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CRISTINA ATAÍDE
2021/07/01
A partir da exposição Dar corpo ao vazio, patente até 15 de agosto no Museu Colecção Berardo, Joana Consiglieri da artecapital conversa com a artista Cristina Ataíde sobre o seu trabalho artístico, abrindo para um discurso estético com novos trilhos do pensamento do que se entende e se sente relativo à natureza, lugar, corpo e ser, cuja visão de viagem é uma experiência do ser humano com a natureza. Através do diálogo, a conversa encaminha-se para outras exposições da artista em exibição neste momento como Who am I? Who are you?, na Galeria Diferença, ou a Sexualidade, Uma Expressão na Arte e na Ciência, uma exposição coletiva, dos Psicólogos Associados, no Museu Nacional de História Natural.
Por Joana Consiglieri
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JC: Cristina Ataíde, na exposição Dar corpo ao vazio, patente no Museu Colecção Berardo, com a curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues, tem uma intenção subjacente de direcionar o espectador como se embarcasse numa viagem. Qual foi a tua intenção de levar ao público a sentir que estivesse a viajar pela natureza?
CA: O meu trabalho desenvolve-se atualmente e normalmente na paisagem. Para mim, caminhar é a forma, onde me sinto melhor e mais realizada. Por isso, o meu trabalho faz parte da natureza, trabalha com a natureza e com os seus materiais. Nesse percurso, tentei que o visitante me acompanhasse, nessas viagens pela natureza, porque, não me interessa tanto a paisagem em si, enquanto visão de espectador, mas a natureza, ela própria com todas as suas particularidades, com os seus materiais, com o vento, com a chuva, com a sua força da natureza e também com os seus problemas ecológicos. Era, por isso, fazer uma viagem de ida e volta, em que o observador, com o seu próprio corpo, pudesse percorrer aquele espaço e ter uma visão de tempo e espaço, sempre diferente, tanto na ida como na volta. É o que nos acontece quando estamos a andar na natureza. Há sempre coisas que nos vão chamando a atenção, que nos alertam e com que sentimos mais empatia. Essa foi a intenção.
JC: Ao longo do teu trabalho, a viagem está sempre presente. Porventura, esta tem várias conotações, geralmente, associadas a uma viagem espiritual ou existencial, conforme o contexto ou cultura. Por exemplo, temos a Divina Comédia de Dante, numa viagem ao Inferno; Henry David Thoreau numa caminhada transcendental pessoal; ou a mais recente de Hamish Fulton numa espécie de peregrinação como forma de transformação na arte. Poderias explicar qual o sentido de viagem que tu expressas na tua obra?
CA: Acho que as minhas viagens são para perceber e compreender o mundo, obviamente, tento compreender o mundo. Também, compreender-me a mim própria. É sempre uma viagem de modificação. Eu modifico-me, quando percorro os lugares, sejam perto ou sejam longe. A viagem não tem a ver com a distância, tem a ver com o lugar. Mas, ao transformar-me a mim própria, também vou transformar o mundo. De alguma mameira, a minha presença nos lugares vai alterar esse local. É essa consciência que quero ter em mim e no meu trabalho. De alguma forma, perceber aquilo que eu posso fazer ou aquilo que não devo fazer para que a minha deslocação no mundo seja o menos traumática possível tanto para ele como para mim. Quero também que essa alteração seja sempre uma modificação positiva, para melhor. Algo que nós possamos transformar, progredir, prosseguir e não piorar.
JC: Em Henry David Thoreau, tem essa relação com a natureza. Quando se caminha, também se auto-transforma, mas numa ligação mais com uma espiritualidade a Deus, ou uma unificação ao Cosmos. Achas que também se pode estar associado nesta perspetiva? Porque quando afirmas que há uma modificação, existe um percurso de quer nos tornar melhores como seres humanos.
CA: Claro. Os percursos são sempre interiores e se são interiores, são espirituais. Só faz sentido… ou melhor, só o compreendemos quando nos modificamos. Não em termos físicos, de engordar ou emagrecer, comer mais ou comer menos. Como foi um treino que já fiz. Durante anos, ver aquilo que comia e que bebia, com a intenção de querer modificar a parte física. Estes percursos são mais mentais, numa tentativa de nos superarmos a nós próprios interiormente e de uma forma espiritual. Porque senão não faz sentido. Tem a ver, fundamentalmente, com as filosofias e religiões orientais, que são muito mais adeptas para os percursos interiores e menos para os ensinamentos Católicos que eu aprendi em criança e em jovem e que estavam sempre a focar na “culpa”: “Nós somos culpados de…”. A curiosidade do Oriente, e das suas religiões, é exatamente de me libertar dessa culpa. Porque havemos de nascer com culpa? Não faz sentido nenhum.
JC: No Oriente, não tem esse lado da culpa.
CA: Têm o karma. Se é uma ação que nós provocamos, essa ação tem sempre uma reação. Tentar não fazer mal, para não aumentar o karma, ou para não o piorar. Estas caminhadas, “caminhadas cósmicas”, como tu dizes sobre Thoreau, estão associadas ao evanescente, ao desaparecimento ou ao apagamento. Quando olhas para o cosmos, é tão grande e tão extraordinário, que ficas cada vez mais pequeno.
JC: É a dimensão, que nos faz sentir como parte, mas, ao mesmo tempo, somos pequeninos.
CA: Tem tudo a ver com a escala. O meu trabalho também tem a ver com a escala.
JC: Quando andamos pela exposição Dar corpo ao vazio, percecionamos vários “marcos ou sinais” que apelam à transformação, como se fossem momentos de mudança. Por exemplo, na elevação do olhar que direciona o espectador para uma determinada perspetiva, para o alto, ou no fim, temos a leitura do chão, para o baixo. Nesta visão entre o alto e o baixo, o cheio e o vazio, o corpo e a energia, a vida e a morte, é legítimo perguntar se expressas subtilmente uma visão quântica da natureza por apresentar mais fluida e orgânica, ou por mostrares ao público o vislumbre do detalhe, como se fosse um meio de captar a essência? Porque tu escondes, o espectador tem de estar à procura das esculturas. Há um detalhe, um pormenor, temos de estar atentos.
CA: Isso é olhar com atenção.
JC: Mas também, o ínfimo pequenino.
CA: Isso faz parte de um projeto de trabalho, muito anterior. Estava a trabalhava com a problemática do corpo e o seu interior. A questão tinha a ver com o “olhar com atenção”. Quando, olhamos com atenção, vemos o ínfimo. Mas, vemos principalmente a beleza das coisas. Apercebemo-nos do que se passa e como a forma é. Estava a trabalhar bastante com o coração. As pessoas normalmente repudiam os órgãos, porque não estão habitadas a vê-los. Mas, se olharmos um coração, ele é extraordinariamente belo, de uma pujança e de uma forma extremamente complexa e harmónica. No percurso desta exposição, a intenção era que o corpo do visitante fosse chamado a interagir com a própria exposição. Ele tinha que movimentar o seu olhar, o seu ponto de vista, direcionando-o para vários pontos, começando por baixo, em seguida para cima, olhar o horizonte e depois baixar novamente até ao chão. Para além do olhar se movimentar, também, o próprio corpo do visitante tem de percorrer no espaço. Tem de se baixar, curvar, procurar, interagir. Mesmo os desenhos “Frágil” só se percebessem completamente, quando se aproximam e só ai se percebe que existe uma outra cor. Só se chegarem perto, se pararem, se debruçarem, se espreitarem. É toda uma solicitação ao outro, de interagir com o trabalho. Não uma interação imediata, de tocar, ou de rasgar, ou de pisar, mas a de espreitar, de mover o corpo, de olhar, de relacionar, de cheirar, etc.
JC: Contemplar a Montanha, transpõe-nos para outras leituras, as listas e as “frottages” são registos, enquanto referências de um lugar. Vês como memórias, arquivos naturais e humanos ou mapas? Porquê esta necessidade desta procura? É uma descoberta? Podemos associar à analogia da procura de Milton no “Paraíso Perdido”? Ou tem mais a ver com a sensação contemporânea de encontro da natureza como se fosse um alpinista no Evereste?
CA: O Evereste é um monte sagrado. Os tibetanos não subiam ao monte para não perturbar os Deuses. Eu respeito muito as montanhas. Quando as percorro, é sempre com um sentimento de respeito. Não querendo acordar os Deuses, mas fazendo-lhes companhia. Estes meus percursos são de aproximação e de sentir a energia da montanha, daquele ser que está ali, potente, e que nos transmite, por um lado, uma energia incrível, uma serenidade, uma calma. Mas, por outro lado, se queremos subir bastante, é um grande esforço físico. Ou seja, acho que a montanha nos obriga a estar 100%. Toca-nos em todos os nossos sentidos e no nosso corpo. Temos, por isso de estar muito presentes. É isso que gosto de fazer quando trabalho; estar a 100% num sítio, desfrutá-lo o melhor que eu consigo, com o meu corpo e com o meu espírito. Incorporar o que ele tem para me dar e o que eu posso receber. Tinhas outra pergunta?
JC: Porquê as listas, são memórias, arquivos ou mapas?
CA: Eu acho que estes desenhos são isso tudo. Os desenhos grandes, das montanhas, são memória. São os lugares onde eu estive, mas, também, uma forma de reproduzir essas montanhas e fazer sentir ao outro a minha vivência daquele lugar. Quase sempre esses desenhos são de grandes dimensões para que nos passam envolver, cercar e nos façam sentir dentro da própria montanha. As listas também têm a ver com as minhas vivências. É uma forma de compreender melhor o mundo. É um registo, neste caso, a listas de “Todas as Montanhas do Mundo”. Eu listo, teoricamente, todas as montanhas do mundo. Seria quase impossível listar, todas as montanhas do mundo, todas, todas, todas. Mas, as maiores e mais altas, sim. Quando as percorro ou subo, mudo a sua cor do seu nome, na lista. Assinala o que eu já percorri e o que ainda posso vir a percorrer. Também, mostra a dimensão do mundo, de como ele é grande. Ficam uma série de nomes que podem ser um mapeamento, uma memória, ser registos. São tudo.
JC: Podem ser uma partilha. As pessoas podem irem à procura e encontrarem as suas montanhas. Sendo assim, são pistas para elas poderem as encontrar.
CA: A obra de arte tem que ser uma partilha. Quando expomos estamos a semear pistas. No trabalho artístico, quando fazemos um desenho ou uma escultura, empregamos toda a nossa energia e criatividade para fazer essa obra. Quando ela é observada, devolve toda a energia a quem a observa, agora, daqui a dez anos, daqui a vinte ou daqui a cem. Porque, se a obra, contiver nela própria essa força do criador, ficará sempre presente e será sempre devolvida. Como a natureza que nos envia as suas vibrações, a sua força renovadora.
JC: Remetes constantemente na tua obra para o lugar, enquanto geografia, mas também cultura. Existe uma fusão entre a natureza e o ser humano. Selecionas determinados sítios, montanhas, lagos e rios, mas também partilhas com pessoas e a comunidade desse sítio. Porque é tão importante para ti, relacionar e fundir a arte, cultura e geografia de um determinado local? Existe alguma seleção prévia para questionar quem o vê? Quando escolhes tem alguma razão ou intenção ideológica ou pessoal, como na obra Amazónia?
CA: Ou política. O trabalho artístico pode ou deve ser político, atuando no mundo e sendo interveniente, mas não quero que o meu trabalho seja agressivo, com grandes depoimentos ou muitas parangonas. Trabalho sobre certos assuntos atuais, como por exemplo, com os refugiados, a partir de uma lista a que chamo “No name”, dos migrantes que tentaram chegar à Europa e morreram pelo caminho. Exatamente porque ninguém lhes deu a mão. A Europa ainda não resolveu esse problema.
A ida à Amazónia tem a ver com o lado político das coisas. Como é que poderia fazer para chamar atenção desse grave problema. Na Amazónia, fiz um site-specific, “Can we save Amazon?”, com os cobertores de salvamento, (aqueles que são usados nos salvamentos possíveis, dos migrantes), e fui fotografando-os, nos diferentes locais por onde me deslocava. Levei esses cobertores de salvamento para uma Amazónia, que está a ser completamente devastada e destruída pela ganância humana. Estão a desflorestar, fazendo queimadas, explorando desregradamente os minerais e até matando os povos indígenas, etc., etc.
Ao trabalhar com os lugares há sempre uma intenção. Há sítios que me atraem, enquanto pessoas e civilizações. Há outros que eu vou porque quero descobri-los, pois não os percebo ou percebo-os mal. Quero inteirar-me do que se passa lá, porque funcionam assim. Há outros países que têm problemas terríveis. Mas, fundamental, é querer compreender o que se passa, entender, sem estar a julgar, com aquele espírito critico europeu. Senti muito isso no Oriente, pois, se chegamos com os nossos conceitos “civilizados” nesses países, sentir-nos violentados. Temos que ir com o espírito aberto, não fazer julgamento e perceber como eles funcionam e porque o fazem.
JC: No teu trabalho, a «im(permanência)» e a fluidez de todos as coisas manifestam-se como matéria que se transforma em energia, o corpo em pó. Cruzas a visão ocidental da física quântica com a filosofia tradicional asiática, por exemplo, a impermanência do budismo ou a visão cíclica do Tao (Dao)?
CA: Essa impermanência pode ter ligações com budismo ou o taoismo, com essas filosofias e religiões, mas tem, principalmente, a ver connosco próprios. Nós somos impermanentes, é uma consciência que temos, mas muitas vezes queremos esquecer. Nas religiões orientais, parecem mais despertos para isso, talvez, porque se passa tudo à nossa frente. Os enterros passam à nossa volta levando os corpos para as cremações que são feitas em público, na margem do rio. No rio, peneiram-se as cinzas dos corpos, para recolher o ouro que pertence ao cremador. Essa consciência da nossa impermanência é muito visível, especialmente na India. Mas, existe também cá. É uma preocupação nossa e com a qual, muitas vezes é difícil de lidar. Chamei “Impermanência” à barca suspensa sobre um rio hipotético. Mas, os rios estão sempre a correr. A nossa vida é isso, está sempre a correr. Está sempre a seguir o seu percurso. Nós podemos alterar esse percurso. Embora a água esteja sempre a correr, nós podemos mudar de margem para margem; podemos escolher o rio que queremos; podemos andar mais depressa ou mais devagar. Interessa-me a modificação que podemos fazer nas coisas e em nós próprios. O trabalho artístico é a modificação constante. Estamos sempre a alterar o que produzimos. Sou incapaz de ficar eternamente num modus operandi. Impossível fazer sempre da mesma maneira com aquela receita que encontrei e resultou. Não. Eu experimento formas e ações.
Há, no entanto, séries que repito propositadamente, como por exemplo, as frottages que faço da pele do mundo, a que chamo “Skin Afair”. Tem a ver com o registo dos meus percursos pelo mundo. A cada lugar que eu vou, faço a frottagem de um pouco desse sítio, que é uma maneira de trazer esse bocadinho de mundo comigo. Vem a forma do chão e vêm algumas moléculas no papel. Fiquei a saber como é o chão de S. Paulo, sei como é o chão do Porto, Lisboa, Bangkok, Bagan, Angkor... Quando faço as frottages e fico muito perto do chão, da terra.
JC: Lao-Tzu que escreveu “Tao-te King”, também conhecido por Lao Tse, procurava o princípio básico e a essência de todas as coisas. Isto, é, as leis da natureza e a mutação constante da natureza eram a lei elementar do ser humano, na medida em que ele faz parte dela. Quando pretendes transmutar o ser humano com as tuas obras, também tens esse olhar de refletir o que se passa com a Natureza na atualidade?
CA: A forma como nós estamos a destruir a Natureza?
JC: Sim, também por teres uma ação positiva perante a natureza e queres fazê-lo.
CA: Eu tento ter uma ação positiva. É uma questão que me toca profundamente. Questionei-me, como posso continuar a trabalhar e deixar a menor pegada na Natureza? Decidi trabalhar só com papel, papel vegetal, água e pigmento. Com isso, conseguia fazer montanhas e recriar as suas formas, fazer esculturas e desenhos com isso. Essa preocupação de não provocar impactos negativos na natureza ou reduzi-los o mais possível, é fundamental. Daí tento, também, trabalhar com o que já existe. Não destruir mais coisas, usar aquilo que temos à mão, por isso uso muito o “ready-made”. Já existem todas as formas, não vale a pena criar novas formas. Temos que tentar minorar o mais possível a terrível forma como estamos a destruir o planeta, que é completamente avassalador. É muito preocupante, mas tem de o ser ainda mais. Tem de se atuar, mesmo. É urgente fazer qualquer coisa, porque não há planeta B. Temos de tratar bem este.
JC: O pó e o pigmento vermelho têm uma carga simbólica muito forte, de morte e vida, cíclica da natureza, do corpo e da paisagem, de natureza e cultura. Será possível afirmar que ambos são a essência do ser humano e o espelho do teu interior? Como ser e mulher, numa extensão da natureza, como diria Henry David Thoreau? Ele afirmava isso.
CA: Comecei a trabalhar com o pigmento, devido à minha experiência na Índia. O pigmento é uma matéria que está sempre presente. Está presente nos pujas que são celebrações, o mesmo que rezar. Também, quando se vai ao templo, é posto na testa, para mostrar aos outros que se está santificado. O pó é uma matéria que não tem corpo próprio e que se deposita onde o colocamos. É uma matéria que adota o significado que lhe queremos dar. Mas, enquanto se deposita, também se espalha pelo ar, também voa e infecta tudo. E há o pó em si próprio. A palavra pó é muito significante. Viemos do pó e em pó nos vamos tornar. O pó que é barro ou gesso e com que eu modelo, desenho ou pinto. E, há o vermelho. É uma cor que contém os opostos em si própria. O vermelho contém a vida, contém a morte, é energia positiva, energia negativa, é amor e ódio. Está tudo ali. O vermelho é quase, uma cor que contem “todas as cores”. Não todas as cores, mas sim todas as emoções. Além de que o vermelho é a cor complementar do verde. O verde da natureza. Se ponho uma mancha de vermelho numa paisagem, muitas vezes faço-o com as fitas em que escrevo os desejos dos meus amigos. Tudo passa a ficar extremamente vibrante. Realça.
JC: É, neste sentido, que o teu corpo se expande para a natureza, cujas árvores nos lembram seres, ou o pigmento vermelho sangue ou veias? Não aconteceu nesta exposição do CCB, mas quando enrolas com fitas vermelhas nas árvores, elas parecem veias. As árvores já não parecem árvores, mas sim veias.
CA: Aliás, comecei a trabalhar com a árvore, resultante do meu trabalhar com o corpo e a sua circulação. Trabalhei o desenho de Diderot que planificar a circulação sanguínea e essa planificação é idêntica a uma árvore. A árvore da vida. Fiz a ligação para o exterior do corpo e para a árvore. A árvore é um símbolo de vida. Ao embrulhar as árvores tem a ver com o sacralizar e cuidar. Na Índia, quando querem sacralizar uma árvore, envolvem-na com tecidos e põe flores e velas. Ao fazê-lo com a árvore, porque tem a ver com o “cuidar de…”. Uma árvore é um corpo, quando cuidamos de uma ferida, enfaixamos, fazemos uma ligadura, tratamos. Quando envolvo uma árvore com tecido, estou a cuidar, o tratar, o envolver. O cuidado a ter com as árvores.
JC: Neste momento, tens presente várias exposições patentes em simultâneo.
Aconteceu por acaso, devido ao COVID-19, ou tivestes um propósito do espectador conhecer diferentes momentos do teu trabalho? Por exemplo, na Galeria Diferença, Who am I? Who are you?, apresentas um trabalho diferente que está mais direcionado para o corpo, mas também para o ser, entre o côncavo e convexo, a fragilidade dos materiais e solidez da matéria. Como explicas a transição entre o “eu” e o “outro”, que mostras nesta exposição?
Também, é um reflexo muito marcante na tua obra, o eu e o outro.
CA: Na primeira pergunta, estas três exposições não foram de propósito, mas aconteceu realmente, porque houve uma paragem por causa da pandemia, quando foram remarcadas, ficaram com datas muito próximas. Normalmente, gosto de fazer as exposições com maior intervalo. De qualquer maneira, todas estas exposições têm relação umas com as outras. A que está no Museu Nacional de História Natural, o tema era a Sexualidade, onde coloquei três listas, escritas nos desenhos e que refletem sobre o eu, o ser. Uma lista começa sempre com a palavra “ser”. O que eu posso “ser” ou “não- ser”. Ao ler cada palavra toma-se consciência do que representa para nós. Outra lista é “My body in dust”, o ponto de ligação com a exposição que está no Museu Coleção Berardo: “Dar corpo ao vazio” onde esta lista está inscrita no chão da última sala. A terceira lista é sobre o “desejo”. Os meus amigos enviaram-me os seus desejos que listei escrevo em diferentes suportes. O desejo está muito presente na sexualidade.
A exposição, que está na Diferença, Who am I? Who are you?, revela essa consciência do ser. Há um livro de artista com um questionário que estão baseadas no Teste de Rorschach a ser respondido, pelos visitantes. Quero essa relação com o outro e como o outro pode tocar e integrar-se no meu trabalho. É uma prática que eu comecei a fazer e tem a ver com a estética relacional, em que a participação do outro enriquece o nosso trabalho. Também, já cheguei trocar os meus desenhos com os desenhos do visitante e era ele que ficava na exposição. Eu ia para casa com ele. A peça chamava-se “Troca comigo”, na Fundação Ricardo Espírito Santo. Eu cedia o meu lugar: apagamento do ego? Como puxar o outro para o meu trabalho.
JC: A partilha sempre foi fundamental para ti, consideras que também pode ser uma forma de transformação nos outros? Consideras isso um apelo de ser artista?
CA: Acho que se conseguirmos modificar só uma pessoa, já vale a pena trabalhar. O trabalho do artista só faz sentido, quando nós o mostramos. Se está na gaveta, é como se não existisse. Quando se mostra trabalho, vai influenciar o outro, mas quero que o meu trabalho influencie de uma forma positiva. O cuidado que eu tenho com o trabalho que faço, é que essa transformação, ou modificação, ou energia… o que quiseres, quando chegar ao outro seja positiva.
JC: Eu coloquei esta questão por me fazer lembrar o que Kandinsky dizia que o artista deveria ser um “sacerdote da beleza”, que era uma forma de transformar o outro com a obra de arte. Via como se fosse uma missão. Quando estás a falar de transformação em relação ao outro, pensei nessa questão se tinhas também essa vocação entre aspas?
CA: Não aspiro ser sacerdote. Não aspiro ser ninguém especial. Trabalho artisticamente como uma pulsão. Tenho que o fazer. Então, se tenho que fazer, quero fazê-lo de uma forma positiva. Uma forma que toque o outro, que o outro o sinta, mas seja construtivo. Construir qualquer coisa boa.
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Joana Consiglieri
Vive e trabalha em Lisboa. Artista plástica, teórica de arte, investigadora, professora do ensino superior e Design (Cocriadora de AMAZ’D art studio). Doutoramento em Ciências da Arte. Mestrado em Teorias da Arte e licenciada em Artes Plásticas – Escultura.