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EUGÉNIA MUSSA E CRISTIANA TEJO
Eugénia Mussa e Cristiana Tejo, artista e curadora, provenientes do espaço das ex-colónias portuguesas (Moçambique e Brasil), coincidem na exposição "Meridiano Pacífico", na Galeria Quadrum, em Lisboa. A residirem na capital portuguesa há já alguns anos, depois de um percurso que as levou por várias geografias e actividades, a Artecapital conversou com ambas sobre o seu percurso e os projectos actuais.
Por Victor Pinto da Fonseca e Liz Vahia
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VPF: Actualmente, vivemos um tempo global, sincronizado, que invade o planeta e que contribui para vencermos a nossa dificuldade - e/ou a nossa resistência - em conhecer o outro. Uma relação é criada com alguém ou alguma coisa que não pertence à mesma tribo...a única relação frutuosa é com o outro, não com o mesmo!
No passado, o Portugal colonial construiu-se no cruzamento de três continentes, sem o qual a língua portuguesa não seria hoje falada em todo o mundo!
Que universo juntou a pintura da Eugénia com o trabalho de curadoria da Cristiana?
CT: Lisboa, este lugar de convergência cada vez maior de populações que falam português. Na verdade, nosso encontro deve-se ao pensamento afiado e à grande perspicácia de Giulia Lamoni, a curadora da exposição de Eugénia na Galeria Quadrum. Foi ela quem abriu com imensa generosidade as portas institucionais de Portugal para mim. E eu não poderia agradecer mais a ela por ter feito esta espécie de “blind date”, pois tem sido uma ótima experiência esta troca e o convívio com Eugénia. Realmente interesso-me muitíssimo por ampliar o espectro de minha pesquisa curatorial para Portugal e todos os países de língua portuguesa, pois até agora minha grande expertise era o Brasil a fundo e um pouco de América Latina, sem mencionar os mesmo suspeitos de sempre do mundo da arte internacional. A minha vinda para Lisboa abriu meus olhos para uma produção muito diversa, mas que tem um mesmo passado colonial que ainda ressoa e se atualiza nos nossos dias.
EM: No primeiro encontro com a Cristiana foi dum certo modo emocionante encontrar tantos pontos de convergência, depois com tempo percebi que a Pintura continua a trazer-me estas ofertas inesperadas, permitindo-me criar novas e enriquecedoras ligações que surgem com a desculpa do trabalho.
LV: Tanto a Cristiana como a Eugénia têm um percurso de vida que passa por várias geografias e vários interesses. Pegando na afirmação da Cristiana, de que “ser nómada dá um alargamento”, em que é que esse nomadismo contribuiu para a vossa definição do que são hoje, como curadora e artista?
CT: No início de meu percurso eu queria conhecer o mais distante e estranho possível de minha cultura. Aos 15 anos queria desbravar a Grécia. Aos 18 fui morar um tempo na Alemanha. Aos 24 passei uma temporada de um ano em Londres… Já como curadora trabalhei com parceiros na China, Holanda e Egito, por exemplo. Cheguei a falar muito bem alemão e a morar temporadas na Alemanha (não tenho nenhuma ascendência germânica). Sempre nutri um profundo sentido de abertura para o mundo tendo como porto seguro o Recife. Eu queria levar o mundo para o Recife e eu queria estar no mundo, mas sempre voltando para o Recife. Estar fincada num território em que nasci, mas não cresci (morei toda a minha infância e parte da adolescência em Brasília) e para onde retornei fez-me sentir necessidade de conhecer outras histórias, maneiras de pensar. Talvez o gosto pelo nomadismo tenha surgido justamente por ter vivido os meus primeiros 15 anos em trânsito entre dois lugares muito diferentes e por Brasília naquela altura ser uma síntese de todo o país… Ao mesmo tempo, conhecer com propriedade a arte feita no Brasil e não apenas no Rio de Janeiro e São Paulo (algo que sempre foi minha preocupação) requer longos deslocamentos, ser uma nômade no próprio país… Hoje minha perspectiva mudou. Adotei Lisboa como meu novo porto e gosto de estar inserida em algo que me é familiar mas que é distante muito mais pela ignorância histórica e laços sanguíneos ancestrais que se perderam nos séculos. É simplesmente fascinante ver tantas similitudes entre as culturas de Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Açores, Cabo Verde, Guiné Bissau, Goa, Macau e Timor e o Brasil e compreender as latências de nossas histórias… Há tanto o que aprender sobre a produção artística destes lugares todos! Neste momento, não quero mais abarcar o mundo inteiro… Quero alinhavar questões globais a partir de meus dois territórios principais: Lisboa e Recife.
EM: Desde que tenho memória, devido ao meu tom de pele misto, sempre fui diferente das pessoas que me rodeavam; isso era verdade tanto em Moçambique, na pré-primária, como em Portugal, onde fiz a escola primária. Quando era criança, em Moçambique, tive de aprender a dançar, porque era o que se fazia durante o recreio, até que eventualmente consegui e fui aceite no grupinho das miúdas. Depois de superar essa prova, percebi também que iria ser demasiado esforço continuar no jogo de me querer sentir inserida; penso que essa decisão, essa desistência, deu-me bastante liberdade. Talvez seja essa liberdade que me permite fazer aquilo de que mais gosto hoje em dia. Iniciei o trânsito Lisboa-Maputo quando tinha 1 ano e aos 5 mudei-me para cá, mas continuei a visitar Moçambique regularmente; aos 17 fui viver para Maputo e ai começou outro ciclo mais intenso de viagens a Moçambique. Entretanto, também vivi em Londres, Angola e, ultimamente, tenho tido a oportunidade de viajar regularmente entre Lisboa e a zona do Pacífico. É no trânsito que me sinto mais livre e, simultaneamente, mais em contacto com aquilo que me parece verdadeiramente real: a constante mudança. E é relaxante estar entre locais, pois adquire-se um distanciamento saudável das coisas, uma espécie de view from nowhere (Thomas Nagel), mas sem a alienação que esta implica.
VPF: Na exposição "Meridiano Pacífico" mostras um interesse particular por pinturas a gouache sobre papel esquisso que representam simultaneamente padrões de tecidos e pintura abstrata. Prestas uma atenção especial às formas coloridas como que um retorno a África e pintas tigres com algum exotismo... É o teu carácter tropical a manifestar-se nestas pinturas?
EM: O papel vegetal e o guache surgiram por acaso. Alguém me ofereceu um rolo de papel de arroz e, assim que notei a combinação da transparência e fragilidade do papel, o toque acetinado e o modo como a tinta adquiria uma nova personalidade que contrastava com estas características, fiquei com vontade de explorar este material. Depois de experimentar o ecolin e o acrílico, percebi que o guache tinha o efeito matizado que eu pretendia. O papel vegetal também é interessante por ter esse carácter esvoaçante que o faz parecer frágil, mas sem o ser; neste contexto, os padrões de tecido surgem naturalmente. O tigre, sendo um tema recorrente na Pintura, penso que como o branco: é um íman para os pintores. Também não consigo resistir às cores "berrantes"; aí talvez se notem as raízes africanas, mas também as interpreto como um certo saudosismo dos anos 80.
LV: A fragilidade do papel vegetal e a naturalidade do traço podem à primeira vista destoar da abstracção serial, no entanto, tal como o título pressupõe, há aqui uma junção de um lado matemático – meridiano – com um estado sensível – pacífico. Concordas?
EM: Penso que sou uma pessoa bastante racional e parto do princípio que o meu trabalho será racional (e com isso não tenho de me preocupar). A questão aqui é encontrar um método, criar um esquema/jogo que me sirva de rampa de lançamento para a expressão emotiva: liberdade de movimentos, gestos controlados ou amplos, extensa paleta de cores, etc...
Na série Meridiano Pacífico, as 3 linhas vêm sempre antes do resto, porque é a partir delas que tudo surge, a partir da sua constância, repetição e rigidez subtil. A partir do momento em que essa máquina repetitiva está em andamento, também me interessa que essa extracção emotiva seja de algo que eu ainda desconheço. O que tento a partir daí é não fazer, tentar ao máximo não criar, produzindo pinturas que já existiam; é mais um truque… Queria que o nome remetesse para vários significados ou estados e que essa polissemia estivesse presente na exposição; queria que o público se sentisse num lugar familiar e confortável, mas que ao mesmo tempo levantasse questões (sendo que as menos óbvias serão também as mais interessantes). A mais óbvia é a questão do figurativo/abstracto, que foi também a que levantou mais sobrancelhas, o que de certo modo era o objectivo. Existe aqui uma colisão de perspectivas, na ideia de que a arte deve obedecer a um "desígnio superior", em contraste com o plano das coisas mundanas (dos objectos plásticos, por exemplo). Entendo que se possam ferir algumas sensibilidades ao vê-las todas no mesmo espaço. Existe uma clara tentativa de conciliar os dois mundos e não vejo nada de absurdo na interacção entre estas duas perspectivas, pois creio que o verdadeiro absurdo é partir do principio que se opõem uma à outra.
VPF: O Brasil não parou de estar no centro da actualidade internacional depois do final dos anos 1980 - situação caracterizada por um enorme dinamismo; intensificou-se a abertura de museus, centros de arte, instituições públicas e privadas, criando-se um contexto favorável para artistas e curadores. Neste período, o teu trabalho caracterizou-se principalmente por dar visibilidade à cena artística emergente e contribuir para o reconhecimento das características singulares da cultura brasileira.
Agora que acontecimentos diversos marcam uma nova etapa em que a situação política e social piorou consideravelmente, qual é o estado actual da arte no Brasil?
CT: Eu creio que poderia falar primeiro sobre o estado das instituições no Brasil. Há 10 anos havia uma intensa solidificação das instituições públicas país afora fruto da convergência de investimentos públicos dos governos federal e estaduais. Havia uma espécie de euforia numa nova tentativa de descentralização do mundo da arte brasileiro, pois não preciso dizer que as distâncias geográficas do Brasil são aprofundadas com a concentração de recursos financeiros no eixo Rio – São Paulo. Estes investimentos fomentaram a profissionalização do campo da Arte Contemporânea em lugares como Pernambuco, Minas Gerais, Ceará, Pará, Rio Grande do Sul, entre outros. Sempre existiram artistas incríveis por todo o país, mas havia uma necessidade de deslocamentos para os grandes centros para que fosse possível a educação do olhar e a inserção institucional. Na década de 2000, floresceram as oportunidades de formação e de empregabilidade de outros profissionais do campo da arte além dos artistas, a exemplo dos curadores, sem a necessidade de migração para os dois grandes centros. Concomitantemente, o mercado de arte também fortaleceu-se culminando na criação da SP – Arte, talvez a maior feira de Arte Contemporânea da América Latina. Há uns seis anos, iniciou-se um processo de desinvestimento público em instituições de arte não por falta de dinheiro, mas de vontade política. Isto causou um impacto enorme no tecido institucional de todo o país. Pela robustez econômica e investimento privado apenas São Paulo safou-se do desmoronamento sistemático que vem ocorrendo nos últimos dois anos e hoje ocorre um grande desequilíbrio entre instituições e mercado de arte. Os artistas continuam a produzir e a fazer coisas incríveis, mas apenas uma parcela muito pequena é representada por galerias realmente profissionais e conseguem sobreviver de seus trabalhos de arte. Continuar a viver em suas cidades voltou a ser um grande exercício de malabarismo e boa parte dos museus e centros de arte que formaram e deram visibilidade a alguns dos artistas mais interessantes da atualidade estão à míngua. A safra atual de artistas com menos de 45 anos que participam de bienais e grandes mostras internacionais é fruto de um sistema da arte dinâmico e arejado. Minha preocupação é com relação à próxima geração...
VPF: A força da cultura no século XXI explica em grande parte a explosão da recente globalização! É indiscutível que a tensão entre local e global nos permite compreender melhor a globalização na última década; o actual contexto geopolítico apela aos choques civilizacionais, à discussão de ideias, valores, crenças, etc...E a arte contemporânea é um dos instrumentos que abre as portas para o mundo globalizado: neste tempo, a tua geração tem contribuído para uma nova atitude, uma fase "radicante" da civilização - uma modernidade do mundo globalizado -, feita de um enraizamento diverso e dinâmico, um multi-enraizamento (a palavra "radicante" designa uma planta que lança raízes conforme se move)!
Dito tudo isto, imagino que lançaste raízes em Lisboa... depois de teres residido noutras cidades europeias, especialmente em Londres! O teu actual doutoramento passa por continuares a contribuir para o reconhecimento internacional da arte brasileira mas agora a partir de Portugal?
CT: Eu creio que sim, apesar de meu doutoramento ser um tema brasileiro e eu estar a desenvolvê-lo na Universidade Federal de Pernambuco, sem qualquer ligação institucional com Portugal… Minha tese é sobre uma leitura sociológica da gênese do campo da curadoria no Brasil a partir das trajetórias de três curadores históricos: Aracy Amaral, Frederico Morais e Walter Zanini. Interessa-me analisar as condicionantes brasileiras que geraram o que compreendemos por curadoria e algumas tipologias que emergem com a obra destes críticos de arte e historiadores, numa espécie de transição entre uma ecologia da Arte Moderna e uma da Arte Contemporânea. É muito importante desmistificar os mitos fundacionais do campo da curadoria contemporânea centrados na Europa do Norte e Estados Unidos, pois nota-se que fenômenos semelhantes ocorreram em várias partes do mundo na mesma época… Além da conclusão de minha tese prevista para este ano, desejo iniciar projetos que possam avivar as trocas e conexões entre Brasil, Portugal e África. Há muito interesse de artistas e curadores brasileiros de virem fazer pesquisas por aqui, mas não há ainda recursos que possibilitem isso. Espero em breve poder lançar uma plataforma de estímulo a intercâmbios entre nossos países.
LV: Dizias na nossa primeira conversa que adoras lugares periféricos, que é dali que se consegue observar o todo. Desde 2014 a residir em Lisboa, consideras esta cidade um bom sítio para se observar o mundo da arte contemporânea?
CT: Sim, de fato eu prefiro estar situada em lugares “periféricos” e circular livremente por lugares centrais porque assim como nos nossos olhos, a visão central foca-se no que está obviamente em nossa frente. Já a visão periférica nos ajuda a enxergar o que ainda não entrou em nosso raio de visão mais previsível. Nas grandes cidades não se enxerga longe ou fora do óbvio… A densidade faz com que se veja apenas o que já é reconhecível e muitas vezes as cenas artísticas são muito auto-centradas. Eu gosto muito de lugares fora das grandes capitais e longe dos cânones porque é neles que realmente dá-se câmbios mais livres. Entendam que não faço uma ode ao isolamento ou regionalismo, mas apenas a uma situação que dá mais liberdade de movimento, de erros e experimentações. Quando cheguei a Lisboa ainda não havia todo o frisson e curiosidade que agora tomam conta do esgotado mundo da arte internacional. Apesar da vertiginosa mudança pela qual passa Portugal, ainda acho que este é o melhor lugar para se estar no momento… A localização é ímpar (estamos perto de todas as capitais européias, próximo da África e das Américas), o pensamento sobre arte é denso e há uma boa capilaridade institucional que atende desde a uma escala de grande demanda profissional até projetos independentes e de baixíssimo custo. E aos poucos, o mundo da arte contemporânea tem transitado cada vez mais por aqui… Eu simplesmente adoro lugares que nos permitem entrar e sair da modernidade com agilidade. Portugal é hoje para mim o melhor lugar para se estar no globo. Este é meu novo porto de onde parto mundo afora.