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PENELOPE CURTIS
Há um ano e meio à frente da colecção Gulbenkian, Penelope Curtis teve a oportunidade de conversar com a Artecapital e fazer um ponto da situação em relação a objectivos e projectos mais imediatos. Interessada em desenvolver a forma como a colecção se apresenta ao público, assim como promover a interseção da arte contemporânea com os objectos históricos, Penelope Curtis apresenta-nos a sua visão pessoal sobre a colecção e estratégias expositivas.
Por Victor Pinto da Fonseca e Liz Vahia
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VPF: A decisão de se constituir um único museu e uma única colecção, "Museu Gulbenkian - Colecção de Arte Moderna", significa que houve um regresso, que eu acho que é um regresso ao passado, mas não é de maneira nenhuma errado, de se usar a colecção de arte moderna de forma permanente. Imagino que foi uma decisão sua?
PC: A questão de se ligarem as duas colecções não foi ideia minha. Eu candidatei-me a um trabalho onde na descrição se fazia referência a que o novo director "iria juntar os dois museus". Era muito claro que a administração queria ver a colecção moderna mais regularmente exposta. Essas duas premissas estavam já estabelecidas, para mim era mais uma questão de como fazer isso, na verdade. E também, porque íamos ter menos verba, pareceu-me que iríamos trabalhar para tentar usar melhor o dinheiro. Portanto, ajuda-nos mostrar mais vezes a colecção e focar o dinheiro que temos no programa de exposições e não tentar continuamente reinventar aquele edifício da arte moderna. É um edifício muito grande e fazer tantas exposições por ano é obviamente muito caro. Usar melhor a colecção ajuda-nos de muitas maneiras.
VPF: Como pensa, no futuro, partilhar a colecção histórica, moderna e contemporânea? Quando digo "partilhar" é no sentido de imaginar que o eixo “Centro de Arte Moderna” poderá receber uma colecção, por exemplo, que tenha a ver com a colecção do fundador. As colecções ou os espaços poderão partilhar-se mais?
PC: Estamos já a misturar espaços. A exposição da Manuela Marques é uma exposição contemporânea. Vamos tentar também usar a galeria principal de um modo mais equilibrado, entre o contemporâneo e o histórico moderno. O melhor espaço expositivo é a galeria principal aqui no edifício sede, por isso gostaria de fazer mais vezes exposições aí, porque o edifício da colecção moderna é tão difícil que é melhor conseguir encontrar um formato em que funcione e deixá-lo assim por uns tempos. Penso que ocasionalmente se pode fazer as colecções funcionarem juntas, mas para mim é mais a questão de que esta é uma colecção fechada e o que a colecção moderna pode fazer por nós é trazer-nos uma maneira de trabalhar. Não acho que sejam necessariamente os trabalhos em si, mas a sua agencialidade ou possibilidade, de dizer que trabalhamos com artistas, que temos uma colecção de arte viva e isso é algo que podemos trazer para a colecção do fundador. Vejo mais isso como um processo.
VPF: Quando pensa nesse processo tem uma ideia temporal? Tem planos para 5 anos?
PC: Não. Em termos de planos concretos de exposições talvez tenha só para 2 anos. E voltando à questão inicial de reunir as duas colecções, parece-me que se vamos dizer ao público que este é um museu unificado temos que oferecer algo equivalente. Se oferecemos a colecção do fundador temos que oferecer também a colecção moderna - estas têm que ter um estatuto semelhante. O meu esforço aqui é dizer que isto é uma tentativa séria de representar a arte do século XX em Portugal. Se for estudante, ou se quiser aprender sobre arte portuguesa, este é um bom sítio por onde se começar. É também uma tentativa séria de representar Gulbenkian e a sua colecção. Tentei dar às duas colecções um estatuto igual, que pareçam ambas igualmente importantes. Penso que planos a longo prazo seriam realmente sentir que actualizámos esta colecção de um modo inteligente e sem destruir o que há de bom nela própria e na forma como está exibida, aumentando a pesquisa, a acessibilidade para estudantes e investigadores, tornando-a viva de muitas formas, incluindo partes da colecção que são fulcrais mas que estão adormecidas, como a colecção islâmica, usando-as realmente de uma forma actual e presente. Isto é uma ambição geral e não tanto uma ambição concreta.
VPF: É conhecida a permanente dificuldade dos museus e centros de arte em Portugal para atingirem um público alvo numeroso! E, não existe uma imprensa especializada em arte moderna e contemporânea - se exceptuarmos a Artecapital -, uma imprensa apaixonada capaz de transmitir diariamente a emoção da arte.
- Pela sua experiência anterior na mítica Tate Britain, saberá o que fazer no Museu Gulbenkian, no sentido de atrair mais público, especialmente um público entusiasmado com a programação... Se bem me recordo, a Tate revolucionou-se no final da década de 1980, com uma imagem mais jovem para um público abrangente e menos conservador...
PC: Em termos de público, a grande diferença agora é que podemos pedir ao público turista que vem a este edifício que visite também o edifício da colecção moderna. Com isto o público na colecção moderna aumentou muito, porque temos agora um único bilhete e isso funciona mesmo. O público turista vinha à colecção do fundador, mas nunca visitava a colecção de arte moderna, não pagavam um segundo bilhete. Apenas uma pequena percentagem visitava as duas colecções.
VPF: Dentro da programação, neste 5 anos de contrato, tem ideia de poder trazer exposições internacionais que sejam importantes para nós?
PC: Sim, mas o que estamos a fazer é trabalhar com espaços mais pequenos. Por exemplo, a próxima exposição da Emily Wardill é uma colaboração com Genebra e Bergen. E a exposição de Marie José Burki é uma colaboração com um centro de arte suíço. Estamos a trabalhar mais com organizações pequenas que estão a desenvolver projectos com artistas contemporâneos. Acho que isso é mais sensato para nós. A intenção é fazer exposições interessantes com artistas internacionais que não são muito conhecidos aqui e misturá-los com artistas portugueses, porque reparei que os artistas portugueses têm uma boa recepção. Isso é muito difícil para um artista estrangeiro, pois não há tradição de ir a um sítio apenas para ver um artista estrangeiro. Por isso torna-se complicado introduzir novos artistas. Temos que tentar construir um público para a instituição, que é um público mais estável e que apoia artistas estrangeiros assim como artistas locais.
VPF: Como é que, com tempo, se cria entusiasmo para os portugueses verem arte internacional?
PC: É construindo um público para determinada instituição, de maneira a que não venham por causa do artista mas pela instituição, porque confiam no espaço. Eu trabalhei no Henri Moore Institute em Leeds durante 17 anos, o que é muito tempo, e fizémos muitas coisas no início de que ninguém tinha ouvido falar. Com o tempo podemos construir um público que pensa "eles fazem coisas interessantes, eu nunca ouvi falar dos artistas, mas vou na mesma porque gosto do programa". Precisamos de trabalhar muito nisso.
LV: Ainda sobre a colecção do fundador, acha que é importante passar uma ideia de afectividade ligada a estes objectos, para que o público perceba que foram reunidos por uma pessoa e não uma instituição? Como é que pretendem passar a imagem do fundador da colecção e a sua relação com os objectos?
PC: Uma coisa estranha que eu reparei quando cheguei é que não havia menção ao homem. É um legado estranho, de certa maneira, porque ele vivia numa casa em Paris onde tudo estava misturado. Depois a colecção veio para Portugal e uma categorização extremamente rigorosa e fixa foi-lhe imposta, transformando-a em "Antiga", "Médio Oriente", "Islâmica", "Europeia", etc. Ele nunca a dividiu dessa forma. Por outro lado, também nunca viu este edifício e todos assumiram desde sempre que ele o odiaria. Portanto, perdemos a forma como ele usava a colecção e perdemos a noção de coleccionador, duma maneira que poderíamos dizer "libertadora", porque nas casas-museus geralmente tudo é absolutamente rígido, porque era onde as coisas estavam originalmente (no quarto, na casa de banho, onde quer que seja...). Aqui não há nada "do quarto dele", no entanto, tornou-se igualmente muito fixo por outra razão. A disposição museológica de 1969 era altamente apreciada e nunca ninguém a quis mudar. Houve uma tentativa em 2000 que foi muito controversa e muitos quiseram que voltasse ao formato de 1969. É um desafio interessante, porque puxa para os dois lados, o ser mais pessoal ou mais impessoal. Por isso, desde que eu cheguei, inserimos pelo menos uma introdução ao homem no hall para se ver quem ele era, como conseguiu o seu dinheiro, mostrando que era ao mesmo tempo uma figura pública mas também muito privada. O próximo passo é rever a rigidez da colecção institucional. Já fizémos algumas coisas, como no ano passado os Convidados de Verão, em que pusémos 14 artistas no museu. Foi um bom primeiro passo, mas é sempre um passo temporário. O que é mais desafiante é refazer, tal como já fizémos, a galeria do século XIX e parte da do século XVIII. Um dos objectivos do programa de exposições temporárias é dar-nos a possibilidade de fazer re-arranjos temporários. A exposição temporária da Manuela Marques, “Versailles”, é uma oportunidade de repensar algum do material do século XVIII e também trazer algumas coisas das reservas, nomeadamente os livros que nunca estão expostos. Gradualmente encorajamos as pessoas, tanto o staff aqui como a administração e o público, de que podemos mudar coisas e que podem confiar em nós, que não vai correr mal e que podemos manter as coisas que são bonitas e ao mesmo tempo trazer novas formas de pensar à colecção. Temos um pequeno projecto agora no museu acerca do Noruz, o ano novo persa, só para mostrar que muito do material islâmico era usado em celebrações específicas em momentos específicos. Temos estado a trabalhar com estudantes e também com refugiados iranianos para introduzir isso ao público, para mostrar que a colecção tem coisas que pertenciam a pessoas reais de culturas reais, não são esteticizadas.
VPF: Falando de Lisboa, já cá está há um ano e meio. Esta sua experiência de Lisboa e a vida a sul, está a ser boa? Superou as expectativas?
PC: Tento não generalizar sobre nacionalidades. É muito fácil fazê-lo, mas é uma coisa muito má. Somos todos diferentes. Não acho Lisboa especialmente "sulista", não a acho assim tão diferente e foi muito fácil aprender a viver aqui. Gosto da escala. Acho o trânsito confuso, porque param sempre na passadeira mas nunca param no sinal vermelho. Não sei como comportar-me! Há muitos pequenos prazeres em Lisboa, é muito agradável.
VPF: O que pensa da arte portuguesa do século XX, agora que está mais bem informada?
PC: Ainda continuo a ser uma iniciante. Para mim a questão é que quando chegamos a algum lado pela primeira vez temos um momento de objectividade e isso é muito valioso. Mas não passar daí e ser apenas ignorante não é muito bom. Eu acho que estou num momento perigoso em que se perde a objectividade mas ainda não se sabe muito do assunto. Por isso temos que trabalhar duramente para subir esta colina outra vez, para aprender outra vez. O quão rápido se consegue fazer isso? Lembro-me de quando tinha 26 anos em Londres e não sabia nada. Pode-se aprender muito se trabalharmos rápido para isso. Podemos aprender mais rapidamente sobre arte contemporânea do que arte histórica, e suponho que muita da arte histórica esteja nas paredes das pessoas, em casas particulares. Faz parte dessa tradição enraizada. Muitas das pessoas que agora vêm ver a exposição do Almada podem ter um Almada nas suas paredes. Faz parte daquilo com que os portugueses cresceram, mas não eu. Relativamente falando, sinto que consigo aprender sobre arte contemporânea bastante rápido, mas sobre a arte do século XX que não está nos museus é mais difícil. Tem mesmo que se falar com as pessoas e tentar entender. Para mim tentar entender o que o Almada significa para os portugueses é um verdadeiro desafio, porque ninguém me consegue explicar porque é que ele é tão popular! Tenho tentado encontrar um equivalente noutra cultura, por exemplo, Jean Cocteau. Pensei "se calhar é uma figura do género do Jean Cocteau", alguém que não é um artista excelente, mas tem uma boa mão, é um bom desenhador e uma figura cultural que trabalha em áreas diferentes... Mas acho que vai ser sempre um mistério para mim!
VPF: A Gulbenkian precisa de estar muito atenta à arte contemporânea. Os artistas têm sempre uma esperança muito grande em que a Gulbenkian lhes dê qualquer coisa, quer sejam bolsas ou espaço para participar numa colectiva. Pensam produzir alguma exposição grande, de dois em dois anos, por exemplo, dirigida a artistas contemporâneos portugueses?
PC: A razão para criar este espaço chamado "Projecto Space" foi para deliberadamente convidar jovens artistas e ser-se mais espontâneo, correr mais riscos. Queríamos fazer uma combinação de artistas portugueses e estrangeiros nesse espaço e fazê-lo de forma bastante rotativa, ter ali 4 projectos por ano. Tamas Kaszás, por exemplo, é um deles. É um jovem artista não muito conhecido, mas é bom dar-lhe a oportunidade de fazer o que ele quer fazer. Haverá outros, também portugueses.
Eu sou sempre cautelosa em estabelecer coisas que têm que se fazer a cada dois ou três anos. Estou mais interessada em coisas que surgem mais espontaneamente, que surgem como uma boa ideia nesse momento. Há também outras coisas mais importantes agora, como desenvolver a colecção, comprando jovens artistas, dando a jovens artistas projectos individuais, mas também colocar jovens artistas a trabalhar aqui com a colecção do fundador. O que nos torna diferentes dos outros museus, em Portugal e noutros sítios, é que temos esta conjuntura fabulosa, e dar a artistas a oportunidade de trabalhar com o que temos na colecção do fundador não é normal. Há imensas exposições colectivas de jovens artistas em Lisboa e onde quer que seja, isso não é invulgar. Mas o que podemos fazer aqui com a colecção isso é que não é comum. E tentar que isso toque a vida das pessoas, e diferentes tipos de pessoas, no fim dá-nos algo que é mesmo diferente. Tentamos fazer coisas que são vivas e diversas e falam aos artistas e outras pessoas. Acho que estou mais interessada em instâncias mais ecléticas, bienais não me parecem tão interessantes. Não é a minha ambição.
A chave, para mim, é não ter uma fórmula, mas deixar em aberto e encontrar essas ligações que surgem naturalmente.