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CATARINA LEITÃO
29/12/2023
Artificando ou artificializando a Natureza? Viagens e ilusões nas povoações criadas por Catarina Leitão
Por Inês Ferreira-Norman
‘(...) a estranha insistiu em oferecer-me uma caixa que continha uma flor bizarra. Explicou-me então que a planta que produzia aquela flor era uma Dúvida, único exemplar conhecido de uma raríssima espécie, talvez irremediavelmente extinta.’ [1]
Estas palavras estão contidas no primeiro parágrafo do livro Systema Naturæ (2012), por Catarina Leitão e José Roseira, e para mim são um mote para o trabalho de Catarina. Há mais motes, que tentativamente farei virem à tona. Este livro, com Catarina nos desenhos e José nas palavras, deambula entre vários imaginários: naturais, artificiais, familiares, fictícios, linguísticos, visuais e em certos pontos até policiais. A palavra e a imagem são das maiores âncoras do que é o trabalho editorial, e Catarina Leitão ancorou a sua prática em princípios editoriais desde o seu início. Isso vê-se muito claramente não só na sua prática artística, como também muito evidentemente na sua prática arquivista. Visitei o seu ateliê perto das Caldas da Rainha onde atualmente leciona entre outras, Desenho, e Arte e Pensamento Ambiental na ESAD, e disse-me então que é também desde 2001 que vem trabalhando a natureza e falando do colapso ambiental.
Ainda em Nova Iorque, onde viveu entre 1994 e 2010, Catarina desenvolveu projetos onde a bi- e a tridimensionalidade dialogam entre si, quer fosse em formato livro ou em instalações e esculturas. No tempo da sua residência no Centre for the Book Arts em 2007, elaborou uma série de livros pop-up intitulada Uplift onde uma atmosfera de colapso ambiental é percetível. Situações a preto e branco onde o papel é simultaneamente suporte e cenografia tridimensional, carros são emaranhados por troncos de árvores e a vista de quem maneja o livro é obstruída por ramos. Este tom sóbrio do preto e branco faz-me sentir que estou a presenciar um documentário sobre algo que já se passou, no entanto, a complexidade dos elementos pop, trazem uma leveza desconcertante às cenas. Noutro plano do livro - que não é plano – um pouco de cor, nomeadamente uma floresta, vislumbra-se; mas somente através de binoculares, como se de janelas se tratassem; e porque janelas existem em paredes, um obstáculo ao seu acesso se anuncia.
Uplift. © Inês Ferreira-Norman
Por outro lado, o seu trabalho escultórico também integra elementos gráficos, quer sejam desenhos ou planos cromáticos, como é o caso das tendas que elaborou intituladas Artificial Retreat Devices em 2001: ‘é uma instalação constituída por uma série de tendas portáteis, utilizadas para tranquilizar o desejo de escapar ao meio urbano. (...) Assim que se entre neles, proporcionam um espaço de refúgio (retiro, isolamento). O ambiente cromático e sonoro de cada tenda evoca diferentes associações com a natureza, permitindo que o espectador se sinta noutro lugar.’ [2]
Este ‘noutro lugar’, ou mais precisamente, o que há noutro lugar, sente-se em alguns dos seus trabalhos como o objeto de desejo. Para mim, há um motivo subconsciente, ou até inconsciente, no trabalho de Leitão que é a noção de povoamento enquanto ato recíproco entre natureza e o que consideramos antropogénico. Enquanto falava com ela sobre o trabalho escultórico da exposição Naturafatura que esteve patente este ano na galeria Carlos Carvalho com curadoria de João Silvério, disse-me despercebidamente que as esculturas ‘povoavam a galeria’. Ainda que não considere estas esculturas animadas, já o seu trabalho Systema Naturæ é implicitamente vivo: um cardápio de espécies inspiradas pela taxonomia botânica, completamente desarranjadas na sua constituição material e formal devido à sua génese artificial, geram dúvidas relativamente a onde estas se encontram, a que sítios povoam. É dentro de aventuras botânicas como as que este livro algo surreal nos apresenta, que imagino sempre a cientista(-artista) de lupa em punho na realização de trabalhos de campo repletos de recolhas, catalogações e arquivos multicores. Esse é um momento em que o humano povoa o selvagem temporariamente, como se uma fronteira ultrapassasse. Em 2013, Catarina fabricou um Atelier Portátil onde todos os objetos necessários para a sua prática de desenho podem ser levados para o ar livre. No entanto, este sítio torna-se numa ilusão, pois o sítio onde esta instalação foi realizada é um território agrícola e não selvagem. Que sítios selvagens ainda podemos encontrar? Como é que eles se parecem? Como se distinguem de espaços naturais povoados pela nossa história? Equipada com a sua parafernália técnica, Leitão descreve: ‘A bata/vestido funciona ela própria como contentor/atelier com bolsos especificamente desenhados para alojar objetos e materiais.’ [3] Até nas suas batas, moram povos técnico-artísticos!
Também o trabalho Artificial Retreat Devices é, na minha perspetiva, um trabalho de repovoamento recíproco: um local onde um conjunto de habitações, ainda que temporárias e inerentemente nómadas, são elas próprias habitadas por sons e elementos gráficos e plásticos, que dão universo a um povo, um povo que sob a pressão do cimento de uma selva urbana necessita de alívio natural.
O que é o povoado? Desta vez, não fui ver definições ao dicionário como é meu hábito. Para mim, um povoado é um grupo de seres, entidades e seus anexos, que se juntam para formarem áreas que são definidas por coisas em comum, elencadamente a sua situação geográfica, mas que por consequência desta acabam por formar uma cultura específica, por norma, dependente das suas condições eco regionais. Distingue-se de comunidade por esta não ter de ser geo-vinculada.
A mim parece-me que Catarina elabora povoamentos híbridos entre entidades naturais e seres artificiais, criando uma cultura que nos teleporta para ou sítios domésticos, frequentemente urbanos, ou imaginários selvagens, tão selvagens que acabam por se tornar alienígenas. Sinto que há uma luta entre aquilo que é o espaço natural colonizado, e aquilo – inclusive humanos – que é nómada, transportável, um produto que pode ser facilmente artificado. Na realidade, nós não podemos andar por aí a transportar árvores como se fossem nossas companheiras, amigas, de viagem. Mas o trabalho de Leitão permite mesmo isso.
A primeira vez que eu vi o trabalho escultórico da Catarina ao vivo e a cores foi recentemente na exposição de grupo A Casa era a Rua, na mesma galeria onde ainda esteve patente três das suas esculturas Naturafatura N, Naturafatura B e Naturafatura F até 30 de Dezembro. Estas esculturas e seus vocabulários, derivam de trabalhos como o ARD onde o camuflado se tornou um motivo que subvertido ao longo dos anos, se volta a transformar no vocabulário vegetal que emula, e de outros, como por exemplo os Dendrogramas (2016) onde a prática do desenho expandido se evidencia. Catarina explica-me por exemplo como é que usar materiais de práticas agrícolas como um fio tubular de plástico que serve para atar árvores, a permite desenhar enquanto monta as esculturas. Este viajar constante entre 2D e 3D continua em muitas multitudes, assim como no Dendrograma Tree-Kit (mini-version) (2015) onde inspirada pelos mecanismos das tendas, das peças que se juntam, utiliza o manual de instruções à lá livro de artista, como parte integrante da peça. E assim se pode montar uma ‘árvore de companhia’ para qualquer sítio que queiramos ir.
Ainda sobre as esculturas ‘Naturafaura N’, ‘Naturafatura B’ e ‘Naturafatura F’ disse-me:
‘Pensei em criar uma grelha: os desenhos têm um suporte que é a folha de papel, e eu criei uma base, que seriam estas estruturas de madeiras e assim combiná-las em situações que parecem mais uma espécie de biombo (...) [mas assim] posso desenhar quando estou a montar a exposição, as peças são pouco fixas.’ [4]
Fascina-me no trabalho de Catarina, como é que uma dança tão fluída produz resultados tão limpos e precisos. Quer-me parecer que há algo que remonta à ideia de isolamento, de retiro, que vem desde os ARD que se cristalizou enquanto metodologia e nunca mais abandonou a prática, tornando-se a sua companheira de viagem. Essa qualidade está presente em todos os seus desenhos, até pela técnica de aguarela que exibe, a par do que a ilustração científica apresenta.
Também na série Orografias exposta em Naturafatura, isola esquemas paisagísticos baseados no grafismo da estratigrafia, orografia, topografia, pedologia e geologia, e os seus elementos, assim como a introdução de elementos 3D, ainda que mais subtilmente. ‘Nestes desenhos estratigráficos, eu uso os cortes e os vincos, estou a trazer o desenho para o campo tridimensional de uma forma muito ligeira, ao introduzir a grossura do papel. Depois comecei a fazer estudos com embutidos, se isto encaixar bem fica muito interessante, é uma colagem, mas fica tudo à mesma superfície.’ [5] Esta relação, ‘da mesma superfície’ entre o desenho e a escultura é vistosa e estridente na sua exposição Paisagem Instável de 2017, na Carlos Carvalho. Michael Auping descreve em A Nomad among Builders que ‘há algo venerável acerca do nómada, movendo-se pela superfície do planeta sem necessidade de tomar possessão dele’. [6] Há uma certa leveza e sucinticidade presente no trabalho de Catarina que me transporta para uma dimensão onde através dos materiais ilusórios que escolhe, nos relembra que a atividade humana neste planeta é real, mas não precisa de ser barroca e decadente.
Em Naturafatura interessa-me como é que os desenhos se relacionam com as esculturas. Pergunto-lhe isso e também se lhe interessa a integração do elemento artificial na paisagem, sendo que eu própria já trabalhei a questão dos plastiglomeratos.
‘Talvez dar outro ângulo, outra leitura às esculturas. As esculturas estão no universo das plantas, e os desenhos no universo da geologia, do solo, portanto também fazem a ponte para o habitat. Nas esculturas, há um material que já é artificial, e depois há a madeira que é artificializada, portanto eu não estou a tentar mostrar a madeira, estou a esconder a madeira, e depois parece plástico.’ [7]
A questão do habitat emerge aqui como elo de ligação, neste caso entre o desenho e a escultura. O habitat evidência mais uma vez a questão do povoamento: neste caso as esculturas povoam desenhos; no caso de ARD, desenhos povoam esculturas. A meu ver, este povoar está entrosado quer no conteúdo, na forma, nos materiais, nas ferramentas, nos géneros artísticos, nos media de escolha, e por isso, subconscientemente (decido agora, pois reparo que é a própria que me deu pistas linguísticas para tal) o seu trabalho traz-nos uma reflexão sobre o sítio, o local, e como é que a sua ocupação proporciona possibilidades criativas ou destrutivas.
No trabalho de Catarina Leitão presenciamos binómios familiares e alienígenas, e entre tais tensões, o trabalho propõe em grande parte a dúvida: quais são os materiais? Que espécie são? Em que sítios estamos? Para mim, a maior dúvida prende-se com o como conseguiremos continuar a existir na natureza sem a colonizar. Toda a colonização tem a sua performatividade, e esta relaciona-se intimamente com a forma com que cada colonizador quer viver a sua vida. O montar a tenda, o estar dentro da tenda, os dendrogramas, os livros de instruções, as inspirações provindas de catálogos, a tridimensionalidade do desenhar, mostram que o trabalho de Catarina Leitão tem uma dimensão performativa subtil. Estas formas de estar artísticas, delicadas, revelam o espírito nómada que pisa levemente que Auping menciona, e que no Atelier Portátil é mais visivelmente pessoal: eu estou aqui para observar, ser, estar, artificar. Eu estou aqui.
Dúvida foi o motivo que em Systema Naturæ, José Roseira encontrou para descodificar narrativas pessoais (penso que também fictícias) universais a todos nós: o problema geracional que é o habitat familiar onde crescemos. É frequentemente um ambiente ambíguo, entre a segurança e a dissidência, onde aprendemos muitos dos comportamentos colonizadores que carregamos connosco para o resto da vida, e que de momento, por vivermos de facto em paisagens instáveis, há necessidade de questionar. Duvidar. Até mesmo irremediavelmente extinguir.
Para mim, pensar o trabalho de Catarina Leitão, observar as suas metodologias, desencadeou em mim uma dúvida nova: será que a sua arte é um processo criativo, do ato de criar, ou um processo de artificação, do ato de transformar algo em arte? Pergunto-me isso, até de forma autorreflexiva, pois durante este texto, proferi tal neologismo muito intuitivamente. Sendo a arte um processo antropogénico, tendo a arte de Leitão uma metodologia focada na artificialização do natural, de natureza conglomerante, hibridizante, sendo que elevar a criação de um objeto a arte implica a sua artificação, qual é a relação e a distinção entre a criação do artificial e a artificação no contexto de práticas artistas focadas na natureza?
Inês Ferreira-Norman
Mestre em Artes Plásticas pela University of the Arts London, foi editora chefe do Journal of Arts Writing by Students publicado pela Intellect entre 2019 e 2023, e tem-se formado e envolvido em projetos editoriais desde 2009. Foi produtora cultural e gerente de artistas no Reino Unido até 2018, quando voltou para Portugal para se dedicar à sua prática e ao pensamento artístico.
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Notas
[1] Leitão, Catarina, Roseira, José (2012), Systema Naturæ, Orbius Tertius Edições
[2] https://catarinaleitao.net
[3] https://catarinaleitao.net
[4] Entrevista pessoal a Catarina Leitão, 22 de Novembro 2023
[5] Entrevista pessoal a Catarina Leitão, 22 de Novembro 2023
[6] Auping, Michael in Kastner, Jeffrey (ed) (2012), Nature, Documents of Contemporary Art, Whitechapel Gallery, MIT Press
[7] Entrevista pessoal a Catarina Leitão, 22 de Novembro 2023