60 que não havia nada assim na Europa”. Acho que este tipo de afirmações só prejudica o próprio alcance da Colecção e aquilo que ela pode representar para o nosso contexto.
Na Europa existirão centenas de colecções mais importantes – no sentido em que o curador a queria referenciar, com certeza. Não se pode comparar Colecção Ellipse com a Colecção Onnasch, que teve visibilidade em Serralves há pouco tempo, ou muitas outras, como a Colecção Goetz só para nos mantermos no universo germânico que pretensamente, desde Peter Ludwig não teria constituído acervos privados importantes...
Mas é importante que em Portugal se possa ter acesso a essa Colecção e espero que esse seja um dado com reflexos de continuidade no futuro e que este não seja um momento transitório para essa Colecção.
Para além dos grandes momentos de festa, é absolutamente necessário criarem-se sedimentos de continuidade e a capacidade de se criarem mais-valias culturais. E, aí, só com uma acção continuada ao nível dos serviços educativos, de materiais didácticos que sejam editados paralelamente a essa visibilidade e outro tipo de acções que fomentem, por exemplo, o intercâmbio de artistas e curadores nacionais e internacionais é que este tipo de iniciativas se tornam verdadeiramente operativas para a esfera pública.


P: O que pensa do Acordo com a Fundação Berardo e da sua instalação no CCB?

R: Como espectador minimamente atento e não como conhecedor muito profundo de todo este processo, creio que há ali zonas cinzentas que são relativamente dúbias. Mais uma vez me impressionou muito uma declaração infeliz e desajustada que pode criar um equívoco enorme nesta história da Fundação Berardo. É uma “boutade” do próprio Joe Berardo, quando diz que quer fazer da Fundação o museu mais visitado da Europa: Lisboa nunca vai ter um museu com 4 milhões de visitantes como tem a Tate, em Londres...
O grande problema, quanto a mim, da Fundação Berardo, terá a ver com essa capacidade ou não de gerar novos públicos. Se calhar, existirá a capacidade para gerar um público novo numa fase inicial, mas depois a manutenção de públicos regulares depende muito de uma politica de exposições temporárias forte. Nesse sentido, temos muito poucas indicações daquilo que se pretende fazer. Sabemos que existe a Colecção, que é indiscutivelmente valiosa e que pode gerar exposições temporárias interessantes, mas isso é uma hipótese. Em concreto, falta-me saber qual é a política que vai ser seguida no que diz respeito a exposições que não tenham exclusivamente a ver com a Colecção. Falta-me saber quem vai ser o Director Artístico da Fundação e qual vai ser a sua autonomia de programação. Acharia importante que em Portugal se desse um sinal de alguma transparência, de alguma abertura cosmopolita e se abrisse um concurso internacional. Parece-me que seria, de facto, a solução mais indicada, e que nunca se faz cá, independentemente de os portugueses também poderem concorrer. A verdade é que há dezenas de comissários e directores de museu altamente qualificados que, aposto, viriam de bom grado trabalhar para Lisboa. Se essa via não for a escolhida, ficamos sem saber quais seriam ou se haveria essa hipótese. O “efeito Todolí” em Serralves deveria ser motivo de reflexão.
Sendo a Colecção Berardo uma colecção muito interessante, se não gerar mais-valias culturais fortes e duradouras, está-se única e exclusivamente a falar de mais-valias em termos económicos. E, aí, quem lucra não é o Estado. No limite, até diria: será que interessa a Portugal ficar com essa colecção? Diria que não, porque dez anos passam num abrir e fechar de olhos e o modo como a Colecção está a condicionar o modelo institucional de uma das instituições de referência do País parece-me exagerado (tendo em conta as incógnitas que mencionei anteriormente).
Se, contudo, estas questões forem atendidas, se a constituição da Colecção for um factor absolutamente diferenciador e positivo para o contexto da arte em Portugal (porque, apesar de tudo, vão ter bastante dinheiro para adquirir arte), se os artistas forem chamados a ter uma intervenção importante no contexto da programação dessa futura Fundação, então sim. Daqui a 10 anos, estaremos aqui para fazer um balanço positivo. Creio que muito passa por este momento chave de decisão da Direcção Artística daquele projecto. Quando não há uma direcção muito clara e muito assertiva — como houve com Serralves no momento decisivo de arranque do Museu, com Todolí — isso perpassa para o público em geral. Se isso não acontecer, não creio que o caminho desta fundação seja fácil. Porque sentimos também que este acordo entre o Estado e o Comendador Joe Berardo foi feito em grande tensão.


P: Qual é a opinião que tem da actual cena artística portuguesa?

R: Acho que, de facto, nos últimos anos, tem-se assistido a uma crescente profissionalização do meio. As pessoas estão hoje mais preparadas, mais habituadas a lidar com as circunstâncias do meio. Os próprios artistas têm desde cedo uma consciência mais aguda de como o circuito se estrutura e do que é preciso fazer para ter uma participação profissional nesse meio.
Penso que os artistas portugueses não têm excessivas razões, hoje em dia, para se queixar, porque, apesar de tudo, há uma série de instituições que compram, que apoiam, há uma rede de galerias que cobre o leque de artistas activos de uma forma quase integral e que tem mantido uma participação regular em termos de feiras internacionais muito importante para a sua visibilidade no exterior. Chegada a oportunidade, os artistas, nomeadamente nas gerações mais novas, têm conseguido ter alguma presença regular no contexto internacional, que é o mais difícil. Hoje em dia, há, em termos de gerações mais novas, maior circulação de artistas portugueses do que artistas espanhóis, o que é um fenómeno curioso, tendo em conta que Espanha nos últimos anos abriu mais de 30 museus de Arte Contemporânea.
Apesar de tudo, muito do trabalho é, de facto, um trabalho individual, não tanto do sistema, mas que parte muito dos próprios artistas. Infelizmente, em termos de internacionalização, é um trabalho demasiado dependente de questões conjunturais: muito dependente de um Comissário poder ver uma obra numa determinada Bienal, de um galerista poder contactar com a obra numa determinada Feira, da vinda cá de alguns profissionais para conhecerem o contexto nacional.
Não há uma sustentação, nomeadamente a nível do Estado e uma continuidade que tenha assegurado, nos últimos dez anos, que a qualidade crescente em termos médios da Arte portuguesa possa ser vista por mais gente de uma forma mais pertinente. Há muita desarticulação, no que diz respeito a uma projecção internacional da arte contemporânea portuguesa, a qual está demasiado dependente da presença internacional em quatro ou cinco grandes exposições ou Bienais.
Isso pode ter um peso importante para alguns artistas mas claramente desfavorece uma política concertada, tal como foi levada a cabo pelos países do Norte da Europa nos anos 90. Houve um boom dos países nórdicos porque houve uma acção concertada fortíssima, que agregou instituições estatais, museus e instituições privadas. Os institutos nacionais criaram, aí, estruturas que serviram de plataforma de passagem para não só de críticos e comissários internacionais, como um intercâmbio entre artistas internacionais e locais — e isso é muito importante.


Como encara o que deve ser uma estratégia de base para a internacionalização da arte portuguesa e o que tem sido feito pelo Instituto das Artes?

R: Esse trabalho é claramente deficitário por razões distintas. O Instituto das Artes (IA) ainda existe? Se calhar, estamos a falar de algo que já nem existe! E esse é, à partida, um dos problemas...a velha questão já tão falada aqui das continuidades ou descontinuidades do nosso sistema das artes. Parece que agora é uma Direcção Geral. Há descontinuidades muito grandes. Já passaram muitos Ministros da Cultura pelo caminho, muitos Directores e esse problema da descontinuidade é gravíssimo; eu até diria o seguinte: o problema mais grave na cultura portuguesa é o das descontinuidades contínuas. Muitas vezes, temos a sensação de que se está a começar tudo de novo. Entram pessoas novas e parece que têm a obrigação de reformular tudo, quando as coisas estariam até minimamente bem encaminhadas.
Perante a noção de que vivemos num mundo global, ou nos inscrevemos nele assertivamente e mostramos alguma diferenciação qualitativa, mas promovemos diálogos, ou então não o conseguimos fazer. Nesse sentido, acho que o IA tinha de ser essencialmente uma plataforma de visibilidade da arte portuguesa, ajudando os artistas — que, muitas vezes, pelos seus próprios meios conseguem ligação ao meio internacional — e pensando, não só nas grandes exposições e nas bienais, mas apoiando mais consistentemente os artistas portugueses, nomeadamente também os que estejam a residir no estrangeiro, por exemplo.
É algo que queria muito privilegiar na Colecção da Fundação Ilídio Pinho para haver essa ligação mais estrutural com o país de origem e, por outro lado para, num movimento inverso, apostar na vinda de profissionais estrangeiros que, muitas vezes, têm de ser espicaçados para virem cá. Esse é o grande drama para que muitos de nós, comissários, críticos ou agentes culturais continuamente alertamos — o facto de Portugal não ser nem centro nem periferia. Portanto, temos um trabalho duplo a fazer, o qual passa, muitas vezes, por trazer cá as pessoas quando elas normalmente não viriam.
Para um comissário internacional, com responsabilidades curatoriais globais, há 50 viagens mais importantes a fazer do que a vinda a Portugal. Se calhar, é muito mais importante ir à Bienal de Dacar do que ir a Lisboa ou ao Porto para ver uma exposição, mesmo que seja uma exposição fabulosa, construída com investimentos humanos e financeiros enormes. É com essa consciência que devemos elaborar a estratégia de divulgação da nossa arte contemporânea.
Na Bienal de Dacar, uma jovem artista portuguesa, Cláudia Cristóvão, que reside em Amesterdão e que nunca teve visibilidade em Portugal, foi uma das premiadas. Telefonou-me na semana passada a dizer que tinha sido seleccionada para participar na Bienal de São Paulo. É para estes fenómenos que temos de estar muito atentos. Eu por acaso tive a oportunidade de a conhecer no ano passado, exactamente porque fui convidado a participar numa programação de conferências paralela à Feira de Amesterdão, para a qual convidaram vinte comissários de todas as partes do mundo.
Muitas vezes é difícil marcar espaço na agenda desses comissários internacionais. Portanto, tem de se ser muito racional, inteligente e intuitivo nessa captação para perceber quem são as pessoas que têm essa capacidade de fazer mexer, quais são as instituições que estariam abertas a esse panorama…Cometem-se frequentemente erros estratégicos graves. Hoje em dia, é muito menos interessante trazer cá um curador, por exemplo, da Tate Modern, do que um curador de uma pequena instituição alemã, brasileira ou espanhola, onde a vontade de trabalhar com artistas portugueses é, realisticamente, muito maior do que na Tate Modern ou outro grande museu, americano, por exemplo, onde essa penetração é dificílima.


P: Espanha inclui-se numa linha a seguir para a internacionalização da arte portuguesa? A feira ARCO continua a ter importância?

R: A ARCO é seminal para Portugal. Para além do lado quase anedótico de os portugueses comprarem extensivamente na ARCO, que vai continuar pois é um fenómeno hiper-enraizado, há um outro lado, esse sim, muito importante. O Pedro Barateiro, enquanto jovem artista, foi comprado para a Colecção da ARCO mediante uma selecção de pessoas como o Dan Cameron e a Maria Corral. A única maneira que o Pedro Barateiro tem de se mostrar à Maria Corral é, infelizmente, numa feira. Agora isso é melhor do que nada, pois criará uma curiosidade e uma apetência para que a sua carreira seja seguida com maior interesse por parte destes comissários. Em termos genéricos, para os artistas portugueses, a presença na ARCO é muito importante porque algumas instituições estão lá e estão atentas.
No que diz respeito ao “mercado” institucional espanhol, hoje em dia, Portugal é quase mais uma das regiões do País: não deixa de ser curioso que a Helena Almeida tenha ganho há uns anos, o Prémio Nacional de Fotografia em Espanha, e que o Pedro Calapez tenha ganho o Prémio Nacional de Gravura. Enfim, os prémios nacionais em Espanha já contemplam artistas portugueses, o que é uma perspectiva insidiosa da sua versão peninsular. Mas isso é-o em todas as áreas: na economia, na energia, em tudo.
Agora, o que é um facto é que aí temos muitos amigos. Há muita gente que gosta da arte portuguesa e conseguiram-se estabelecer ligações interessantes entre galeristas, entre directores de museus, entre comissários. Há uma cumplicidade muito grande, muito maior no sentido Espanha-Portugal do que Portugal-Espanha.
Nós cá praticamente ignoramos a arte espanhola. Se fizermos as contas aos artistas portugueses que expõem regularmente em Espanha e aos artistas espanhóis que expõem em Portugal, nos ganhámos porque KO absoluto, até em termos institucionais. Algum dia, as pessoas vão dizer que algo de errado se passa…
A enorme dificuldade, de facto, é atravessar os Pirinéus, tanto para os portugueses como para os espanhóis. Há carreiras internacionais de artistas portugueses mais ou menos consagrados a crescerem, mas que praticamente não passaram os Pirinéus. Por exemplo, contam-se pelos dedos as exposições que o José Pedro Croft, que tem grandes exposições em galerias e museus internacionais, fez acima dos Pirinéus. Trata-se, no seu caso particular, de um percurso internacional estabelecido essencialmente em Espanha e no Brasil. Porque esse é o salto seguinte e aí é que entramos num universo que não é só atento à qualidade dos artistas e das obras em questão, mas onde entram muitas coisas em jogo, entre elas as agendas próprias que são extremamente xenófobas — isto tem de ser dito com toda a clareza — ou, não sendo xenófobas, entram num registo próximo do politicamente correcto, onde o artista de uma região subdesenvolvida do planeta atrai mais curiosidade do que o caso de regiões como a nossa que, como disse, nem são centrais, nem periféricas.
Há uma questão que, para mim, é relativamente nova e que é muito importante, que tem a ver com a presença continuada de artistas portugueses no estrangeiro. Há uma tradição muito grande de os artistas portugueses fazerem formação durante alguns anos no estrangeiro. Tirando a emigração genérica dos anos 50 e 60, no pós-60 e 70, poucos artistas não foram bolseiros da Fundação Gulbenkian, felizmente, e muitos dos artistas mais conhecidos tiveram oportunidade de ir lá fora. Mas noventa por cento por cento retornava. O que acontece agora é que muita gente vai estudar para o estrangeiro e fica nas cidades, nomeadamente em Berlim que tem dez ou quinze artistas portugueses a viverem lá. Isso torna a sua inscrição no meio muito diferente, porque bipolar entre Lisboa e Berlim, por exemplo. Conseguindo alguma visibilidade nessas cidades de fixação, tendencialmente as suas carreiras têm uma impregnância internacional muito maior, porque já não não se trata exclusivamente de uma a radiação a partir de Portugal. Este dado está a alterar um pouco o panorama.
Na Anamnese, por exemplo, poderá muito facilmente constatar-se o nível quantitativo muito diferente da participação de artistas portugueses em exposições no contexto internacional.


P: Tem feito várias exposições em Espanha e no Brasil. Sente que têm impacto efectivo?

R: Essa é uma questão que pelas razões anteriormente referidas é muito complexa. Barcelona, por exemplo, é uma região com uma especificidade muito grande e onde a questão nacionalista detém um peso suplementar. Aí, as pessoas questionavam muito o motivo por que um comissário português estava a programar quatro exposições, em três anos, de artistas portugueses. Era um assunto discutido na imprensa, pela crítica. Dentro daquele modelo de Santa Mònica, de ter três comissários a fazerem a programação, porque é que um deles, sendo português, apresenta tantos artistas portugueses (embora eu também tenha exposto artistas ingleses, holandeses, austríacos, brasileiros e suíços)? Por esses e outras razões acabei simbolicamente o meu mandato com uma exposição de um catalão, Antoni Abad, que acabou recentemente de ganhar o Prémio Nacional de Artes Plásticas da Catalunha com essa exposição, intitulada Canal Accessible e que pode ser apreciada no site do autor em www.zexe.net/BARCELONA/.
Mas há um enorme respeito pela arte portuguesa em Espanha. Esse é um dado adquirido. Por exemplo, quando expus a Helena Almeida fi-lo num contexto em que ela, de facto, já era uma artista respeitadíssima. Se calhar, mais respeitada em Espanha do que em Portugal. A presença do João Tabarra em Santa Mònica coincidiu com a exposição que era um encontro de duas colecções entre a la Caixa e a Fundação de Serralves. A peça do João Tabarra que estava nessa exposição, Barricades Improvisées, era uma peça muito reproduzida pelos media, com grande impacto; a Filipa César, por seu turno, é uma artista que já tem uma presença continuada em Espanha através de uma galeria em Madrid; e o Francisco Queirós (talvez fosse o menos conhecido), tinha estado em Pontevedra e alguns comissários, como a Maria Corral apreciam bastante o trabalho dele. Se compararmos, os artistas espanhóis têm imensa dificuldade em afirmarem-se internacionalmente e isso tem um peso na maneira como o próprio meio lida com essa situação, exacerbando um pouco as qualidades próprias e tentando dar grande visibilidade aos próprios artistas espanhóis, mas com frutos pouco perceptíveis nesse contexto internacional.
O paradigma máximo foi a última Bienal de Veneza, com duas comissárias espanholas — Espanha tem sido um produtor único de comissários de visibilidade internacional — mas a nível de artistas estavam quatro ou cinco artistas na Bienal. O que prova que, às vezes, não basta só ter um sistema institucional muito estruturado e com bastante dinheiro (porque eles têm muito mais dinheiro para trabalharem a esse nível, em termos institucionais e museológicos, do que nós). São questões que nos devem fazer reflectir sobre a não inferioridade absoluta do nosso meio relativamente a esse contexto ou outros que nos são próximos.
Cada situação tem as suas particularidades. O que é um facto é que quando se é convidado para fazer uma pequena ou média Bienal, como fiz a de Pontevedra, ou para uma exposição de grande dimensão, como “Squatters”, uma co-produção entre Serralves e o Porto 2001, quer se queira quer não, quando se faz uma selecção de artistas, pensa-se de forma mais ou menos consciente sobre que tipo de apoios à partida estarão ou não assegurados. Porque é muito mais fácil trabalhar com artistas ingleses, franceses ou holandeses do que com artistas italianos, espanhóis, gregos ou turcos, pois há países que têm estruturas fortíssimas que praticamente pagam a presença desses artistas nas exposições — pagam os transportes, ou parte do catálogo, e, eventualmente, até a produção da peça em questão. Pode, de facto, tornar-se muito complicado gerir isso, porque quando se trabalha com orçamentos reduzidos se tenta ao máximo ter apoios para essa exposição. Isso acaba por criar algumas distorções, involuntárias, não estritamente curatoriais em termos de critério, mas de cariz económico. São perversões do meio que temos sempre de tentar corrigir.


P: Comissário, crítico, agora político. Como esta a ser a experiência na Câmara Municipal do Porto?

R: Para mim, foi uma surpresa muito grande quando decidiram convidar-me para integrar as listas do Partido Socialista (PS) à Câmara Municipal do Porto, como putativo Vereador da Cultura. Passada a surpresa inicial e tendo ouvindo várias pessoas, o que me pareceu importante reflectir teve a ver com o facto de as pessoas ligadas à Cultura na cidade terem uma apreciação absolutamente negativa do mandato do Rui Rio como Presidente da Câmara e de, numa atitude muito portuguesa, constantemente nos reunirem e baterem com a cabeça na parede perante esse facto. Passaram quatro anos com medidas lamentáveis nessa área e sentiu-se muito pouca oposição; as coisas eram dadas como adquiridas sem grande discussão pública.
Pareceu-me importante tomar uma atitude muito concreta. Para estas áreas são convencionalmente convidadas/nomeadas pessoas que não são do meio. Achei que tinha uma responsabilidade acrescida enquanto cidadão e agente cultural que não podia descartar. Para além de que, embora não conhecesse pessoalmente Francisco Assis, parecia-me ser uma pessoa de uma honestidade inquestionável e com um trajecto na política portuguesa que eu conhecia e do qual me sentia minimamente próximo. Logo, integrei as listas como independente.
Após a derrota eleitoral, por estar no quarto lugar, fui eleito para o cargo de Vereador. Achei que era uma questão de consciência não recusar a actividade de oposição porque, de facto, ia ao encontro da não resignação, de não acharmos que a culpa é sempre dos outros.
Agora, o que é verdade, é que se trata de um universo completamente diferente. Hoje em dia, tenho de me debater com inúmeras questões, não só da esfera cultural, o que não deixa de ser enriquecedor.
O meu papel é, em certa medida, o mais fácil, porque abordo questões que este Executivo assume amiúde de uma forma despudorada que lhe passam ao lado. É uma questão de estar atento aos inúmeros atropelos àquilo que (não) vai sendo feito nesta cidade. Há um efeito quase revanchista ao que foi feito de bom, em termos culturais nesta cidade, desmantelamento de muitas das coisas que aconteceram e um efeito também muito revanchista relativamente ao que foi conseguido pelo Porto em 2001. Porque o grande balanço do Porto 2001, infelizmente, foi completamente toldado pela questão das obras na cidade e pelo atraso na inauguração da Casa da Música (questão obviamente lateral à sua importância estratégica! Daqui a alguns anos já ninguém se lembrará, obviamente, desse atraso e do facto daquela obra ter nascido no âmbito do Porto 2001...). Mas o que as pessoas se esquecem muitas vezes de referir é que, em termos de programação cultural, o orçamento não foi minimamente ultrapassado e houve uma enorme movimentação na cidade de públicos, estudada e confirmada pelo Observatório das Actividades Culturais. Esse património, que era de crescendo, foi completamente delapidado.
No fundo, tento apanhar um pouco o fio à meada para alertar para situações inacreditáveis, como a actual desestruturação da CulturPorto, a inactividade do Rivoli (que se está a transformar numa estrutura única e exclusivamente de acolhimento de eventos quando já teve uma programação forte). É esse o meu papel fundamental e a perspectiva de criação de uma alternativa possível àquilo que é a política — ou a falta de politica — cultural deste Executivo camarário.
Numa entrevista brilhante que passou há pouco tempo na televisão portuguesa, George Steiner, um intelectual um pouco conservador, mas de um nível absolutamente excepcional, contava que um rabi judeu, num campo de concentração, estava a ser muito confrontado pelos seus pares com o facto de os Nazis não terem permitido sequer que levassem a Torá, os livros que plasmam o texto central do judaísmo. O rabi tem uma frase absolutamente deslumbrante, que é a seguinte: “Vocês não se preocupem por não termos aqui a palavra escrita, leiam-me”; tratou-se da exaltação daquele último reduto que é a memória. Mas quem fala na palavra sagrada fala de qualquer outra palavra. Mesmo no momento de maior humilhação humana, esses valores fazem sentirmo-nos um pouco humanos.
Daí que a cultura, aqui em sentido lato, tenha, para mim, essa importância absolutamente vital: porque ainda que despojados de tudo, ninguém nos pode tirar a memória desses momentos em que a humanidade se suplanta a si mesma, em que percebemos que o ser humano é mais do que a sua contingência física. Daí que uma visão do mundo que não complemente políticas de bem-estar material com políticas de transmissão de valores culturais não pode deixar de estar, no longo prazo, votada ao mais perigoso insucesso.


P: Em 2005, no catálogo de Santa Mònica, referiu que o Porto está à altura de muitas cidades europeias, no que diz respeito tanto a trajectória de Serralves como ao núcleo de galerias comerciais e espaços alternativos. Mantém a mesma opinião?

R: Temos de fazer uma distinção muito clara que é muito interessante, entre o universo das artes plásticas, que me é muito próximo, e outros universos culturais. Apesar de tudo, o universo das artes plásticas ficou relativamente imune a este desinvestimento absoluto que houve na política cultural na cidade. Isto porque Serralves é uma instituição blindada, com os seus estatutos de fundação privada comparticipada pelo Estado, tendo um sucesso a nível de público que é incontornável. Além disso, as galerias e as acções mais ou menos alternativas nunca dependeram de qualquer tipo de apoio camarário, antes pelo contrário, foram sempre feitas à revelia desses apoios. Portanto, nesse contexto, a situação não era tão negra.
O meu exercício neste universo de política cultural abrange todas as outras áreas. Enquanto no universo das artes plásticas há este equilíbrio entre a oferta institucional pública e o universo privado, no teatro, por exemplo, isso não funciona. O teatro está, bem ou mal, extremamente dependente da estrutura de apoios públicos. Qualquer perigo ao nível do poder central ou autárquico que se desenhe é catastrófico para muitas das companhias.
O que se passou de mais grave, ao nível das artes plásticas, foi o não aproveitamento das dinâmicas que se criaram em 2001. É absolutamente escandaloso o que se passa com a Galeria Municipal no Porto, uma estrutura criada de raiz com condições absolutamente únicas em termos físicos, que decaiu totalmente em termos de programação. Aqui não se trata unicamente de uma questão orçamental; é uma questão ideológica, onde se tem vindo a dar visibilidade a coisas da mais confrangedora mediocridade.


P: Como encara este fenómeno de deslocação de algumas galerias do Porto para Lisboa?

R: Acho que é claramente um sinal de uma realidade económica indiscutível que é a de o país ser, cada vez mais, centralista. Nestes trinta anos de democracia, não percebo como é que o País está tão dramaticamente centralizado. Isto tem a ver com muitos fenómenos, sendo que destacaria os fenómenos económicos. Quando se anda na rua no Porto (e imagino como será em Portalegre ou Bragança…), sente-se um declínio económico muito grande. Por contraste, em Lisboa não se sente isso, pela enorme presença de empresas com sede em Lisboa que sugaram uma quantidade assustadora de know-how do resto do País.
O campo das artes plásticas aqui no Norte, não consegue gerar uma massa crítica suficiente de coleccionadores entre os 30 e os 40 anos, exactamente porque a classe média alta se está a exaurir. Isso é um fenómeno que naturalmente as galerias sentem.
Quando vou a Lisboa, sinto que as pessoas não têm esta percepção e julgam que nós reagimos por regionalismo bacoco. É um facto tão indesmentível que basta ver os quadros estatísticos que saíram recentemente, onde a região do do Grande Porto em termos de Produto Interno Bruto está ao nível do Alentejo e dos Açores, quando a região de Lisboa e Vale do Tejo está a chegar ao nível das regiões mais ricas da Península Ibérica, que são o País Basco e a Catalunha.
Há um fosso enorme num país tão pequeno. Como cada vez mais, em Portugal, as pessoas estão concentradas não na indústria nem na agricultura, mas nos serviços, a tendência é para que esses serviços se fixem onde mais facilmente se movimentam, que é em Lisboa. Não vejo soluções fáceis para este problema que me preocupa imenso.
Fico contente por ver que em Lisboa se deu um salto qualitativo grande — porque também não fazia sentido aquilo a que assistíamos há uns anos em termos de oferta galerística e institucional — mas assusta-me um pouco o que está por detrás desse indicador. Basta ver a questão que é assustadora para nós, portugueses, e que tem a ver com o custo de vida em Lisboa. Por isso, creio, muitos artistas hoje não vivem em Lisboa, vivem em Berlim, que é mais barato.


P: A distância entre o Porto e Lisboa não se encurtou?

R: À medida que se vai fortalecendo o meio em Lisboa e que algumas galerias do Porto vão fazer esse trajecto para Lisboa, tendencialmente vai-se esvaziando o protagonismo possível do Porto.
Há uma grande dificuldade quando estamos, por exemplo, a organizar eventos, para que uma pessoa venha de Lisboa fazer a cobertura desse acontecimento. Só quem, como eu, trabalhou três anos numa cidade como Famalicão, percebe que essa diferença: esses efeitos são exponenciais à medida que nos vamos afastando dos centros. Não há razão para tal. A razão é muito mais cultural do que funcional porque, de facto, estamos todos muito perto uns dos outros.
Na Holanda, o trânsito entre Amesterdão e Roterdão ou entre Amesterdão e Eindhoven, ou outra cidade, é quase como quem vai da Baixa aos Olivais em Lisboa. É uma questão mental porque eles incorporaram de tal maneira que aquele território é curto, não só física, como conceptualmente. As pessoas vivem numa cidade e trabalham noutra. Conheço inúmeros exemplos de pessoas que vivem em Amesterdão e trabalham em Roterdão.