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JOSÉ MAIA
O pensamento é um acto individual, a acção é um acto social. Fernando Pessoa escreveu esta frase no Livro do Desassossego. Escritor de heterónimos, também Manuel dos Santos Maia decidiu desde o início da sua actividade de artista plástico assinar em nome próprio e como José Maia enquanto comissário e agitador cultural. Esta entrevista vai focar esta última valência, complementar da primeira, e que se revelou determinante durante a última década para accionar as energias criativas da cidade do Porto. Desde 1997 organiza projectos e não mais parou. A ele se deve o desencadear de uma dinâmica geracional que projectou a partir do Porto o mais importante grupo de artistas do inicio deste século em Portugal. Contra os velhos consensos, coçados como os costumes desgastados de uma cidade culturalmente perdida na engrenagem política, ele soube criar o espaço para uma nova atitude, para uma geração que manifesta uma verdade que outros têm por mentira. Esta é uma entrevista entre dois amigos, profissionais do mesmo ofício, que já partilharam muitos projectos em comum. Uma cumplicidade construída nas prolongadas discussões e acções que vão marcando o nosso trabalho.
Porto, Março de 2009
Por Paulo Mendes
P: A meio da década de 90 existiu um grupo de estudantes na Faculdade de Belas Artes do Porto (FBAUP) que iniciou o projecto inter+disciplinar+idades. Como aconteceu a reunião desse grupo de pessoas? Existiam já laços anteriores entre elas? De que forma essa relação de cumplicidade aconteceu e se foi consolidando a partir de interesses comuns que se foram revelando durante o percurso académico?
R: Entre 1995 e 1996 conheci a Liliana Coutinho, fora da FBAUP, em casa de alguns amigos comuns que reuniam criadores de várias áreas artísticas em encontros informais. Nesse encontro pudemos constatar que todos estavam descontentes com o panorama cultural da cidade e de alguma forma todos estavam interessados em alterar a situação. Ambos acompanhávamos o que ia acontecendo no campo das artes plásticas, no campo da música, dança, teatro, cinema, entre outras áreas. Estudávamos artes plásticas na FBAUP e, desde o primeiro ano, constatámos que a Faculdade se encontrava distanciada da realidade artística contemporânea nacional e internacional e que directa e indirectamente promovia o desconhecimento relativamente ao pensamento, às criações e acções dos vários intervenientes que constituem o sistema artístico. No segundo ano da Faculdade projectámos um ciclo de conferências com artistas, críticos de arte, historiadores e curadores, activos nos anos 90. Organizámos uma mostra de performance, exposições de artes plásticas no Porto e em várias cidades do país, um ciclo de cinema, concertos e uma feira do livro. Um conjunto de actividades que designámos por inter+disciplinar+idades. Durante essa fase de concepção do inter+disciplinar+idades, entre 1997 e 1998, e com alguns amigos do mesmo ano e do ano anterior que, como nós, estavam descontentes e também sentiam a necessidade de viver, experimentar e conhecer algo mais que os conteúdos das aulas, durante os cinco anos de licenciatura, realizámos um evento/mostra multidisciplinar, designada em+ventos. Entre a fase de concepção e realização do projecto inter+disciplinar+idades e até 2001, conheci e trabalhei com muitos colegas estudantes, como o João Sousa Cardoso, Eduardo Matos, Nuno Ramalho, Susana Chiocca, Jonathan Saldanha, Mafalda Santos, André Sousa, Maria Mire, Miguel Carneiro, Miguel Cardoso, João Vladimiro, Marco Mendes, Arlindo Silva, Cristina Regadas, Carla Filipe, Sílvia Castro, André Azevedo, entre outros que integraram ou simplesmente colaboravam nas várias actividades realizadas e nos múltiplos eventos apresentados.
P: Depois das primeiras iniciativas que aconteceram e que se materializaram em alguns exposições colectivas, no Porto e noutras cidades, como se vai desenrolando a relação interna entre esse grupo de pessoas, que sinergias acontecem e como vais assumindo o teu papel de principal responsável por essas dinâmicas de grupo?
R: Pelo facto de no inter+disciplinar+idades pretendermos conceber, organizar e produzir exposições colectivas de alunos da FBAUP em diferentes espaços na cidade e em diversas localidades do país, como em Braga, Coimbra, Faro, Tavira, Elvas, entre outras, naturalmente fomos tentando acompanhar o que os artistas, ainda estudantes, criavam dentro e fora das Belas Artes. Mas, também, o facto de nos encontrarmos quase regularmente ou trabalharmos num mesmo projecto durante um determinado período, permitiu que nos interessássemos e acompanhássemos o trabalho que cada um ia desenvolvendo. A necessidade de partilhar com os amigos o trabalho realizado e ou em processo e o facto de muitos dos trabalhos necessitarem de um espaço físico para serem concretizados como por exemplo as instalações em que o momento de finalização da obra coincide com o momento de apresentação ou no caso da performance a fase de realização coincide com a fase de apresentação, levaram-nos a organizar mostras ou exposições num determinado espaço da cidade ou numa outra cidade, nos ateliês dos próprios artistas, nos seus apartamentos e outros espaços que se podiam arrendar por um valor comportável. Os responsáveis por cada espaço definiam a linha de programação para as suas exposições, convidando determinado artista pelas características da sua obra ou artistas que se interessavam por uma determinada área artística ou temática. A regularidade e quantidade de exposições e mostras traduziu-se numa maior experiência e desenvolvimento da capacidade organizativa; espontaneamente, alguns dos artistas assumem o papel de organizadores e de artistas-comissários e virão a ser responsáveis por apresentar algumas propostas de eventos, mostras e exposições colectivas temáticas e individuais nos mais variados espaços.
P: De que modo é que vocês se cruzavam e que referências tinham do percurso de uma geração que tinha iniciado o seu trabalho no início da década de 90 e que se tinha afirmado justamente através de projectos próprios, auto-organizados, seguindo a tradição dos espaços independentes, dos artist-run spaces, geridos por artistas. Que relação tinham com essa atitude e com os trabalhos que essa geração anterior produzia?
R: Como eu, outros colegas, conheciam o trabalho que vocês realizavam, acompanhávamos os teus projectos, os do Pedro Cabral Santo, do João Fonte Santa, da Rita Castro Neves, da Cristina Mateus entre outros, enquanto artistas e artistas-comissários e acompanhávamos também o trabalho desenvolvido na Zé dos Bois. Alguns de vós foram convidados a apresentar e a partilhar connosco, enquanto estudantes da FBAUP, o vosso trabalho e pontos de vista sobre a arte, nas conferências que organizámos no Inter e noutros ciclos de conferências, um dos quais dedicados ao papel do artista-comissário, realizado na Escola Superior Artística do Porto (ESAP). Para alguns de nós, o vosso caso, constituía uma referência, directa ou indirecta, de vontade, força e determinação, reclamando a autonomia do artista relativamente à apresentação do seu trabalho e a possibilidade de o ser, num país em que, por vários motivos, é difícil ser artista. Entre outros factores porque não há uma política cultural, local, regional, nacional. O sistema artístico é muito frágil, muitos dos agentes que o constituem e com os quais os artistas trabalham reduzem a arte ao seu medíocre mundo de interesses e ao seu pequeno campo de visão, subestimando a importância dos artistas, querendo-os transfigurar em meros produtores de mercadoria. Pelo que produziram e o modo como desenvolvem e deram continuidade ao vosso trabalho, resistindo a adversidades criadas pela (in)acção e indiferença de muitos dos agentes artísticos, constituem um exemplo de trabalho independente, relativamente ao pensamento dominante, livre dos constrangimentos que o tentam subjugar. Neste sentido, a actuação dos artistas-comissários foi determinante para o progresso e discussão do contexto da arte contemporânea em Portugal. Pelo facto de termos convidado alguns artistas dos anos 90, 80 e 70 a apresentarem o seu trabalho, nos diversos ciclos de conferências, com os quais um ou outro dos organizadores e colaboradores tinham alguma afinidade estética, sem termos qualquer relação de amizade, fez com que passássemos a acompanhar o seu trabalho e nos sentíssemos mais próximos implicando alguns deles noutros projectos posteriores como exposições, mostra de performances, ou outros projectos.
P: Por essa época aconteceu um importante evento cultural na cidade – Porto 2001- Capital Europeia da Cultura. De que modo a programação apresentada foi importante para a cidade e para potenciais artistas ainda a frequentar a faculdade?
R: É inegável a importância da Porto 2001 para o país, para o Porto, para a sua população, para as instituições artísticas do Porto, para os artistas e vários agentes artísticos nacionais e como referes para os estudantes de arte e docentes. Foi um momento único e uma oportunidade de tomar contacto com a produção artística e o pensamento contemporâneo nas mais variadas áreas. A qualidade da programação e a articulação entre os diferentes programas, obrigava a seguir atentamente as propostas que cada uma das diferentes instituições da cidade apresentava, motivava-nos a circular de espaço para espaço, redescobrindo a cidade, conhecendo outras cidades na cidade do Porto. O reencontro entre espectadores e criadores acontecia naturalmente nos espaços e prolongava-se nos cafés que proporcionavam a partilha e o debate sobre o que se tinha visto. A abrir a primeira década do novo século, um momento maior na cultura do país, um momento de descoberta e confronto com o nosso próprio tempo, um momento de respeito pelo indivíduo num todo que tem necessidade e direito de viver enquanto um ser maior em espírito, que quer e pretende mais de si, dos outros, do país e não só uma vida reduzida à contabilidade dos dias, perdida nos raciocínios tecnocratas dos políticos e dos directores de comunicação. Foi um momento maior para as pessoas e para o país, um momento que contrariou a centralidade cultural de Lisboa e mostrou que com vontade política o Porto foi e poderá ser uma cidade europeia culturalmente relevante. Tivemos a oportunidade de ver obras de grandes autores, no tempo certo, num país culturalmente secundário que vive apartado do seu Tempo, que não tem consciência do seu valor e dos seus criadores. Foi um momento que honrou o passado do Porto, uma cidade de cultura, de criadores, de realizadores, de escritores, de poetas, de artista plásticos, de músicos, de arquitectos, de cientistas, uma cidade com um passado culturalmente rico que hoje não sabe o que é porque não reconhece quem foram e são os que a engrandeceram. Uma cidade em que a pobreza não se reflecte só nas margens do rio mas que é também duramente visível tanto na sua periferia como no seu centro e está marcada no rosto e espíritos dos que nela vivem.
A Porto 2001 é apenas um dos exemplos que comprovam haver público para a arte contemporânea, um público que é merecedor de uma programação com qualidade e que exige uma efectiva política cultural. Em termos de artes plásticas, dilataram-se os espaços expositivos. Para além dos museus, das ruas, dos cafés, dos edifícios do centro da cidade que acolheram obras de jovens artistas, surgiram espaços intermédios que escasseiam em Portugal e que faltavam no Porto como o Teatro Campo Alegre ou a Galeria do Palácio mas que por falta de visão política e cultural do actual presidente da câmara municipal foram secundarizados e anulados.
Depois de 2001, a nível cultural, o Porto distanciou-se do arquétipo de uma cidade europeia. Relativamente à arte contemporânea, com a eliminação de espaços expositivos, há a contabilizar apenas a programação trimestral do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, as três exposições anuais da Culturgest Porto, as programações das diversas galerias, e a actividade de mais de vinte e cinco artistas que, desde 1999, têm apresentado com regularidade, nos vários espaços que dirigem, exposições, eventos e estabelecido plataformas de discussão e apresentação de trabalhos. Poderemos questionar como é que um momento cultural tão importante para o país, foi tão levianamente negado e esquecido pelos nossos políticos e senhores da cultura, não constituindo, hoje, qualquer referência pare estes. Desde então, o que fizeram e o que não fizeram? O que os move? O amor pela cidade, o respeito pelos portuenses?
Quem viveu a Porto 2001- Capital Europeia da Cultura sabe, hoje, quanto perdemos e não me refiro apenas ao que não foi concretizado, mas também à visão de um futuro, oposto ao que hoje conseguimos perspectivar. Os criadores têm consciência das potencialidades da cidade e como ela se pode transformar numa cidade europeia contemporânea, culturalmente relevante.
P: Tinham começado entretanto a aparecer espaços independentes na cidade do Porto – esse processo inicia-se com o W.C.Container em 1999 e em Janeiro de 2000 abre na Rua dos Caldeireiros a Caldeira 213, dirigida por um colectivo de artistas do Porto. Inicia-se assim um movimento que vai ter um grande desenvolvimento ao longo da última década, como observaste estes acontecimentos e de que modo estiveste também envolvido na sua génese e programação?
R: Ao longo destes dez anos tenho acompanhado o percurso de muitos dos artistas que vivem e trabalham na cidade, seguido a actividade dos mais variados espaços e colaborado com muitos deles, quer como artistas quer como organizador ou comissário. Quem conhece o meio artístico, facilmente constata que nesta cidade desgovernada por um rio que não é de ouro, a pequenez não é dos artistas. Estes para além de criarem a sua obra, tentam criar o que não há, fazer o que não têm. Outros com responsabilidade não o fazem ou destruíram o que foi feito até 2001. Através das suas actividades e tenacidade abriram o seu próprio caminho e criaram uma realidade artística. A necessidade de acompanhar o pensamento e as práticas artísticas contemporâneas, de conhecer a visão do outro, de confrontar o seu trabalho, de discutir o estado da arte na cidade, no País, nas instituições, e qual o papel do artista e dos vários agentes culturais, conduziu a que esta geração, comparada com as anteriores, fosse a que mais promoveu o debate, organizando conversas, conferências, encontros formais e informais com criadores, investigadores e agentes artísticos (1).
Neste Porto, donde vem o nome do país e foi fundado o primeiro museu de arte, desde 1999, os artistas têm dinamizado espaços, concebido exposições, projectos de intervenção no espaço público e diversos eventos onde apresentam, com regularidade, o trabalho de criação de mais de uma centena e meia de artistas. A dinâmica e a diversidade da programação vai de projectos de artes plásticas á banda desenhada, da ilustração ao design, á arquitectura, ás artes performativas, ao cinema, á música e á edição de publicações. Muitos são os espaços: W.C. CONTAINER, IN. TRANSIT, PÊSSEGOpráSEMANA, Salão Olímpico, Mad Woman in the Attic, Uma Certa Falta de Coerência, A Sala, Fundação, Espaço Campanhã, Apêndice, o Senhorio, Galeria Extéril, Maus Hábitos, Artemosferas, Caldeira 213, entre outros.
Estes projectos acontecem através de ocupações informais de espaços, alguns deles devolutos: um quarto de banho, pequenos apartamentos, uma arrecadação, salas de apartamentos, uma loja de um centro comercial praticamente desactivado, o salão de bilhar de um café ou os próprios ateliers dos artistas. Estes têm sido alguns dos espaços que, cedidos ou com rendas comportáveis, para artistas que vivem na sua maioria com dificuldades económicas, acolhem estes projectos independentes que têm contribuído para uma maior oferta cultural. Isto sucede numa cidade cuja equipa camarária desconhece os criadores e os vê como meros candidatos a subsídios municipais, menosprezando e desprestigiando aqueles que constituem uma referência artística e cultural. Sem visão política aposta no vazio cultural não concebendo que actividades como a Cultura, a Saúde ou a Educação, devam estar à margem das simples regras de mercado.
P: Posteriormente aparece em 2003 o Salão Olímpico, que acaba por se tornar o espaço de referência. A sua programação, mas também a localização geográfica na cidade, situava-se na cave de um decadente café na Rua Miguel Bombarda, rua onde se situam a maioria das galerias comerciais da cidade, permitem-lhe ganhar grande visibilidade. Já depois do seu encerramento e a convite da Fundação de Serralves, em 2006, aconteceram as exposições em Guimarães e Coimbra e o lançamento do livro / catálogo que tentava sintetizar as diversas actividades independentes que estavam a acontecer na cidade do Porto. Esse é o momento em que muitos dos artistas começam também a integrar galerias e a aparecer em exposições mais institucionais. Como acaba por acontecer também contigo… Como vês a passagem dos artistas do espaço independente para os espaço institucional e comercial da galeria?
R: Se analisarmos o curriculum artístico dos artistas poderemos constatar que desde o início do nosso percurso organizámos exposições e apresentámos o nosso trabalho em galerias comerciais, galerias municipais, em museus, nas mais variadas instituições como Casas da Cultura, Centros Culturais, mas também em espaços não conotados como expositivos como teatros, bares, cafés, etc. (2). Em 2006 muitos de nós tinham cinco e seis anos de percurso. Muitos de nós já trabalhavam com galerias desde 1999 ou 2000, outros desde, 2004 e 2005. Em 2006 quando se realizaram as exposições Busca Pólos em Guimarães e Coimbra, muitos de nós já tinham realizado várias exposições em espaços institucionais como Museus, Centros Culturais ou outros.
Desde o início poucos são os galeristas que conhecem e menos são os que acompanham a actividade que vamos desenvolvendo paralelamente aos espaços institucionais e comerciais. Porque são os artistas, o comissário e os responsáveis pelo espaço que recebem os visitantes durante o período do evento, contrariamente ao que é espectável, podemos afirmar o mesmo relativamente aos comissários, críticos de arte e decisores institucionais. São por isso incorrectos certos comentários críticos sobres as dinâmicas culturais levada a cabo pelos próprios artistas nesses espaços independentes por aqueles que raramente os frequentam, testemunhas virtuais e desinformadas que usam o acesso que têm ao espaço públicos dos jornais e a outros meios de informação, para inventar a sua “história”, demagógica e distante dos factos. Distorcem os acontecimentos de forma a encaixarem numa “outra realidade” que certas pessoas aprovariam mas que a certeza factual desmente. Sabendo que poucos são os que viveram, conheceram e conhecem esta realidade, no livro Salão Olímpico 2003/06 para além de tentarmos documentar toda a actividade desse espaço entre 2003 e 2005, as exposições Busca Pólos I e II realizadas em 2006 no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães e no Pavilhão Centro de Portugal, em Coimbra, pretendemos documentar e contextualizar a actividade desenvolvida pelos artistas, no Porto, desde 1999, enquadrando historicamente a sua actividade, enquanto organizadores e produtores das suas exposições desde o século XIX com um ensaio de Sandra Vieira Jürgens. Se durante a realização deste livro ficámos com a certeza que muito havia para documentar, inscrever, reconhecer e redescobrir; hoje, passados alguns anos muito há para fazer relativamente a uma realidade artística que tem dez anos, que contempla mais de uma centena de autores de várias gerações, dezenas de espaços e eventos, um número invulgar de criações realizadas em diversas áreas artísticas, uma realidade que convocou a cidade e reuniu centenas de pessoas que nela habitam e que tem necessidade de ver arte e contactar com os criadores.
P: O teu percurso caracteriza-se pela polaridade, não esquizofrénica mas complementar, enquanto artista e comissário. Nas duas situações sempre privilegiaste o lugar do político e do social enquanto reflexão de um presente marcado pela sua história. Esse discurso entra em rota de colisão com linguagens institucionais consensualmente mais neutras e esteticizadas. Parece-te no presente existirem discursos opostos ou um afastamento natural da instituição do discurso crítico real? As metas estatísticas a atingir, nomeadamente quanto ao número de visitantes e as expectativas populistas de certos patrocinadores podem distorcer o rigor de certas programações?
R: Sim, provavelmente porque em Portugal, contrariamente ao que acontece em muitos outros países, se uma instituição é apoiada pelo governo, esta não poderá ser crítica relativamente a este. Se é apoiada directa ou indirectamente por uma instituição americana terá de ser contida na crítica que faz às relações entre Portugal e os Estados Unidos. Se uma determinada empresa e ou grupo de empresas, relevantes e com responsabilidades na situação económica e social em que o país se encontra, apoiam uma instituições esta dificilmente apresentará obras que questionem e ou critiquem social e economicamente o estado do país. Se os mecenas que apoiam uma instituição são ou foram personalidades com responsabilidades políticas, económicas, culturais ou outras, esta dificilmente os constrangerá com uma exposição ou obra que reprove, satirize, critique, comente ou questione a sua acção, o seu papel, a sua actuação no presente ou no passado. É a resignação, a conformidade, o medo de existir que caracterizam este país.
Em Portugal, necessitamos de artistas empenhados numa visão política, social que coloquem o enfoque neste país, um país sem projecto de futuro, desumano, um país de burocratas e tecnocratas, de engenheiros, economistas que reforçam a omnipotência do mercado. Portugal é um país conivente com a China e que vergonhosamente recusa a recepção institucional do prémio Nobel da Paz Dalai Lama, que nos Açores americano, na Cimeira das Lages, aprova a Guerra do Iraque. Necessitamos de artistas que com consciência histórica rememorem que hoje, como no final do século XIX, as instituições da Justiça, Educação e Saúde são ineficazes e que, como no passado, os portugueses tornam a abandonar um país habitado por dois milhões de pobres, que alheado se entretém a assistir a imbecis programas de televisão e a passear-se por desmesurados centros comerciais, os maiores da Europa.
Um artista que hoje demonstre que vivemos um período menor da nossa história, dificilmente apresentará a sua obra em algumas das instituições artísticas nacionais. Este facto faz-nos compreender o porquê de muitos artistas, hoje, como no passado, serem menosprezados e a sua obra secundarizada, não estando inscritos na história, sendo excepcionalmente integrados nas colecções das diversas instituições e de raramente as suas obras estarem visíveis ou serem apresentadas nas exposições que organizam. No passado e na história recente não faltam exemplos. Muitos dos artistas dos anos 70 e dos anos 90 são hoje deliberadamente desconsiderados, como no período da ditadura outros o foram. A legitimação artística, é um processo de exclusão e não de inclusão de linhas de pensamento artístico, de criadores e obras, efectuada por vários agentes artísticos, e que visa a institucionalização, constituindo uma forma de poder.
Como referes, o real dificilmente é considerado. O criador que pretende pensar, devolver e inscrever em imagens, o real e as diferentes realidades que o constituem, facilmente vê a sua obra secundarizada, porque o comentador crítico e o público informado pelo gosto deste, dificilmente compreende a imagem que pensa o real, assombrados que estão com as notícias menores e com as esgotadas imagens da televisão e dos jornais que os molestam e confundem. Estes problemas de visão têm consequências no processo de legitimação e desfiguram no presente, junto do público, o que é ou não é arte. Muitos são os criadores nacionais, de várias áreas, cujas obras não se inscrevem no nosso imaginário e não constituem qualquer referência, sendo mais facilmente citado um mediano ou menor realizador, artista, escritor, músico ou pensador estrangeiro que um grande artista português.
Relativamente ao Porto, a situação política, económica, social e cultural é adversa ao artista e por conseguinte às artes em geral. A consciência disto leva a que muitos dos artistas que vivem e trabalham no Porto, que conhecem a realidade da cidade, e sentem esta adversidade, representem nas obras, a sua visão, a sua vivência e a difícil existência nesta cidade e no país. Questionam as acções dos responsáveis, criticando a fragilidade do sistema artístico, interpelando os vários agentes cujo campo de acção é local e não nacional, centrado numa cidade e que, no geral, desconhecem o que se faz fora da capital. Veja-se alguns dos recentes livros sobre arte em Portugal que não incluem e omitem a realidade artística no Porto.
P: Em 2008 assumes finalmente a responsabilidade de uma programação regular, que acabou por durar oito meses. Num antigo armazém na zona industrial da cidade, surgiu o Espaço Campanhã. Pela sua escala e condições pudeste comissariar exposições mais elaboradas e complexas que outros espaços expositivos independentes. De que modo pensaste a programação para esse espaço e como se enquadra ele nesse contexto de que falei antes, uma dinâmica geracional que continua activa e donde estão a resultar com o acumular da experiência trabalhos de grande consistência?
R: Faz sentido, pensando na tua experiência, contrariar o poder político, correndo o risco de por vezes o desresponsabilizar, fomentando actividades numa cidade em que a Câmara Municipal promove o deserto cultural? Sim, hoje como no passado, quando fui para a FBAUB e quando iniciámos a nossa actividade e percurso artístico faz sentido criar o que não há, fazer o que falta, contribuir para a construção de uma realidade artística, mesmo que frágil, para que, enquanto artista, nesta cidade possa viver e trabalhar melhor. Uma realidade artística é maior quanto mais motivado o artista estiver para criar, quanto mais forte for a sua determinação em ser artista, pois inquietação não lhe faltará para realizar determinada obra, realizar o seu percurso, num determinado tempo, em determinadas condições, políticas, sociais, religiosas e culturais.
Para se viver aqui no Porto, numa cidade culturalmente secundarizada, onde a maior parte dos agentes artísticos e instituições se encontram na capital, onde os artistas contam quase exclusivamente com os seus pares, é inevitável que o artista tente colmatar as falhas do sistema não sendo só criador mas organizador, produtor, comissário, investigador, minimizando a distância relativamente a outras realidades artísticas internacionais. Provavelmente, a criação aqui será diferente, particular, mas não menos singular.
Muitas das criações desenvolvidas e apresentadas nos espaços não institucionais e comerciais, revelam necessidade de experimentar, de concretizar e de afirmar. Para quem acompanha a programação nas diversas galerias da cidade facilmente constata que trabalhos em vídeo, cinema, instalações multimédia e sonoras, intervenções de artistas plásticos no espaço público, criações digitais realizadas ou não para o espaço da Web, criações realizadas no campo da música por artistas plásticos, performances, acções de rua, murais, publicações de artistas, banda desenhada e ilustração, bem como espaços de discussão e de debate, raramente ou nunca integram a programação dos galeristas e constituem grande parte da programação dos espaços geridos ou programados por artistas. Sabendo que as galerias não se interessam pela totalidade da sua produção, muitos dos artistas optam por criar ou colaborar com os espaços não institucionais e comerciais mantendo a colaboração com as galerias. O envolvimento e acção destes artistas, no campo da arte enquanto artistas-comissários, programadores, responsáveis por espaços expositivos, investigadores, etc., não se separa da sua actividade artística e do entendimento que têm do que é ser artista no Porto, em Portugal, na Europa e no mundo.
O Espaço Campanhã inscreve-se nesse contexto. Na concepção da sua programação (3) tentei ter em conta as características físicas do espaço, a sua situação geográfica, o seu passado, o contexto local e nacional e o contexto artístico em que se enquadra, mas também o facto de estarmos no final da primeira década do novo século num enquadramento político, social cultural muito particular. Neste sentido teria de ser inevitavelmente política. O mesmo se verificou com a programação que concebi, a convite de André Sousa e Mauro Cerqueira, para o espaço Uma certa falta de Coerência (4). Enquanto artista-comissário, estando próximo dos artistas e partindo do seu trabalho, entendo que deveremos pensar o presente, devolvendo a sua imagem como o fazem Mauro Cerqueira, o André Sousa, o Nuno Ramalho, o André Cepeda, o Eduardo Matos, o Pedro Magalhães ou incidir sobre o nosso passado como o trabalho que tu desenvolves, ou o do João Sousa Cardoso ou da Carla Filipe, que revelam uma consciência histórica e, ainda, perspectivando o futuro partindo de inquietações do presente como faz o Silvestre Pestana e muitos outros criadores.
Se pelas obras deste artistas, apresentados nestas exposições, constatamos que muitas delas questionam a cidade, o país, a sua condição europeia, a república que nos deu uma ditadura, a revolução de 25 de Abril, com os seus ideais hipotecados, que se traduzem no que vivemos e temos hoje. Sei também pelas obras dos artistas que muito há a pensar relativamente ao meio artístico nacional. Urge e é minha intenção reunir numa ou várias exposições, um conjunto de obras realizadas nos últimos dez anos por vários artistas que questionam as políticas culturais, o sistema artístico, o mecenato, os seus agentes e relações estabelecidas entre eles, as instituições artísticas, o mercado, a criação artística e a sua condição, no Porto e em Portugal no início deste novo século.
NOTAS
(1) Recursos Humanos - espaço a Sala, organizado por Isabel Ribeiro, Susana Chiocca e Nuno Ramalho, a programação do Petit CABANON contemplou mesas redondas, debates e conversas em torno de temáticas e pensamento contemporâneo, Conversa de Café – ciclo de conferências, no salão Olímpico e no Café Capri, regularmente o espaço Uma Certa Falta de Coerência, apresenta conversas com os artistas que expõem o seu trabalho, Ciclo de conferências sobre fotografia contemporânea, “Encontros do Olhar _ Fotografia e Arte”, no Instituto Portugês de Fotografia no Porto, com Ricardo Nicolau, Liliana Coutinho, Sandra Vieira Jürgens, Miguel von Hafe Pérez, João Tabarra, Luís Fortunato Lima, André Cepeda e Rita Castro Neves, Ciclo de apresentações de projectos de jovens artistas – pintores, “A fotografia acolhida pela pintura”, na ESAP, com Arlindo Silva, José Pereira e Luís Fortunato Lima, Ciclo de apresentação de projectos de “artistas comissários” na Escola Superior Artística do Porto, com André Sousa, Carla Cruz, Carla Filipe, Eduardo Matos, Isabel Carvalho, Isabel Ribeiro, João Fonte Santa, João Sousa Cardoso, Mafalda Santos, Miguel Carneiro, Paulo Mendes, Pedro Amaral, Renato Ferrão, Rita Castro Neves.
projecto inter+disciplinar+idades, ciclo de conferências, actividades culturais e artísticas, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto: Colóquio “Como ministrar o ensino artístico” com: João Fiadeiro, Ângelo de Sousa , Né Barros; Colóquio “perspectivas da situação da arte” com: João Fernandes (Museu de Serralves), Luís Serpa (Galerista), Alexandre Melo (Crítico), Paulo Mendes (Artista e Comissário); Ciclo de Conferências: “As histórias dos últimos anos” por Alexandre Melo, Miguel von Hafe Pérez, António Cerveira Pinto, Isabel Carlos, Eduarda Dionísio; Ciclo de conferências: “Solos”- (artistas e obras nos anos 90) com António Olaio, Miguel Leal, Pedro Tudela, Fernando José Pereira, Cristina Mateus, Manuel Valente Alves, Paulo Mendes, Rita Castro Neves. O ciclo de conferências temáticas sobre “O Vídeo” com Ângelo de Sousa, Pedro Sena Nunes, Regina Guimarães, “O Teatro” com Paulo Castro e João Garcia Miguel, encenadores / criadores, “As Vanguardas...” Carlos Vidal, “Modos de expor...” por Eglantina Monteiro, “O Cinema” Serge Saguenail, “A performance” com Manuel Barbosa, “A obra de Albuquerque Mendes” com Bernardo Pinto de Almeida e Albuquerque Mendes. Na ESAP de Guimarães José Maia apresentou várias conferências entre as quais “Os direitos do autor”, proferida por Dr.ª Paula Fernandes, “Arquitectura e produção da exposição Depósito - O projecto e a montagem de uma exposição na Universidade do Porto”, proferida pela arquitecta Inês Moreira, “O espectador na Performance”, proferida pela artista e investigadora Susana Chiocca, “O Retrato do Artista enquanto Comissário”, proferida pelo artista e curador Paulo Mendes, “A Poesia Experimental Portuguesa (dos nos 60 aos anos 80)”, proferida pelo professor, artista e investigador António Preto, entre muitas outras.
(2) Centro Cultural Emmerico Nunes de Sines, Auditório Nacional Carlos Alberto no Porto, Teatro Taborda em Lisboa, Galeria Zé dos Bois em Lisboa, Galeria Canvas no Porto, Museu Nogueira da Silva em Braga, Videoteca de Braga, Galeria Spatium em Tavira, e Galerias Municipais Arco e Trem em Faro, Casa da Cultura de Elvas, Liga dos Combatentes do Porto, Centro Cultural de Lagos, Casa Municipal da Cultura de Coimbra, Casa dos Crivos de Braga, Fundação Cupertino de Miranda em Famalicão, Galeria Glória Vaz de Felgueiras, Mercado Ferreira Borges no Porto, Paço da Cultura da Guarda, Galeria Municipal de Fitares de Sintra, Museu da FBAUP, Galeria da Associação de Estudantes da FBAUP, Café São Lázaro no Porto, Galeria do Bar Labirinto no Porto, Galeria do Jornal Universitário do Porto (JUP), Convento das Dominicas de Guimarães, Laboratório das Artes de Guimarães, Um Diapositivo para Você do Porto, Reservatório da Patriarcal de Lisboa, Artemosferas no Porto, espaço Projecto fig. da loja Da Nova Delux no Porto, Caldeira 213 e Maus Hábitos no Porto, entre muitos outros.
(3) Entre Dezembro de 2008 e Julho de 2009, José Maia apresentou no Espaço Campanhã duas exposições colectivas temáticas, quatro exposições individuais, exposições de projectos criados especificamente para o Espaço Campanhã e duas mostras organizadas por colectivos de artistas, cujo corpo de trabalho contempla para além da criação, o pensamento e a investigação artística contemporânea. Paralelamente às exposições, foram organizadas conversas e conferências intituladas Conversa de Café que permitiram apreender e ampliar o campo de criação e reflexão artística e acompanhar o pensamento contemporâneo. Simultaneamente às exposições, foram apresentados concertos e outros eventos propostos pelos artistas.
Nas nove exposições apresentou um significativo número de obras, que dão conta das diversas práticas artísticas contemporâneas como a pintura, escultura, desenho, banda desenhada, edição de publicações de artistas, instalação, vídeo, performance, som, música, entre outras, realizadas por jovens artistas, artistas emergentes e artistas com percurso iniciado nos últimos vinte a trinta anos.
(4) Entre Setembro e Dezembro de 2009, José Maia apresentou no espaço Uma Certa Falta de Coerência três exposições individuais, conversas com os artistas e visitas guiadas com alunos de escolas artísticas.