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SUZY BILA
29/04/2022
A pintura de Suzy Bila é um exortar à sobre-vivência. Diante do seu labor artístico, é impossível não sentir o movimento das asas da sua fénix. A Suzy é, no entanto, fundamentalmente uma mulher da Terra; o movimento das suas asas é a metamorfose do seu Possível em casas – Abrigo para os seus filhos do coração; um coração enorme como a sua pintura, porque dotado de um pulsar ético. Isso mesmo que escapa a quaisquer categorias estéticas; dir-se-ia antes, isso mesmo que as sobre-voa. Suzy está, por isso mesmo, à altura dos que tão generosamente acolhe, empreendendo os seus direitos, através da libertação que é a arte; curando feridas, ressignificando narrativas. Do alto, o passado, o presente e o futuro são simultâneos.
E só se pode estar à altura, e voar tão alto, quando se aprendeu a sentir as dores da Terra – missão tão terrível, quanto luminosa; de uma grandeza não mensurável. Só se pode estar à altura, como tão claramente nos dá a ver com o seu percurso nesta entrevista, quando se tem por principal tarefa conhecer-se a si próprio.
Por Madalena Folgado e Victor Pinto da Fonseca
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MF: Comecemos por fazer uma incursão ao passado, quando ainda eras uma adolescente, em Moçambique. Fala-nos um pouco sobre um encontro muito especial com um pintor, levado a cabo pela curiosidade da jovem Suzy, e sobre o modo como a experiência da pintura se estendeu no teu quotidiano de então.
SB: Em 1993, conheci Noel Langa, artista moçambicano que me permitiu a exploração de aguarelas no seu ateliê. Via-o a pintar e achava aquilo fantástico mas não o conhecia o suficiente para o abordar e nem tinha a capacidade para tal ousadia, era uma adolescente. Fui então ter com ele um dia com uma amiga, e achei piada ao Noel porque ele disse que já me havia visto antes, a espreitá-lo. Convidou-me a entrar. Juntei-me a outros jovens que pintavam, e fizemos um grupo espetacular. Mas vivia um dilema, os materiais permaneciam no ateliê o meu entusiasmo pela exploração não terminava naquele espaço e eu queria continuar em minha casa na ausência das tintas usava temperos de cozinha para criar as minhas peças. Nunca exigi muito à vida, tentei sempre exigir de mim, sou uma constante descoberta de mim. Em finais de 1996 desloquei-me a Portugal, a relação que tive com a cozinha acabou por se prolongar no tempo. Quando cheguei a Lisboa, transformei as minhas cozinhas em atelier. Lugar no qual gradualmente fui dando continuidade ao meu processo criativo. Olhando para trás vejo uma relação simbiótica entre o nutrir a alma e o acabar com a fome.
MF: Eis que te encontras com...
SB: Em 1998 realizei a minha primeira exposição individual Segunda vida na Galeria Municipal da Costa da Caparica. Nesse mesmo ano integrei o Centro de Arte e Comunicação Visual-Lisboa (Ar.co) apoiada pela Olga Lima e Herberto Helder.
“Numa perspectiva global, a pintura da Suzy não abdica da natureza impulsiva do seu expressionismo vigoroso. Faz-nos pensar no carácter escultórico desta pintura. A tactilidade da matéria áspera e as superfícies lisas de volumes arredondados e sensuais é uma característica da arte africana, tradicionalmente ligada à escultura biomórfica e ao culto do objecto mágico e/ou utilitário, por vezes, realçado com cores vivas, concebido para fins ritualistas ou para ser inserido no uso quotidiano. Tanto quanto me apercebo, a realidade africana, sendo excessivamente próxima e contagiante, não deixa de exercer um terrível fascínio. A arte neo-expressionista de Suzy Bila reflecte também essa condição mágica.”
Este texto constou no catálogo da minha segunda exposição individual Espelhos e véus, patente de 30 Junho à 31 de Julho de 1999, no Espaço Fala Só em Lisboa. Em 1999, recebi o convite da Câmara Municipal da Amadora para realizar a minha exposição individual na Galeria Municipal. As peças que preparei para esta exposição foram construídas em fase de grande inserteza, gerando um traço impulsivo de uma iquietude, de algo sobrio. Apresentei o projecto, ao João Queiroz que escreveu o texto “Um Movimento Inverso” que constou no catálogo da exposição O(s) sentido (s) do Corpo. Tornada possível de 9 Junho a 9 Julho de 2000 no Espaço Delfim Guimarães.
MF: Fala-nos um pouco do modo lidaste com a validação exterior; a do(s) mercado(s) da arte, aspeto tão sensível a toda a criação, quanto digna desse nome. Como é que te foi possível, diante das vicissitudes inerentes aos começos e recomeços – penso por exemplo nesses teus primeiros tempos de fixação em Portugal –, não permitir que o teu mundo interior fosse corrompido, i.e., que forças convocaste de modo a não sucumbir à tentação de ‘encaixar’ para sobreviver?
SB: O meu percurso é feito de processos marcados por datas, velocidades e matérias diferentes. De constantes reajustamentos de dinâmicas que envolvem a minha condição social como mãe, mulher, artista, educadora. Quando cheguei a Portugal vinha de uma intensidade de envolvência em exposições, workshop, bienal e com um prémio. Aqui senti-me isolada e vivia numa grande nostalgia por aquilo que tinha deixado para trás.
MF: Como empreendes essa dimensão ética que indiretamente referes, ou em que sentido intuis que devemos coletivamente caminhar, no sentido de através da mesma empodeirar os mais jovens, por uma verdadeira autoestima, em particular, aqueles com os quais tens vindo a trabalhar? Fala-nos a partir dessa tua experiência rica, que tem vindo a entrelaçar pedagogia e arte.
SB: Considero-me artista, educadora e investigadora. A minha investigação surge na sequência dos resultados de um estudo realizado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no âmbito da reestruturação do departamento da Ação Social em 2019, que colocou em evidência a vulnerabilidade social como denominador comum nas famílias acompanhadas pelas Equipes de Apoio à família na Grande Lisboa, tornando também visível a carência de condições que lhes permitam assegurar todas as necessidades das crianças e jovens. Neste âmbito procuramos construir um campo transdisciplinar emergente na intervenção social, onde educadores artísticos possam redefinir a sua prática na intervenção social. investigando as dinâmicas e todas as condições em que ocorre o processo criativo, com o objetivo de sugerir uma nova estrutura conceptual na qual a nossa investigação possa prosseguir, elucidando a ideia de que as artes devem estar no centro de todos os ambientes educativos.
Embora haja diferentes olhares e pensamentos filosóficos que suportam as pesquisas em educação artística, a minha investigação procura invocar maneiras artísticas de conhecer e estar no mundo através da pesquisa baseada em artes, que envolvem crianças e jovens em processos de descoberta e invenção, fazendo uso de experiências para refletir sobre suas performances, e preservar, criar e reescrever suas histórias. .
VPF: És artista, no entanto tens uma prática diversificada que é tanto artística quanto literária e académica: Escreveste recentemente um livro crítico sobre a exploração infantil e tens um sentido de comunidade visível no âmbito da Educação Artística, colaborando com a Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI), e com o Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), com intervenção em contextos onde a negligência social persiste, e ao que sei, encontras-te a desenvolver um projecto de doutoramento numa Unidade de Intervenção Familiar da SCML - Santa Casa da Misericórdia de LISBOA. Foste também recentemente selecionada para representar Moçambique na Feira do Dubai, juntamente com a Reinata Sadimba. A variedade das tuas qualidades é espantosa e diferenciam o teu trabalho de muitos dos artistas contemporâneos. Quais são as tuas referências na arte de um modo geral ou no pensamento… que artistas te influenciam e inspiram?
SB: Tenho tendência a trabalhar diferentes processos em simultâneo e tenho procurado viver a vida dentro de uma plenitude possível, aceitando as interferências externas como forma de aprendizagem que me levam a descobrir, e inventar novas possibilidades de desdobramento na descoberta do novo. O meu processo criativo é vital, é a minha sobrevivência.
Lamura surge numa altura em que trabalhava sobre a temática da Mulher. Depois de uma recolha feita em Moçambique sobre a problemática da Mulher, procurei explorar outros lugares, quanto mais pesquisava sobre a mulher, mais se entrelaçaram os laços com a maternidade.
Quanto à EXPO 2020, não fui selecionada, fui convidada. No decorrer da minha exposição nua e crua no Centro Brasil Moçambique, tive o privilégio de receber o Alto comissariado da Expo Dubai, que me fez este convite. No decorrer dos dois anos o pelouro da organização do evento entrou em contacto comigo para me dar a conhecer as condições da entrega das peças para a exposição, não sabendo nunca ao certo as pessoas convidadas para o evento. Embora na conversa com Alto Comissariado tenha demonstrado o grande interesse em levar as artistas mulheres de Moçambique, as exigências da própria exposição falaram mais alto, prevalecendo as novas tecnologias.
O grande objetivo da Expo 2020 em Moçambique foi dar a conhecer as potencialidades do país e atrair investimentos para os sectores do turismo, energia, infraestruturas, entre outros. A nossa performance no Dubai pretendeu realçar que a arte é transversal a todas as áreas aqui destacadas. Pretendíamos também realçar que intervir na educação e na arte é desafiar as potencialidades das crianças para o ato criativo e para a descoberta de si. Nesta experiência feita no pavilhão de Moçambique, foi gratificante observar toda a dinâmica sem regras, mas a arte como um ato natural, condicionado pela especificidade do lugar e influenciando o meu processo de construção da obra.
Dennis Atkinson refere que a arte permite-nos encontrar o espaço de desobediência que abre novas formas de pensar e agir, sendo no diálogo entre os desafios e as expectativas que o processo criativo surge, com a sua velocidade carregada de matérias diferentes, interligando a arte com a educação e realçando o papel do artista como agente de mudança social.
VPF: Moçambique tem uma história de mulheres pioneiras nas artes visuais do século XX em Africa. No entanto ser artista mulher e negra, mantém-se um ato de perseverança, resiliência, estoicismo e aceitação em certa medida, em relação aos hábitos mentais e de linguagem que imperam no sistema artístico estabelecido, que mantém escrupulosamente a divisão entre talento negro e talento branco. Como é que tens enfrentado os obstáculos de ser artista dentro da diáspora africana em Portugal, que tenho observado, é persistentemente ignorada e incompreendida?
SB: A paisagem ontológica do pensamento ocidental, que fundamenta as práticas artísticas das antigas colónias portuguesas, realça cicatrizes que modestamente moram na pele de cada um, desafiando-nos a percorrer caminhos de procura da “cura” de identidade.
Numa relação de singularidades com os problemas que envolvem a mulher e a criança. Iniciei um projecto que deu lugar a exposição nua e crua carregada de simbolismo de um mundo em mudança, onde retratei o drama da violência, a solidão de quantas mulheres no mundo reduzidas ao anonimato que vivem em luta pela sua própria identidade. Pretendo dar continuidade a este projeto, refletindo sobre as dificuldades que a mulher continua a sofrer nas sociedades contemporâneas.