|
FELIX MULA
Felix Mula venceu o último prémio NOVO BANCO Photo, com o projecto “Idas e Voltas”, um trabalho onde as memórias individuais, o património colonial, o choque entre o rural e o urbano convivem. Filho de um fotógrafo de estúdio de Maputo, diz que escolheu o próprio caminho, num meio artístico onde o fotojornalismo era a grande influência na área da fotografia. Felix Mula conversa com a Artecapital sobre o seu percurso de vida, as suas referências e a sua situação actual como docente em Moçambique.
Por Victor Pinto da Fonseca e Liz Vahia
>>>
VPF: Foi muito bom teres ganho este prémio do Novo Banco Photo 2016. Gostava que falasses um bocado do teu percurso.
FM: Depois deste prémio o pessoal de casa começou a mandar-me emails. Souberam pela internet. O meu tio já me ligou e disse “Há uma coisa que tu não disseste e que eu não gostei”, e eu respondi “O que é que eu não disse?”, e ele “Não disseste que desde miúdo tu já eras um artista. Tu sabes isso e eu também sei.” Acho que o meu percurso no mundo das artes começa nesse momento que o meu tio me recordou. Eu sabia, mas nunca tinha feito uma ligação consciente. Quando era criança eu andava a apanhar objectos tudo o que eu achava interessante: um relógio estragado, chaves... tudo o que via no chão eu apanhava e metia tudo numa pasta. Mas depois ficava irritado, porque era muita coisa e tinha que deitar fora algumas. Então deitava tudo para o chão e escolhia o que me interessava. Mas o que acontecia é que muitas vezes metia tudo de novo.
VPF: Já nessa altura tinhas um espírito crítico, selecionavas o que te interessava.
FM: Eu cresci com pessoas mais velhas. Com 14 anos já saía de casa e não dizia nada a ninguém. E gostava de desenhar, sempre gostei de desenhar e sonhava ter aulas de desenho na escola e nunca tive. Estive depois 5 anos sem estudar e nesse intervalo fui para a África do Sul trabalhar. Quando voltei à escola em 1999 aí sim, tive desenho.
VPF: Isso passa-se em Maputo?
FM: Em Maputo. Nessa altura eu tinha relações com um amigo da escola de artes visuais, com quem me dava muito bem. E perguntava-lhe “Como é que tu desenhas tão bem?” e ele dizia que tinha desenho na escola. “Mas há desenho nas escolas aqui?”, perguntava eu, e ele dizia “Sim, na escola de artes”. Fui lá perguntar “Como é que faço para entrar aqui?”, mas disseram-me que tinha que ter a décima classe feita e eu só tinha a sétima. Fui acabar as classes, mas depois disseram-me que já tinha demasiada idade para aquele curso. Entretanto a escola introduziu um novo curso que era Artes Visuais, que não tinha nada a ver com idades, só com as classes e eu como já tinha a décima fui para lá.
A minha relação com a imagem começa com a fotografia. O meu pai era fotógrafo de estúdio e eu sempre tinha a fotografia na minha cabeça. Mas não era uma fotografia do campo das artes, porque ele fazia fotografia de estúdio, fotografia de memória, retratos, fotos de amigos... Depois fora do estúdio fazia casamentos, festas, e precisava de alguém para o ajudar. Eu fui essa pessoa. Por isso agora tenho problemas sérios em fotografar pessoas, fiquei como que traumatizado! Porque fotografei muitas pessoas! O que eu gosto é o que me leva às pessoas, às histórias.
VPF: Em alguma altura desse processo ou depois tomaste consciência de que há de facto uma tradição em Moçambique de fotografia?
FM: Isso descobri mais tarde. Eu agora costumo dizer que em Moçambique houve de tudo. Moçambique em si é uma escola de fotografia, há muitos autodidactas. Eu próprio parti de uma coisa ensinada mas depois escolhi o meu próprio caminho. Porque a fotografia em Moçambique está muito ligada às pessoas, mas a minha fotografia não... A fotografia em Moçambique actualmente está num ponto aceitável, mas do que se fala mais é do fotojornalismo. Eu recordo-me de uma altura em que quase todos os fotógrafos trabalhavam para o World Press Photo.
VPF: Aquele trabalho que me mostraste que é uma caminhada, isso pareceu-me muito conceptual e artístico, mas na altura em que o fizeste a tua intenção até era outra. Mas tinhas já esse interesse e essa vontade, não era?
FM: Eu fiz essa caminhada por várias razões.
LV: Falas na entrevista do catálogo do NOVO BANCO Photo que o teu avô tinha caminhado 800km...
FM: Eu quando fiz essa caminhada não me recordava da história do meu avô. Quando saí de Maputo para a África do Sul eu também caminhei muito e refiz o que eles faziam: caminhavam e encontravam um sítio para trabalhar e continuavam depois e trabalhavam... Agora, quando eu saio de Maputo em direcção à terra em que o meu avô nasceu e foi sepultado, aquela caminhada já era uma coisa muito mais radical, bruta, porque não tinha paragens, eu só parava à noite. Aquilo cansou-me muito. Quando fiz 98km estava partido e não conseguia mais levantar-me. Dizia que queria voltar de ambulância!
O facto de ser o único artista na família converte-me na pessoa mais maluca da casa. Às vezes sou o bom exemplo, outras vezes sou o mau exemplo.
Todos os meus projectos são formas de eu viver e questionar as coisas. No projecto da caminhada eu coleccionava objectos com a máquina fotográfica. Tudo o que me interessava durante o trajecto eu fotografava.
VPF: O que me interessou quando contaste o projecto foi o facto de ainda não teres visionado uma exposição.
FM: Não, só queria viver o momento, ter aquela experiência toda e depois guardar essa história. Não tinha um interesse expositivo, mas quando os amigos viram as fotos disseram que eram muito boas. Essas fotos, no entanto, não podem substituir o que eu vivi. Digamos que a parte expositiva do projecto é muito individualizada, porque de cada vez que mostro as fotografias a alguém é uma exposição. São exposições sem a parte comercial.
VPF: Antes de ser um projecto de arte é de vida.
FM: Exacto. É uma história que eu conto. É um tipo de estar no campo das artes.
Tenho tido períodos em que faço trabalhos que não têm muito a ver comigo, mas a forma que lhes dou dá para perceber que são as minhas questões. O meu redor tem tanta coisa interessante! Se eu tenho uma história interessante que posso trabalhar, porque é que hei-de largá-la e procurar a história dos outros?
LV: Interessam-te essas histórias individuais que estão ligadas a acontecimentos históricos, como a que tens na exposição?
FM: Acho que sim. A mim não me interessa falar da História. O global é feito de partículas e eu gosto de perceber a partícula que forma o global. Eu adoro histórias individualizadas. Agora estou nesta fase! Alguém dizia “todo o mundo não é ninguém, mas alguém pode ser todo o mundo”. Interessa-me mesmo as famílias que me contam a sua história, e que pode ser o espelho da história de todas as famílias.
LV: A história oral também está presente junto a estas fotografias que expuseste.
FM: Eu não sabia qual era a memória que essas pessoas guardavam desses espaços. Não sabia mesmo. Para isso procurei pessoas específicas e outras viajaram comigo.
Sou um bocadinho nostálgico e não vejo nenhum mal nisso. Mas ainda temos uma relação difícil com os espaços que outros projectaram. Vês uma cantina abandonada em ruína e ao lado as pessoas com as suas banquinhas. Não ocuparam esses espaços.
Fala-se muito da questão do património e do respeito pelo mesmo, mas eu pergunto “património de quem e para quem?”. Quem projectou esses edifícios consegue ver a sua importância, mas quem não sabe de onde surgem aquilo não é património, não é nada. Em Moçambique as pessoas têm muito mais respeito pelo património imaterial.
VPF: Tens relações de amizade com outros artistas de Moçambique?
FM: Comecei com uma relação muito difícil com os artistas de Moçambique. Eu não era bem vindo, eles não gostavam de mim e eu não gostava deles. A arte em Moçambique estava muito ligada ao autodidactismo. A maior parte não tinham estado numa escola e quando me formei eles tinham um problema comigo. Para mim são escolhas, entre estudar ou não. Pouco a pouco começaram a aproximar-se.