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NUNO FARIA
Nuno Faria é o actual director artístico do CIAJG - Centro Internacional das Artes José de Guimarães. Curador, tem trabalhado em contextos institucionais e ao mesmo tempo desenvolvido projectos independentes em zonas periféricas no panorama artístico português. Depois de passar pelo Instituto de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura e pela Fundação Calouste Gulbenkian, viveu e trabalhou no Algarve entre 2007 e 2012, onde foi responsável pelo programa de arte contemporânea do Allgarve’10 e ’11, e onde também fundou (em Loulé, em 2009) o projecto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente. O seu percurso passa também pelo ensino, sendo docente no Instituto Politécnico de Tomar e no IADE.
Este ano foi distinguido com o Prémio de Crítica e Ensaística de Arte e Arquitectura AICA/Fundação Carmona e Costa, 2012/2013, pelo projecto editorial e crítico que coordenou para o volume Para Além da História, onde se consolida o programa expositivo do CIAJG. A Artecapital aproveitou a ocasião e foi entrevistar o curador no momento em que preparava a inauguração simultânea das exposições Estrela Negra, de Jaroslaw Flicinski e Provas de Contacto de José de Guimarães.
Por Liz Vahia
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LV: Estudou História da Arte numa universidade belga. A Bélgica foi uma escolha baseada nalgum critério ligado à área das artes?
NF: Não, foi um acidente biográfico, que veio a ter uma importância considerável na escolha de estudos de história da arte.
LV: O seu percurso profissional passa por duas instituições de peso nas artes visuais nacionais: o Instituto da Arte Contemporânea e a Fundação Calouste Gulbenkian. Depois de vários anos a colaborar com estas entidades, sentiu necessidade de se afastar e embarcar em projectos mais pessoais e marginais?
NF: Na realidade foi uma sequência bastante linear, eu diria quase métrica, que se foi desenvolvendo acidentalmente, de ocorrência em ocorrência. Quando voltei da Bélgica, por razões de ordem emocional, passei um período relativamente longo a cultivar o ócio antes de me sentir obrigado a produzir algo que fosse palpável. Depois de entregar cv's e amostras de escrita em vários jornais nacionais tive a sorte de ser convidado, por Irene Pimentel, na altura editora da revista História, para escrever mensalmente um artigo sobre questões ligadas à arte contemporânea, com liberdade de escolha do tema. Fiz nessa altura algumas incursões no JL, onde colaborei com essa maravilhosa jornalista que é a Maria Leonor Nunes. Foi um período de aprendizagem da arte portuguesa, que conhecia mal, e que se prolongou quando integrei a equipa do IAC, que na altura se formava. Passei ali seis anos, tendo trabalhado numa equipa que integrou pessoas como, por exemplo, a Joana Sousa Monteiro, o Miguel Wandschneider, a Isabel Corte-Real, o Nuno Crespo, a Adelaide Tchen, a Isabel Carlos e o Fernando Calhau, que foi uma pessoa determinante na minha formação. Com a saída de Fernando Calhau por doença e a nomeação de José Manuel Fernandes, em 2001, acabei por aceitar continuar no IAC como subdirector, numa decisão marcada por algum romantismo, achando, com alguma inocência, que poderia ajudar a preservar o espírito pioneiro e o papel central que o IAC, uma estrutura pequena mas terrivelmente operativa, entrosada com o meio, profissionalizada e com o ânimo dos projectos missionários, desempenhava. Foram dois anos agridoces, marcados no início por uma grande esperança, nomeadamente pelo trabalho desenvolvido com o responsável pela tutela do IAC, José Conde Rodrigues, um dos mais argutos homens políticos com quem trabalhei, e com a queda do governo socialista, após as célebres eleições autárquicas, por um período penoso, de desmantelação e descaracterização do IAC e de todo o edifício do Ministério da Cultura. Foi aí o começo do fim da intervenção do Estado na cultura, especialmente nas artes. Na sequência da tomada de decisão da fusão IAC/IPAE, em 2003, demiti-me do meu cargo e rescindi o meu contrato de técnico - não era possível, em consciência, compactuar com a decisão tomada, errada sob todos os pontos de vista.
Integrei então o corpo de professores do curso avançado de Fotografia do Ar.Co, a convite de Sérgio Mah. Foi um período fantástico, não só porque tenho uma ligação afectiva à escola mas porque trabalhar com aquela equipa foi muito estimulante do ponto de vista intelectual. Pouco tempo depois surge o convite para ser consultor do Serviço de Belas Artes (SBA) da Fundação Calouste Gulbenkian. Na Fundação tive a sorte de trabalhar com duas pessoas que me marcaram muito, Manuel da Costa Cabral, director do SBA, e Jorge Molder, director do CAM. A Gulbenkian estava no meu imaginário de juventude e os seis anos que ali passei foram muito preenchidos, comissariei várias exposições, em Portugal e no estrangeiro, aprendi muito, sobretudo a fazer as coisas à escala institucional, dentro de uma estrutura com uma filosofia e uma história.
A ida para o Algarve, que é mais uma vez uma decisão emocional (fui viver com a minha pequena família para a Companhia das Culturas, em São Bartolomeu do Sul, no Sotavento, o lugar e projecto de dois queridos amigos, a Eglantina Monteiro e o Francisco Palma Dias), dá-se em 2007 e é, numa primeira fase, conciliada com vindas a Lisboa, onde todas as semanas estava na Fundação a desempenhar a minha actividade de consultor no SBA. Em 2009, deixo então definitivamente a Fundação e passo a trabalhar exclusivamente no Algarve. Aí, para além de ter colaborado com a Fundação de Serralves no projecto Allgarve 2008, desenvolvi dois projectos de pequena escala totalmente sintonizados com aquele lugar magnético que é o Algarve - o projecto Observatório (arte, ambiente e paisagem), em co-autoria com Eglantina Monteiro (apoiado pela Direcção Regional da Cultura do algarve) e MOBILEHOME, um projecto de formação independente e informal, desenvolvido com a Câmara Municipal de Loulé a pensar nas imensas lacunas e potencial daquela região ao nível da arte contemporânea.
Mas, para finalmente responder à pergunta, diria que sim: foi uma irreprimível vontade de reencontrar uma escala pessoal, mais íntima, num contexto marginal como é o Algarve, que me levou a partir.
LV: Há algum sentido de missão no seu percurso, que o compromete com este tipo de projectos independentes?
NF: Eu acho que há. Missão no sentido de uma implicação com os projectos, com os lugares, com as pessoas. Com um sentido de formação, também. Trazer algo que possa ficar, contribuir para que haja desenvolvimento, para que se gerem ideias e conceitos que se possam aplicar à vida quotidiana.
LV: O que é a MOBILEHOME – Escola Nómada, Experimental e Independente, da qual foi fundador em 2009? “Nómada, experimental e independente” é todo o oposto a uma posição institucional.
NF: MOBILEHOME foi criado em 2009, em Loulé, como uma escola de arte "nómada, experimental e independente", um projecto de formação avançada e informal no campo da arte contemporânea. Destinava-se, antes de mais, à ampla comunidade de artistas residente no Algarve que, à data, vivia num enorme isolamento e num contexto muito carenciado de estruturas de visibilidade neste campo. Destinava-se igualmente a fomentar o encontro entre diferentes artistas, curadores e outros agentes a operar neste campo, oriundos de contextos muito diversos e de diferentes lugares, a estimular a reflexão em torno de temas como o lugar, o território, as margens, utopia, auto-aprendizagem, a energia do trabalho colectivo, entre outras. Reunimos uma extraordinária equipa de colaboradores, a geometria variável, que se mantém fiel ao projecto e que acredita no potencial do encontro como modelo de aperfeiçoamento do projecto individual.
É um projecto que acontece anualmente entre 2009 e 2012 e que agora, após um período de balanço e reflexão, cumprirá o seu desígnio nómada (embora aqui nomadismo não deve somente ser entendido em sentido físico mas também mental) mudando-se para São Bartolomeu do Sul, integrado no projecto da Companhia das Culturas.
LV: Depois de algum tempo a residir no Algarve, propôs a exposição “Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico” para a 17ª Bienal de Cerveira, projecto que teve origem em pesquisas em várias áreas realizadas no Algarve. Há uma relação entre paisagem, como um todo envolvente, e a produção artística nela surgida?
NF: Há indubitavelmente e esse é um tema que me interessa muito e que de resto tenho vindo a trabalhar obsessivamente. Foi, aliás, essa a razão da minha mudança para o Algarve, o fascínio que em mim exerce aquele território magnético e solar. A exposição apresentada na Bienal de Cerveira era uma versão reduzida de um projecto que teve origem num convite da então directora do Museu de Faro, Dália Paulo, para conceber uma exposição dedicada ao século XX que viria a integrar um projecto museológico que uniu na altura vários museus do Algarve, reunidos em rede, cada um abordando uma época ou contexto cultural.
Algarve Visionário, Excêntrico e Utópico, que inaugurou em Junho de 2010, no Museu de Faro, Museu Regional do Algarve e Galeria Trem, durou nove meses e teve várias montagens, foi o resultado de um extenso mapeamento territorial e trabalho de campo que cobriu o Algarve de lés a lés, do Barlavento ao Sotavento, do litoral ao interior, do barrocal às serras de Monchique e do Caldeirão, às rias Formosa e do Alvor. O eixo da pesquisa foi justamente a relação umbilical que existe entre aquele território, solar, maníaco e magnético, atlântico e mediterrânico, finistérrico, que os gregos antigos diziam ser o fim da terra e o começo do desconhecido. Um lugar de passagem, de encontro e de troca, onde, em pleno século XIII, se "inventou" o moderno conceito de hospitalidade (no Convento de São Vicente do Cabo, também conhecido por Convento do Corvo, em Sagres, cada peregrino tinha direito a uma adiafa e a cama, fosse qual fosse a sua origem, o seu credo religioso, a sua proveniência e o seu destino). É fascinante constatar que no século XX o Algarve continuou a ser um lugar de peregrinação, onde o viajante, vindo desde paragens tão remotas quanto o extremo norte da Europa, vem ali fixar-se para cumprir a mais radical das utopias individuais, a construção da própria casa. A exposição parte do universo do poeta simbolista João Lúcio, em particular do célebre chalet que ele constrói entre 1914 e a sua morte prematura em 1918, na quinta de Marim, em Olhão, para escrever e contemplar o mar. Esta figura tutelar dá-nos o mote para uma relação romântica, exacerbada, fusional, sem distância com o lugar, mais própria de outras latitudes e num país sem projecto simbolista. Ora, o que a exposição faz é mapear diversos universos autorais, projectos disseminados pelo território, cujo mote é essa relação, por vezes em paralaxe com o lugar, que se consubstancia na construção da própria casa - projectos visionários e utópicos, excêntricos a qualquer norma ou cânone, marginais e radicalmente idiossincráticos. E ali a excepção é a regra, o que é perturbante e dificilmente legível enquanto tal. Não admira, por isso, que o Algarve seja um território que não se inscreve no imaginário nacional de outra forma que não seja enquanto aquela terra longínqua, para lá do Caldeirão, onde apesar de tudo se vai a banhos, hoje destruída. Uma espécie de paraíso perdido...
LV: Do Algarve para Guimarães, de um extremo ao outro. É a mesma orientação no sentido de uma descentralização das práticas artísticas e consequentemente do pensamento?
NF: São coisas muito diferentes, embora estejam nos extremos. No Algarve estamos num contexto de grande dispersão ao nível do povoamento, de desagregação territorial e de dissolução social, com grande escassez de lugares dedicados a projectos ao nível da arte contemporânea. Em Guimarães, pelo contrário, vim encontrar um contexto estruturado do ponto de vista institucional, com fortes laços entre a comunidade e com um verdadeiro projecto cultural, transversal a várias disciplinas artísticas - o projecto que a cidade desenvolve desde 2005, com a fundação do Centro Cultural Vila Flor. Em comum, os dois territórios têm contudo uma forte identidade patrimonial e uma riquíssima herança cultural, incontornável para quem trabalha com arte contemporânea e procura estabelecer laços entre épocas e práticas.
LV: Os contextos artísticos periféricos, quer seja geograficamente quer conceptualmente, são uma área de interesse constante no seu percurso. Isso vê-se reflectido também nas exposições de que é curador, no trabalho museográfico/museológico que desenvolve, juntando diferentes linguagens e abordagens aos objectos expostos?
NF: Interesso-me particularmente e desde sempre por aquilo a que chamaria uma teoria das excepções, citando um livrinho luminoso de Philippe Sollers. Fascinam-me os territórios que estão nas margens, que são de certa forma intersticiais: os autores malditos, as áreas de jurisdição ou nomeação duvidosa, a sombra ou o intervalo. Interessa-me por isso tanto o desenho, enquanto prática e enquanto linguagem. Interessa-me o poder transitivo dos objectos. Interessa-me a energia por oposição à forma. E interessa-me pensar uma arte sem tempo, para além da forma e do estilo. Desde muito cedo me movo em direcção a projectos, monumentos, instituições, objectos, dispositivos, de diferentes épocas, que aqui e ali vão sendo erigidos e que transportam o segredo dessa sinalização intemporal, dessa ligação entre terra e céu, de um certo tempo geológico.
LV: Para si a exposição é “mais do que uma exposição”, é o lugar da arte contemporânea, um mecanismo para o pensamento, para a produção artística entendida num sentido lato?
NF: Para mim a exposição é um dispositivo para dar a ver e para fundar o nosso lugar no mundo. Não pode ser menos do que isso, de outra forma o fazer artístico não faria sentido.
LV: Concebeu a exposição “Para além da história”, para a Capital Europeia da Cultura 2012, onde confrontava a colecção de José de Guimarães com obras de outros artistas portugueses e estrangeiros. Esta era já uma afirmação da exposição como este espaço de diálogo e encenação de relações nem sempre lineares e lógicas?
NF: A linguagem específica ao trabalho do curador é a montagem. E a montagem é a superação da linguagem linear, de uma concepção euclidiana do mundo, de uma visão teleológica da história. A montagem, tal como a aprendemos com o dispositivo-cinema, a linguagem do século XX, permite-nos fragmentar, desconstruir e reconstruir a história, tantas vezes parcial, falaciosa, implacável na forma como procede a exclusões cirúrgicas ou indiscriminadas. O museu é, por outro lado, o espaço em que é possível estar num lugar outro em que coexistem diferentes tempos e durações, o lugar do espanto e da reflexão, do encontro solitário connosco próprios. A mim interessa-me o museu como lugar de tensões, extensões e intenções. Para citar Aby Warburg, onde se pode fazer uma "história de fantasmas para adultos".
LV: Como é estar a trabalhar de forma directa com o José de Guimarães? Essa colaboração entre a equipa curatorial e os artistas resulta sempre numa mais valia ou também acarreta alguns constrangimentos?
NF: Trabalhar com José de Guimarães foi, num primeiro momento em que delineámos e desenvolvemos o projecto para o CIAJG, e é agora que o projecto se encontra em pleno funcionamento, muito estimulante e profícuo. É preciso entender que nós trabalhamos em duas frentes, concomitantes mas com as suas especificidades, que são as colecções que José de Guimarães reúne enquanto coleccionador e que estão parcialmente depositadas no CIAJG, constituindo o chão sobre o qual assenta o projecto curatorial, e o próprio trabalho enquanto artista. Nenhuma destas vertentes é, contudo, a razão de ser do Centro. O CIAJG é um projecto que reúne objectos de diferentes lugares, tempos e contextos, independentemente ou para além da autoria ou da função, da origem ou do fim desses objectos. Desde a génese deste projecto, lançado pela Câmara Municipal de Guimarães no âmbito da Capital Europeia da Cultura 2012, que José de Guimarães pediu que o projecto tivesse uma direcção artística autónoma. É nesse quadro de grande liberdade que eu e a equipa de que faço parte trabalhamos. Gostaria ainda de referir que José de Guimarães é um homem com um grande sentido de exigência, de rigor e também com uma grande independência de pensamento. Não é raro eu dizer mata e ele dizer esfola. É um dos artistas mais ousados com quem trabalhei.
LV: Tendo a experiência de universos museológicos e artísticos distintos, há alguma especificidade em trabalhar para o público do CIAJG?
NF: O projecto do CIAJG está em construção e em fase de afirmação, nesse sentido tem um público a criar. É um projecto de tal forma singular que vai encontrar e formar o seu público nessa singularidade. Temos um forte projecto pedagógico que opera nesse campo, de certa forma novo, de convocar o visitante do museu para uma experiência vital e fundacional, que baseia o discurso numa lógica dialéctica em que estranho e familiar, próximo e distante, antigo e novo, popular e erudito, profano e sagrado, material e imaterial, inteligível e sensível, se sobrepõem em ínfimas camadas discursivas nem sempre visíveis a olho nu mas discerníveis pela experiência da visita e, sobretudo, da revisita ao museu. Essa é uma das vantagens de termos uma colecção que está lá, visível, e que articulamos com obras e objectos de outras colecções e de diferentes artistas. O estranho conforto de revermos um objecto no mesmo espaço é constituidor da percepção enquanto espectadores porque nos faz subtilmente tomarmos consciência de que temos um corpo desejante e operante que produz e objectifica discursividade.
LV: Em 2012 e 2013 organizou os “Encontros para além da história”. Como é que surgiu este programa e quais os objectivos a longo prazo, visto tratar-se de um evento anual?
NF: Os "Encontros para Além da História" tomam e prolongam o nome da exposição inaugural do CIAJG, que mais do que um título era o mote conceptual, o programa do Centro. São encontros de carácter anual, que se realizam em Dezembro, e são uma instância onde promovemos o debate crítico em torno de questões operativas ou operacionais do CIAJG. É decisivo inscrevermos na nossa programação um espaço de retorno crítico sobre a nossa própria actividade, sobretudo porque baseamos a nossa programação em áreas de fronteira e em temas sensíveis, potencialmente fracturantes. A partir do momento em que pomos em causa a integridade de territórios disciplinares, princípios históricos ou em que lidamos com objectos carregados de significados que vão bem para lá da dimensão estética, como é por exemplo o caso da colecção de arte tribal africana, que convoca obviamente a questão da memória do colonialismo e de tantas problemáticas a ela associadas, temos de inscrever na nossa actividade os mecanismos críticos e auto-críticos que a possam balizar e sustentar.
Em 2013, os Encontros, cujo título foi "Imagens coloniais: revelações da antropologia e da arte contemporâneas", foram justamente dedicados à produção de imagens em contexto colonial e reuniram um conjunto de investigadores que, neste contexto, tomam a imagem como matéria do discurso ao invés de a utilizarem como ilustração para a construção teórica.
LV: Este programa veio mostrar que há muitos interessados em trabalhar a partir da imagem como elemento fundador da investigação. Sentiu mudanças na comunidade académica e no público na receptividade do programa do primeiro para o segundo ano? É um programa que se irá consolidar e ganhar preponderância dentro da programação do CIAJG?
NF: Sem dúvida. A segunda edição dos encontros veio mostrar maior maturidade discursiva no interior mesmo da própria instituição e foi, quanto a mim, exemplar da forma como a comunidade artística e académica têm vindo a aproximar o enfoque, as estratégias e as matérias dos respectivos discursos.
Este é um programa que se vai consolidar na nossa programação e que em 2014 será dedicado ao museu enquanto plataforma de diálogo entre a arte popular e a arte contemporânea.
LV: O que podemos ver neste momento no CIAJG?
NF: No dia 25 de Janeiro inaugurámos a programação regular do CIAJG, um momento importante para nós. Abrimos com uma remontagem da colecção permanente, a que chamámos "A Composição do Ar" e três novas exposições: ESTRELA NEGRA, Paredes, pinturas, desenhos e objectos, de Jaroslaw Flicinski; PROVAS DE CONTACTO, do stencil ao digital: processos de transferência da imagem, de José de Guimarães e PRETO NO BRANCO, da Oficina ARARA.
LV: Estas propostas dão-nos uma imagem clara da linha de programação do CIAJG?
NF: Julgo que sim. Em primeiro lugar, porque articulam velocidades de programação diferentes, objectos que permanecem em diálogo com novas propostas; em segundo lugar, porque faz conviver artistas portugueses com estrangeiros e artistas mais velhos com outros mais novos; e, em terceiro lugar, porque as exposições são unidas conceptualmente por questões comuns. Neste ciclo expositivo, a ideia de negativo, molde, matriz, de imagens feita por contacto ou por transferência.
LV: Este ano foi distinguido com o Prémio de Crítica e Ensaística de Arte e Arquitectura da AICA/Fundação Carmona e Costa. Muito do trabalho do Nuno passa pela escrita de textos, inclusive para as próprias exposições e catálogos. Essa actividade de escrita é fundamental para o seu trabalho como curador se desenvolver?
NF: Apesar de ser um trabalho de grande sofrimento (risos), o exercício da escrita é para mim uma forma fundamental de reflectir e de traduzir conceitos, pensamentos, intuições. É outra forma de articulação e de mediação com o público, que se vem juntar às obras e à montagem, ao discurso e ao dispositivo. É também uma forma de dialogar com os artistas com quem trabalho, de lhes devolver algo daquilo que eles me ofereceram como experiência, de estabelecer uma comunicação mais densa do ponto de vista discursivo. Ao contrário daquilo que se espera de textos sobre arte a escrita não é para mim um exercício de clarificação ou de tradução da obra de arte. É antes um exercício de aproximação que incorpora a dúvida e o erro. É uma forma de iluminar a sombra que os objectos transportam com eles.
LV: Há alguma referência que queira apontar como tendo sido fundamental para a sua prática como curador e teórico? Uma exposição, um artista, um ensaio...
NF: Vou dizer quatro, entre tantas: os escritos de Georges Didi-Huberman, em particular o primeiro que li, em 1990, quando estava na Universidade (Fra Angelico - Dissemblance et Figuration), os filmes de Robert Bresson (que vi integralmente no MoMA em 1999), o pensamento de Manuel Zimbro e os desenhos do Jaime e do Vicente.
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Centro Internacional das Artes José de Guimarães
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